Opinião

A superação do modelo solipsista judicial e a abolição do "ctrl+c" e "ctrl+v"

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10 de junho de 2019, 7h45

O novo Código de Processo Civil inaugura, para o Direito Brasileiro, um enorme desafio, sobretudo porque consolida a transição paradigmática de modelos processuais em vários aspectos e especialmente no que toca ao dever jurisdicional de fundamentação dos provimentos judiciais[1]. Estabelece a superação da teoria relacionista do processo sustentada em um modelo solipsista judicial e de massificação de decisões judiciais, passando para um novo modelo principiológico do processo[2].

Representa, portanto, uma ruptura que advém no esteio do Estado Democrático de Direito em evidente contraposição ao positivismo jurídico e a escola exegética. O novo direcionamento, ao superar a ideia do livre convencimento do julgador, inaugura na dinâmica processual uma lógica de comparticipação em que as partes, mais que contribuições coadjuvantes, protagonizam a construção do ato decisório e do “Iurisdicto”. Consolida-se algo extremamente inovador na seara jurisdicional, configurando o paradigma procedimentalista e constitucional do processo, intimamente ligado aos princípios do contraditório e ampla defesa. O artigo trará breve análise desse novo paradigma inaugurado pelo Novo Código de Processo Civil, no tocante ao dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais.

Hodiernamente, o novo Código de Processo Civil orienta-se pelos princípios constitucionais que fundam o Estado Democrático de Direito no Brasil, especificamente pelo devido processo legal, assentado no artigo 5º, inciso LIV. É certo que o devido processo legal constitucional configura-se através de princípios que asseguram ao cidadão questões basilares do arcabouço jurisdicional concernentes ao direito de ação e de defesa (artigo 5º XXXV e LV), dentre os quais ganham destaque: a ampla defesa, o contraditório (artigo 5º LV), juízo natural (artigo 5º LIII), razoável duração do processo (artigo 5º LXXVIII), fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, IX), publicidade dos atos processuais (artigo 5º, LX, CF), isonomia no tratamento dado às partes litigantes (artigo 5º, caput), dentre outros. A bem da verdade são esses princípios que devem orientar a jurisdição, bem como, a correta leitura da legislação infraconstitucional.

Com o advento do Estado Democrático de Direito houve a superação da discricionariedade judicial e da possibilidade do magistrado em decidir com base em elementos solitários. Mas, afinal de contas, em que consiste esse dever? Há limites? Quais? Pode o juiz, no cumprimento desse dever extrapolar, ir além? O magistrado pode negar-se a apreciar os argumentos e teses trazidos ao processo pelas partes? Os provimentos podem se valer de súmulas, precedentes e normas, citando-as para justificar a posição tomada? Essas questões são relevantes, tem efeitos tanto no direito processual, quanto no direito material e constituem verdadeiras provocações a fim de promoverem reflexões sobre a temática e contribuir com as discussões no plano teórico e prático.

Propõe-se ademais a necessidade de rediscutir a racionalidade que norteia a fundamentação das decisões judiciais, problematizando o enunciado normativo previsto na Constituição de 1988, em seu artigo 93, propiciando a leitura, do mesmo, de forma constitucionalmente adequada, ao paradigma do “Estado Processual”.

Antes de qualquer coisa, releva dizer que a partir do momento em que o homem estabelece uma comunidade organizada a alguém é atribuído o papel de, numa lide em que configuram, por óbvio, razão de pretensões resistidas, dizer o direito. Os conflitos e as lides entre sujeitos de uma mesma comunidade, são portanto, levados ao conhecimento desses indivíduos que assumiam para si a responsabilidade de apresentar a solução para o caso concreto ante as regras e normas pré-existentes ou ainda ditadas espiritualmente – é possível remeter ao pater família do direito romano, ou mesmo ao líder espiritual de determinada comunidade, ao senhor feudal ou mesmo ao próprio rei da idade média, antes mesmo do surgimento da teoria da separação dos poderes de Montesquieu. Com a organização dos Estados Modernos, cada nação cuidou de organizar o seu sistema judiciário e estabelecer a quem, no aparato estatal caberia dizer o direito, o “iurisdictio”, a “iurisdicione”. Logicamente, muito houve de avanço e o sistema atual quase nada tem que ver com o seu passado, especialmente em sociedades que se fundam em Constituições que consolidam o Estado Democrático de Direito como é o caso do Brasil.

