Opinião

Max Weber e o semipresidencialismo da Constituição de Weimar

Autor

  • Filomeno Moraes

    é livre-docente em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas de Rio de Janeiro pós-doutor pela Universidade de Valência (Espanha); coorganizador das coletâneas "Fazendo valer as regras do jogo: contornos eleitorais e partidários instituições e democracia" (Fortaleza: Edições UFC 2018) e "Justiça Eleitoral controle de eleições e soberania popular" (Curitiba: Íthala 2016).

9 de junho de 2019, 7h32

1. A Alemanha e o fim da 1ª Guerra Mundial
A Constituição de Weimar foi sancionada pelo presidente da República Friedrich Ebert, em 11 de agosto de 1919, e entrou em vigor três dias depois. O processo constituinte transcorreu no ritmo frenético que a Alemanha vivenciou a partir dos últimos meses de 1918. De fato, como desdobramento da Revolução Alemã, em 12 de novembro, o Conselho dos Comissários do Povo, no Chamado ao Povo Alemão, designou o dia 19 de janeiro de 1919 para que ocorressem as eleições à Assembleia Nacional Constituinte e nomeou Hugo Preuss para a Secretaria do Interior, com a finalidade de elaborar anteprojeto de Constituição, a ser apresentado à futura Assembleia.

Em 9 de novembro de 1918, o kaiser Guilherme II abdicara, finalizando o II Reich Alemão. No mesmo dia, generais franceses e alemães assinaram o armistício que pôs fim à 1ª Guerra Mundial. Ainda neste dia, Maximiliano, príncipe de Baden, renunciou à chancelaria, sendo substituído por Friedrich Ebert, líder do Partido Social Democrático (Sozialdemokratische Partei Deutschlands – SPD). No dia anterior, na Bavária, sob a liderança de Kurt Eisner, socialista independente, proclamara-se uma república socialista, em que se propunha a coexistência de parlamento e conselhos. Ainda no dia 9, o deputado socialdemocrata Philipp Scheidemann, na varanda do Reichstag, proclamou a república na Alemanha e, a pouca distância e pouco tempo depois, Karl Liebknecht, um dos líderes do movimento esquerdista Spartacus, proclamou a Alemanha como uma república soviética[1].

2. Max Weber como teórico e analista de conjuntura
Entre os designados por Hugo Preuss para compor a comissão encarregada de elaborar o anteprojeto constitucional estava Max Weber (1864-1920), já reconhecido como um teórico rigoroso e um devotado pesquisador do Direito e da política, da economia e da sociedade. De 1898 a 1903, Weber manteve-se afastado da vida acadêmica, em virtude de um colapso nervoso, “e esse homem aparentemente vigoroso passava horas e horas sentando à janela, olhando o vazio”, segundo Reinhard Bendix[2], colapso que o levou a periódicas internações em hospitais psiquiátricos. Em 1904, foi um dos fundadores do Arquivo para a Ciência Social e a Política Social e publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, a que deu sequência com uma extensa produção teórica, empírica e metodológica. De 1914, Weber manifestou-se um entusiasta da guerra, inscrevendo-se, inclusive, como voluntário no Exército, todavia, no ano seguinte, tornou-se um pacifista. Em 1917, adepto da monarquia constitucional, passou a defender o parlamentarismo. Em 1918, foi um dos fundadores do Partido Democrático Alemão (Deustche Demokratische Partei – DDP), de extração liberal, e, ano seguinte, foi candidato, sem sucesso, nas eleições para a Assembleia Constituinte.

Não é temerário afirmar que a intervenção mais aguda de Weber na “política alemã” deu-se nos anos de 1916 a 1919, quando, entre outros, vieram à luz os seguintes títulos, com repercussão relevante no processo político da época: 1916 – Entre Duas Leis; 1917 – Sufrágio e Democracia na Alemanha; 1917 – Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada; 1918 – O Socialismo; 1919 – O Presidente do Reich; 1919 – A Política como Vocação[3].

