Direito Civil Atual

Como tomar decisões empresariais com a MP da "liberdade econômica"

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10 de junho de 2019, 8h00

Spacca
Não existe liberdade econômica sem segurança jurídica. A segurança jurídica, por sua vez, ao lado de outros fatores, exige a estabilidade e a previsibilidade na definição do direito aplicável.

Se este singelo postulado tem algo de verdadeiro, há fundadas razões para suspeitar que a MP 881/19, nominada de Medida Provisória da liberdade econômica, pode involuntariamente funcionar contra os objetivos que pretende alcançar.

Nos setores da MP 881/19 em que predominam mudanças no direito público, há bons presságios do desenho de uma administração pública menos hostil ao empreendedorismo.

No âmbito do Direito Privado, a MP 881/19 evidencia alterações no regime jurídico dos contratos empresariais, das sociedades empresárias e das pessoas jurídicas. Em outras palavras: a partir do dia 30.4.2019 a disciplina jurídica material desses assuntos mudou sensivelmente.

Mudou sensível, porém, provisoriamente.

Daí uma reflexão importante. Seria adequado alterar os institutos de direito privado por intermédio de uma medida provisória? Esta pergunta não é teórica, meramente acadêmica. Há relevantes consequências práticas para os brasileiros que pretendem empreender e necessitam de respostas seguras sobre o regime jurídico aplicável aos seus atos. 

A Constituição Federal, no artigo 62, §1º, ao vedar a edição de Medidas Provisórias acerca de diversos assuntos não interdita que o Direito Civil ou o Direito Empresarial seja transformado por essa figura legislativa.

A ausência de obstáculos legais, todavia, não torna esta via legislativa conveniente.

Alguns exemplos podem ser desassossegadores. Pela limitação de espaço desenvolverei apenas um: até o dia 29.04.2019, as sociedades LTDA (preferidas, no Brasil, para o empreendedorismo de pequeno e médio porte) somente poderiam ser constituídas mediante um contrato entre dois ou mais sócios.

A partir do dia 30.4.2019, essas mesmas sociedades empresárias passaram a poder ser constituídas mediante negócios jurídicos unipessoais (constituídas e desenvolvidas por apenas um sócio, que separaria um capital social para a atividade com a responsabilidade limitada de seu patrimônio pessoal).

Uma Medida Provisória tem eficácia por 60 dias, prorrogável por igual período. Se é assim, naturalmente, mostra-se relevante indagar: passados 120 dias, qual será o futuro de uma LTDA unipessoal criada, a partir de 30.4.2019, com fundamento na MP 881/19?

Essa singela pergunta que, convenhamos, qualquer empresário atento faria ao pensar em constituir uma LTDA unipessoal não tem resposta.

Não há como ter resposta.

Com um olho no Congresso Nacional e o outro na legislação brasileira é possível vislumbrar o tamanho da incerteza.

Quando o Poder Executivo cria uma Medida Provisória, o parlamento é chamado a realizar emendas ao novo texto legislativo. Neste específico caso, atento leitor, foram apresentadas nada mais nada menos do que 313 emendas parlamentares! Sim… A discussão no parlamento nem propriamente começou e já há 313 propostas de alteração da medida provisória.

O adjetivo provisório que nomina a medida legislativa ajuda a elucidar a projeção dos efeitos dessa mudança para o futuro. Além das possíveis alterações pelo parlamento (e de largada, lembremos, já se contam 313 emendas), caso a Medida Provisória não seja votada em 120 dias, a mesma perderá a sua eficácia.