Certamente, a Constituição de 1988, resultado de grandes pressões e organizações populares pela redemocratização do país, tratou também de delinear um processo judicial também democrático que veio paulatinamente modificando até o advento do novo diploma processual, a saber o novo CPC/2015.

Mas, é importante ressaltar que, em que pese o comando constitucional do devido processo legal democrático, considerando os inúmeros ditames inseridos no artigo 5º, o jurisdicionado, sob a égide do antigo CPC de 1973, via-se, não raras vezes, surpreendido com decisões rasas dissonantes do caso concreto levado a juízo. O magistrado, imbuído num “egoísmo” pragmático – elemento anímico interno – reinava soberano e decidia o caso sem se dispor a enfrentar cada um dos argumentos ou mesmo as teses sustentadas pela parte. E, mesmo o dever de fundamentação das decisões já constando no texto constitucional, o livre convencimento do juiz fazia dos provimentos jurisdicionais um ato inconteste do julgador desatento dos anseios sociais. Nesse aspecto, ganha relevo mais uma vez, o magistério de Pedron e Costa (2017):

É fato que paradigma de processo trazido pelo CPC/73 desde muito já não era capaz de atender às necessidades da sociedade. (…). Outro, é o fato de o CPC/73 adotar como pano de fundo a chamada teoria relacionista do processo, inaugurada por Bülow no século XVII (…) tal teoria tem por base a implementação de um modelo processual apoiado no solipsismo judicial, no qual ao magistrado é atribuída uma constelação de poderes e faculdades para controlar o processo, acabando por assumir uma posição de superioridade sobre os demais partícipes na dinâmica processual (autor, réu, advogados, Ministério público, entre outros).[3]

Pelas razões expostas acima, o dever de fundamentação dos provimentos jurisdicionais é, para os operadores do direito, ante o NCPC extremamente desafiador pois inaugura um novo paradigma principiológico que extrapola a simples interpretação do artigo 93 do texto constitucional, indo além de simples exigência de fundamentação das decisões pelos órgãos do Poder Judiciário, sobretudo ante a possibilidade de tornarem-se nulos aqueles provimentos que desatenderem a esse comando, nos termos do artigo 489 do NCPC (BRASIL, 2015). Outrossim, Pedron e Costa (2017) asseveram que o novo modelo teórico introduzido pelo diploma processual atual:

[…] influencia sobremaneira a temática da fundamentação das decisões judiciais – bem como o devido tratamento aos princípios constitucionais processuais do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, do devido processo -, a despeito da exigência constitucional contida no artigo 93, inciso X, da Constituição de 1988.[4]

Observa-se, portanto que os princípios deixaram de ser usados apenas para colmatação de lacunas, vez que há, agora força normativa nos mesmos. Ainda, tem-se que a fundamentação seria uma a bem da verdade garantia de justiça, pois conforme preceitua Piero Calamandrei: “A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça quando consegue reproduzir (…) o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode facilmente encontrar-se (…) em que altura do caminho o magistrado se desorientou.”[5]

Nesse sentido, a fundamentação dos provimentos judiciais deve ultrapassar a mera exposição de motivos fáticos e jurídicos, ou ainda a alocação solta de súmulas e precedentes sem a devida tessitura e correlação com o caso concreto, sobrepujando o modelo anterior vez que o paradigma atual traz uma concepção de racionalidade própria. Então, podendo-se falar de “fundamentação racional das decisões jurídicas”. Além disso, os sujeitos da dinâmica processual ganham estatura e o NCPC lhes dá assento isonômico, lhes dá horizontalidade.

Assevera-se, que a dicção legal do artigo 489 da Lei 13.105/2005, obriga o magistrado a enfrentar ponto a ponto as teses e argumentos pelas partes, bem como o texto normativo, súmulas e precedentes, além de explicitar detidamente o que o levou a decisão que proferiu:

artigo 489. São elementos essenciais da sentença: (…) II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;[6] (grifo nosso)

Atentando para o fato introduzido no caput do artigo 489, sendo essenciais, para qualquer provimento, os elementos destacados nos incisos, a inexistência de quaisquer deles, pela desatenção do magistrado, reclamaria nulidade da decisão.

