Opinião

A pequena quantidade de droga, a percepção de uso e a "síndrome de Brasília"

Autor

  • Milton Nobre

    é desembargador do TJ-PA (presidente no biênio 2005/2007) ex-membro do Conselho Nacional de Justiça (biênio 2009/2011) ex-presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil (biênio 2013/2015) e professor emérito da Universidade da Amazônia (Unama).

11 de junho de 2019, 7h14

Têm sido recorrentes as decisões judiciais afirmativas da conclusão de que a pequena quantidade de droga, apreendida em poder de alguém, seria indicativa de que se estaria diante de um usuário ou dependente, e não de um traficante, bem como que a sua posse em diminutas porções constitui critério para minimizar a gravidade do delito.

Essa percepção, porém, é assaz equivocada e, veiculada repetidamente, mormente por quem possui notória autoridade, terminará por gerar um senso comum absolutamente distorcido da realidade.

Daí porque pareceu-me conveniente provocar o debate, trazendo o assunto à reflexão e consideração dos leitores desta prestigiada revista eletrônica, pois, embora a quantidade de droga não seja expressiva (por exemplo, seis, nove ou 12 petecas, pinos ou trouxinhas de cocaína e de maconha, pesando 8, 12, 25 gramas e até mais), isso, por si só, não autoriza a conclusão de que seu portador seja apenas usuário. Ao contrário, ter consigo porção não significativa de droga ilícita, não raro, sobretudo em uma pequena localidade ou município do interior do nosso imenso país, é um forte indício de realidade do tráfico.

Explico.

Como presumo seja de conhecimento geral, as redes de traficância operam, no setor de distribuição ao consumidor, em especial em comunidades pouco densas e do interior, com uma espécie de escravidão com dupla dependência. Por um lado, subjugam pelo vício pequenos passadores que, com as recentes alterações do artigo 318 do CPP, quando têm filhos na primeira infância (até 12 anos), traficam por meio de suas companheiras. Por outro, os mantêm cativos na medida em que lhes garantem a sobrevivência com uma renda que, mesmo não sendo grande, propicia ganhos superiores aos de qualquer bolsa[1].

Daí decorre que, nas comunidades menores, os traficantes de varejo, em geral, não costumam portar ou ter consigo grandes quantidades de droga, por duas razões: a uma porque o mercado não tem demanda que comporte senão pequenas porções para negociação; e a duas porque, caso flagrados e presos, não sofrem grande perda de valor significativo que não possa ser honrado com o provedor, pois a cobrança neste caso, quase sempre, termina em morte.

De outra banda, a experiência tem demonstrado que, quando se trata de porte ou posse de cocaína ou outra droga ilícita mais sofisticada, mesmo em pequena quantidade — em comunidades interioranas, como acontece, por exemplo, na vasta região amazônica, de pouca população, com margens extensas de rios caudalosos, difíceis de serem rastreáveis, onde os habitantes, em parte não desprezível, são caçadores-coletores modernizados, diretos ou indiretos, do que lhes oferece a floresta —, outra não é a constatação senão de tráfico.

A visão que não alcança esses ângulos da realidade é típica daquilo que chamo de “síndrome de Brasília ou da visão curta”, que parece impedir, os que se encontram no Planalto, de enxergar o que acontece nos mais remotos rincões do nosso país e, por isso mesmo, não raro de conhecer ou reconhecer o que se passa na maior porção do território nacional, ou seja, na Amazônia brasileira.

Para ficar só em dois exemplos bem significativos dessa visão curta, lembro, em primeiro lugar, que há duas décadas foi aprovada a chamada “Lei do Abate” (Lei 9.614 de 1998). Cobriu-se o espaço amazônico como a eficiente rede de radares do Sivam – Sistema de Vigilância da Amazônia (o que, ressalto desde logo, foi correto), mas esqueceu-se de que o rio Amazonas nasce no Peru, um dos grandes produtores de droga ilícita da América do Sul, gerando um efeito colateral desastroso e que era previsível: a droga simplesmente desceu o rio, criando a chamada “rota do Solimões”, e hoje, além da assustadora guerra entre facções do crime organizado, que tantas mortes tem causado nos presídios da região, nas nossas populações ribeirinhas do estado do Pará, encontramos intensificados o consumo e o tráfico da maconha, da cocaína e do crack.

Recentemente, a Lei 13.654, de 23/1/2018, modificou a disciplina das agravantes aplicáveis aos crimes de roubo, com a finalidade de agravar mais as penas em caso de violência causada pelo emprego de arma de fogo, porém terminou sendo revogado o inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal, e o uso das chamadas armas brancas deixou de se subsumir a quaisquer das majorantes desse tipo penal. Até parece que os nossos legisladores desconhecem o que se passa em muitas cidades do Norte e Nordeste, nas quais é comum, inclusive por influência da droga, roubos com essa espécie de artefato.

Aliás, na última semana, não tivesse o presidente da República sancionado a Lei 13.840, de 5/6/2019, impondo veto nas alterações que introduzia no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343, de 23/8/2006, teríamos outro exemplo para citar, pois, dentre as novidades, seria causa de redução de pena nos crimes definidos na cabeça desse dispositivo as circunstâncias do fato e a quantidade de droga apreendida demonstrarem o menor potencial lesivo da conduta.

Esse texto normativo, caso aprovado, deixaria para o Judiciário a tarefa de definir, sem qualquer base empírica, quando a quantidade da droga apreendida demonstra “o menor potencial lesivo da conduta”[2], diversamente do que acontece em outros países, como, por exemplo, em Portugal, que, mediante a Lei 30, de 29/11/2000[3], considera delito de tráfico apenas quando o agente possui droga em total superior “a quantidade necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias”, o que levou a edição de regras regulamentares dos Ministérios da Justiça e da Saúde portugueses que ensejaram a fixação desses montantes decenais.

Evitando dizer mais do que o necessário, para provocar meditação e incentivar o diálogo[4], sobre a questão relativa à posse ou ter consigo pequena quantidade de droga, encerro destacando que o número de petecas — de trouxinhas, de pinos ou de qualquer outro nome que se queira dar às pequenas porções de droga — em si nada significa. Números são signos de quantidade. Usá-los como único critério para pressupor e generalizar qualidade é subjetivismo. É um expressivo exemplo de discricionariedade pura que, na interpretação/aplicação do Direito, tem sido oportuna e corretamente combatida por Lenio Streck.


[1] Para quem não sabe, 1 kg de cocaína em pó, com 80% de pureza, custa entre R$ 30 mil e R$ 40 mil (a grama, pois, entre R$ 30 e R$ 40), e a pedra de oxi de 1 kg, de R$ 12 mil a R$ 18 mil, podendo chegar a muito mais dependendo do local e condições de entrega. Portanto, por aí se tem uma ideia do efeito multiplicador com as misturas para a ponta de consumo e dos valores que alcança.
[2] Note-se que nem associada à “circunstância do fato” — o que também indica forte exercício de subjetivismo arbitrário — esse critério aberto “quantidade da droga” não imporia alguma vinculação às futuras decisões judiciais.
[3] Lei 30, de 29/11/2000 – Define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica – artigo 2º, item 2.
[4] Ressalto aqui, para me proteger dos críticos de plantão e contra as percepções apressadas, que outro não é o objetivo deste artigo. Não se leia aqui o que nele não se contém nem se pense que esconde qualquer desejo de agravar as penas para o agente que vem a ser preso com pequena quantidade de droga ilícita, mas, sim, e tão somente, de oferecer subsídios para tratamento do assunto a sério.

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