Isto coloca um imaginário empresário, que precisa decidir hoje o que fazer com os seus recursos, diante de ao menos seis diferentes caminhos de previsão do futuro a respeito do direito que será aplicável à LTDA unipessoal:

a) o Congresso Nacional pode apreciar a Medida Provisória e convertê-la em Lei sem alterações;

b) o Congresso Nacional pode rejeitar a Medida Provisória por compreender a falta de requisitos para a edição dessa figura legislativa;

c) o Congresso Nacional pode silenciar ou não conseguir tempestivamente apreciar a Medida Provisória, resultando na perda de sua eficácia;

d) o Congresso Nacional pode alterar o texto da Medida Provisória e encaminhá-la para a sanção do Poder Executivo (essas possibilidades de alteração são completamente abertas e, de início, foram feitas 313 propostas…);

e) o Congresso Nacional pode disciplinar, por Decreto Legislativo, como devem ser tratadas as relações jurídicas constituídas com fundamento na Medida Provisória rejeitada, caduca ou alterada;

f) o Congresso Nacional poder disciplinar as situações transitórias (como exposto em “d”), tal prerrogativa também pode não ser exercida, situação na qual “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência continuarão sendo regidas pela MP”.

Um empresário imaginário tem em sua frente, portanto, ao menos seis diferentes possibilidades de direto aplicável para tomar uma decisão, sendo que em algumas delas, uma centena de outras sub hipóteses se apresentam viáveis e até mesmo prováveis (em decorrência das situações acima indicadas nas alíneas “d” e “e”).

Diante de seis diferentes possíveis “regimes jurídicos”, qual direito aplicar?

Suponhamos que o empresário imaginário tenha, de fato, constituído uma LTDA unipessoal, animado pela MP 881/19. Uma vez constituída esta figura personificada, diversos contratos foram realizados com trabalhadores, com fornecedores e com consumidores. O que ocorrerá no futuro com esta sociedade e com os contratos por intermédio dela celebrados?

Pode ser que esta figura societária seja apagada do direito brasileiro. É possível que, ao ser apagada, sejam imputados ao empresário (por decreto legislativo) custos que não foram previstos. É factível que esta figura seja alterada em termos que não mais interessem ao empresário imaginário e, inclusive, é viável que este modelo seja melhorado.

Esta indefinição é razoável?

Para os assuntos de Direito Privado, a MP 881/19, ainda que movida por nobres objetivos, acabou por criar um ambiente negocial de insegurança e imprevisibilidade. Mesmo que esta Medida Provisória acerte em outros segmentos (como na desburocratização para o desenvolvimento de atividades de pequeno risco), no que concerne às mudanças em direito dos contratos, em direito societário e pessoas jurídicas, o advento da MP 881/19 encaminha uma grande imprevisibilidade e insegurança nas relações empresariais.

E aviso aos navegantes! Não há nada de teórico nas reflexões e projeções aqui apresentadas. Há problemas muito práticos, que os advogados que atuam cotidianamente no direito empresarial bem conhecem, e que demandam efetivas respostas que, simplesmente, não podem ser encontradas para empreender com segurança.

Os institutos de direito privado (como os contratos, a propriedade e as sociedades) devem assegurar estabilidade às relações sociais. Há incontáveis contratos que foram celebrados antes, durante e depois da MP. Inúmeras sociedades foram e serão criadas antes, durante, e depois da edição de uma MP.

A indefinição acerca de qual o direito aplicável a estes contratos e a estas sociedades é incompatível com o ideal de equilíbrio e estabilidade que o ambiente de liberdade negocial exige. Daí porque, mesmo que não seja vedado alterar um Código Civil por Medida Provisória, tal providência deveria ser excepcional e resguardada aos casos de efetiva urgência e necessidade.

Se é verdade que a desaceleração da economia e o desemprego que assolam o país exigem mudanças urgentes (algumas, de direito público, acertadas na MP 881/19), não menos verdadeira é a inconveniência da modificação precipitada dos institutos de direito privado, que poderiam ser alterados ou melhorados pelo processo legislativo ordinário.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

 Rodrigo Xavier Leonardo é advogado e professor associado de Direito Civil na (UFPR) Universidade Federal do Paraná, mestre e doutor em Direito pela (USP) Universidade de São Paulo, e estágio de pós-doutorado na Universitá Degli Studi do Torino.

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    é advogado e professor associado de Direito Civil na (UFPR) Universidade Federal do Paraná, mestre e doutor em Direito pela (USP) Universidade de São Paulo, e estágio de pós-doutorado na Universitá Degli Studi do Torino.

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