Opinião

"Lava jato" gate traz à tona relação espúria entre MPF e o juiz da causa

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10 de junho de 2019, 11h41

Por que a reportagem “Chats privados revelam colaboração proibida de Sergio Moro com Deltan Dallagnol na Lava Jato”, do site The Intercept, estarreceu a comunidade jurídica?

O que já vem sendo considerado um dos maiores escândalos jurídicos do Brasil — "lava jato" gate — traz à tona uma relação espúria entre uma das partes (MPF) e o juiz da causa.

A história do processo penal, já foi dito, é a história do poder. No caso, o poder mais primitivo: o poder de punir.

Como é próprio do Direito, além de constituir instrumento e manifestação de poder, o processo também reflete valores sociológicos, éticos e políticos. Portanto, é inegável a relação existente entre o Direito Processual e a ideologia dominante em determinado país[1].

Não obstante, hodiernamente, em conformidade com a Constituição da República, o processo penal democrático não pode ser entendido como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido[2].

Geraldo Prado assegura que “as garantias do processo penal são, relativamente às liberdades públicas afetadas pela persecução penal, garantias materiais dos direitos fundamentais”[3]. Mais adiante, o sempre lúcido processualista afirma que: “O processo penal, pois, não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas, incluindo-se nesta categoria os integrantes do Poder Judiciário”[4].

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, os direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma, pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Não é sem razão que hoje é posição dominante nos principais tribunais de direitos humanos o reconhecimento da necessidade de se garantir um julgamento justo por um juiz ou tribunal imparcial.

O Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8º, I, dispõe:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ele, ou para determinarem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (grifamos).

A Corte de Estrasburgo assinala que a confiança do cidadão nos tribunais de Justiça está, em grande parte, baseada no princípio da imparcialidade. Em igual sentido, tem se pronunciado a Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH), para a qual a parcialidade, sem embargo de observada apenas objetivamente, invalida por completo o processo penal[5].

Enquanto a neutralidade do juiz é impossível e ninguém a exige, a imparcialidade é garantia do jurisdicionado. O que está assegurado às partes é o fato de o juiz não ter aderido prima facie a qualquer das alternativas de explicação que as partes dialeticamente trazem aos autos, durante a relação processual[6].

A imparcialidade do juiz, adverte Gustavo Badaró, “resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento”. Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o eminente processualista observa que, no julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH decidiu que, no tocante ao direito a um tribunal imparcial, “todo juiz em relação ao qual possa haver razões legitimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”[7].

Por tudo, quando uma das partes (órgão acusador) mantém afinidade eletiva e relação espúria com aquele que deveria ser o primeiro a zelar pela imparcialidade, já que essa qualidade está umbilicalmente ligada ao ato de julgar, não apenas penaliza sobremaneira a parte ré (defesa), mas, sobretudo, avilta frontalmente a Constituição da República e o Estado Democrático de Direito.


[1] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volume I – 5ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[3] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[4] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos… ob. cit.
[5] PRADO, Geraldo. “Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato: para além da iniciativa probatória do juiz”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 24, nº 122, agostos, 2016.
[6] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 45.

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