Nesse sentido, o novo paradigma instituído pelo NCPC/2015 realiza a superação do paradigma anterior, adotado pelo CPC/1973, pelo não acolhimento das demandas contemporâneas da sociedade, além de dotar de poderes plenos o magistrado quanto ao controle do processo e sua decisão judicial. Também, impõe à magistratura uma nova práxis no cotidiano da jurisdição, no que concerne o processo e etapas, além de instituir como demanda a fundamentação das decisões judiciais. Portanto, nesse contexto, para Bahia e Pedron (2016), o judiciário tem pela frente grandes desafios conforme apresentam abaixo:

Tratar sobre a fundamentação das decisões judiciais de forma que as mesmas sejam "substanciais" é um grande desafio para os que lidarão com o Direito nos próximos anos. Há todo um arcabouço doutrinário e jurisprudencial a ser (re)adequado em face das grandes expectativas colocadas pelo Novo Código de Processo Civil (NCPC) no tocante à matéria. Passamos muitos anos, no Brasil, reformando as leis processuais em sentido oposto (em boa parte das vezes) ao que o artigo 489 estabelece; isso porque, diante do grave problema da morosidade do Judiciário, a tônica das reformas dos anos 1990 e 2000 foi, em regra, a da aceleração dos procedimentos e da massificação das decisões, muitas vezes ao sacrifício das exigências dos princípios processuais constitucionais (notadamente o contraditório e a isonomia).[7]

Nesse diapasão, no que concerne o dever judicial de fundamentação dos provimentos, o dispositivo – artigo 489 do NCPC/2015 dispõe:

São elementos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.[8]

Destarte, segundo Theodoro Jr., Nunes, Bahia e Pedron (2015) observa-se que a concepção do NCPC/2015 impõe ao juízo dever de justificar a escolha por determinada decisão, evitando de tal sorte “o Ctrl V e Ctrl C” (copia e cola) do texto do ordenamento jurídico e dos julgados sem a devida tessitura textual e interpretativa e sua estreita correlação com o caso concreto. Assim, compreende-se a importância da fundamentação, por se prestar ao estabelecimento processual democrático e de consolidação da comparticipação dos sujeitos processuais, além de gerar benefícios, tais como: a diminuição dos índices de recursos e de economicidade jurisdicional; a fundamentação qualificada na perspectiva da nova prática decisória, do devido processo legal constitucional, contribui ainda para diminuir o número de julgados de casos idênticos; além de tornar-se efetiva garantia contra o arbítrio e a discricionariedade do juiz – afastamento da compreensão do Estado Social Liberal da decisão; levar em consideração os argumentos das partes envolvidas no processo na dimensão do contraditório e da ampla defesa – abarcando a compreensão do Estado Social Democrático de Direitos, ou seja, interpretação, na perspectiva de padrões decisórios que promovam a segurança jurídica.

Pretendeu-se através deste artigo tratar, mesmo que de modo breve – porém consistente, sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais ante o Novo Código de Processo Civil. Buscou-se destacar o caráter inovador do novo diploma processual ao tratar horizontalmente os sujeitos processuais (autor, réu, magistrado, Ministério Público, dentre outros), suplantado o velho paradigma da relação processual no qual imperava a discricionariedade jurídica. Espera-se que este trabalho tenha conseguindo destacar o relevo dado a uma dinâmica processual de comparticipação – que assegure contraditório e ampla defesa – através da qual todas as partes contribuem para a tessitura coerente, com o caso concreto, de um provimento jurisdicional.


1 Trabalho apresentado ao grupo de estudo/pesquisa de Processo Civil – PUC MINAS.

2 PEDRON, Flávio Quinaud; COSTA, Rafael. A fundamentação dos provimentos jurisdicionais no novo Código de Processo Civil: avanços e retrocessos. Scientia Ivridica. Nº 345. Tomo LXVI. Universiddade do Minho. Portugal. 2017.

3 PEDRON, Flávio Quinaud; COSTA, Rafael. A fundamentação dos provimentos jurisdicionais no novo Código de Processo Civil: avanços e retrocessos. Scientia Ivridica, Braga – Portugal, nº 345, tomo LXVI, p. 317 a 340, setembro/dezembro de 2017.

4 Ibidem.

5 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 9ª ed. São Paulo: Clássica Editora, s.d.

6 Lei 13.105 de 16 de março de 2015, estabelece o novo Código de Processo Civil Brasileiro.

7 BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. A fundamentação substancial das decisões judiciais no marco do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 256, p. 35-64, n. 2016. Disponível em <http://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/9779> Acesso em: 14 abr. 2019.

8 Lei 13.105 de 16 de março de 2015, estabelece o novo Código de Processo Civil Brasileiro

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