3. Max Weber e o semipresidencialismo da República de Weimar
A participação mais decisiva de Weber no processo constituinte deu-se na comissão que se reuniu no Ministério do Interior, nos dias 11 e 12 de dezembro de 1918. Marianne Weber, na biografia do marido, relata que, “ao mesmo tempo que apareciam os ensaios constitucionais de Weber, o novo ministro […] do Interior, doutor H. Preuss, punha-se a redigir uma constituição para o Reich”, tendo convidado “um reduzido grupo de expertos, entre eles Weber, para uma conferência secreta”, salientando que “este era o tipo de tarefa que Weber desejara”.

Nas impressões que a biógrafa transcreve, Weber considerava que “Preuss está fazendo muito bem a sua tarefa. É um homem muito sagaz. Tudo deverá estar pronto amanhã [dia 12]; é provável que nunca se haja feito com tal rapidez uma ‘constituição’”. Mas não descartava a possibilidade de que “tudo terminasse no lixo”. No dia seguinte, observava não só que “a constituição do Reich está pronta”, mas fundamentalmente que “é muito similar a minhas propostas”. Por fim, no dia 13, relata que “foi um trabalho esgotante de dia inteiro, com gente muito sagaz” e que “foi um prazer, de segunda a terça-feira à noite”, concluindo satisfeito: “Hoje dormi a noite inteira pela primeira vez (13 de dezembro de 1918)”[4].

A adoção pela Constituição de Weimar daquilo que Maurice Duverger denominaria “regime semipresidencial”, colocando, inclusive, a República de Weimar no topo da sua plêiade[5], estará inevitavelmente associado a Weber. Segundo Juan Linz, “a primeira formulação dos argumentos para a introdução de tal sistema pertence a Max Weber e, com algumas diferenças de enfoque, a Hugo Preuss, o homem que planejou a Constituição de Weimar”[6]. Por sua vez, destaca Bahro que, se Weber não inventou o semipresidencialismo, foi o primeiro a desenvolver uma teoria e uma legitimação para tal tipo de regime[7].

De fato, parece estar mesmo vinculada a Weber, na Alemanha, a eleição presidencial por sufrágio popular, com a teoria política de um regime aliando um presidente plebiscitário, investido de poderes substantivos, a um governo da confiança do parlamento, um “governo plebiscitário-representativo”. Para Wolfgang J. Mommsen, Weber vislumbrava no Reichspräsident a chave do sistema constitucional da República de Weimar, atribuindo-lhe o papel do grande líder cesarista, indispensável numa democracia de massas moderna[8].

Ao fim e ao cabo, a ideia weberiana de um presidente eleito pelo sufrágio universal acabou por orientar o artigo 48 da Constituição de Weimar. E resultou na atribuição de um feixe de competências ao presidente como nomear e demitir o chanceler e seu gabinete; dissolver o Reichstag; fazer uso a qualquer tempo dos poderes emergenciais. Ademais, segundo o artigo 45, era o supremo-comandante das Forças Armadas, nomeando os seus oficiais e possuindo competência para tomar as "medidas apropriadas", incluindo o uso das Forças Armadas e a suspensão dos direitos fundamentais, quando ocorresse algum distúrbio relevante na ordem ou segurança públicas.

4. Max Weber e os pósteros
A obra teórica e metodológica de Weber acabou por ganhar grande prestígio dentro e fora da Alemanha, e o pensador ganhou lugar destacado na galeria dos “clássicos”. Depois da 2ª Guerra Mundial, desenvolveu-se a controvérsia sobre o suposto papel de Weber no que diz respeito à antecipação do nazismo, com o clímax do debate ocorrendo durante a conferência comemorativa do centenário do seu nascimento, no ano de 1964, em Heidelberg.

Pretendeu-se, ali e em outros lugares, fazer uma vinculação — ligeira, descontextualizada e irresponsável — do pensador do Estado e da Constituição com a crise permanente da República de Weimar (1918-1933) e os poderes que o artigo 48 atribuía ao presidente da República, poderes que se exponenciaram com a chegada de Adolf Hitler ao poder, em 1933. Em tal guerra, contudo, talvez os contra-argumentos em favor de Weber tenham sido os vencedores, nomeadamente quando se indicam a sua oposição ao antissemitismo, a sua defesa da liberdade acadêmica, as suas críticas às lideranças alemãs durante a 1ª Guerra Mundial, a sua admiração pelas culturas liberais da Inglaterra e dos Estados Unidos, a sua ojeriza ao racismo e a sua preocupação com os oprimidos e impossibilitados de decidir a vida livremente[9].

Por tudo, deve ser salientada a sua confiança na política como a arte de evitar que o convívio humano se transforme em um inferno, encarecendo-se as suas palavras relativas à vocação da política[10]: “Fazer política significa perfurar lenta e energicamente tábuas duras com uma combinação de paixão e senso de proporção. É certo afirmar — e toda a experiência histórica confirma — que não se teria alcançado o possível se, neste mundo, não se tentasse o impossível”.


Referências
BAHRO, Horst. A influência de Max Weber na Constituição de Weimar e o semipresidencialismo português como sistema político de transição. Análise Social, Lisboa, v. XXXI, nº 138, p. 772-802, 1996.
BENDIX, Reinhard. Max Weber. Trad. Maria Antonia. A. de Grant. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Trad. Liszt Vieira; Marcus Lessa. Rio Janeiro: Record, 1999.
DUVERGER, Maurice. Échec au roi. Paris: Albin Michel, 1978.
HAJO, Holborn. A history of modern Germany (1840-1945). Princeton: Princeton University Press, 1982.
KLEIN, Claude. Weimar. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995.
LINZ, Juan J. Presidential or parliamentary democracy: does it make a difference? In: LINZ, Juan J.; VALENZUELA, Arturo (Ed.). The failure of presidential democracy: comparative perspectives. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994. v. I. p. 3-87.
MOMMSEN, Wolfgang J. Max Weber and German politics (1890-1920). Translated by Michael S. Steinberg. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
RADKAU, Joachim. Max Weber: la pasión del pensamiento Trad. Edda Webels. México, DF: FCE, 2011.
WEBER, Marianne. Biografía de Max Weber. Trad. María Antonia Neira Bigorra. México, DF: FCE, 1995.
WEBER, Max. Escritos políticos. Trad. Regis Barbosa; Karen E. Barbosa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.


[1] Os dados sobre o processo político alemão e os dados biográficos concernentes a Max Weber, utilizados neste ensaio, foram colhidos em: BENDIX, Reinhard. Max Weber. Trad. Maria Antonia A. de WHAJO, Holborn. A history of modern Germany (1840-1945). Princeton: Princeton University Press, 1982; KLEIN, Claude. Weimar. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995; MOMMSEN, Wolfgang J. Max Weber and German politics (1890-1920). Translated by Michael S. Steinberg. Chicago: The University of Chicago Press, 1990; RADKAU, Joachim. Max Weber: la pasión del pensamiento. Trad. Edda Webels. México, DF: FCE, 2011; WEBER, Marianne. Biografía de Max Weber. Trad. María Antonia Neira Bigorra. México, DF: FCE, 1995.
[2] BENDIX, Reinhard. Max Weber. Trad. Maria Antonia. A. de Grant. Buenos Aires: Amorrortu, 2012, p. 26.
[3] Versando também matéria político-constitucional, Weber publicou, em 1905, Sobre a democracia constitucional na Rússia, o qual, juntamente com os textos a que se refere esta nota, e mais O Estado nacional e a política econômica (1895) e A ciência como vocação (1919), estão compilados em: WEBER, Max. Escritos políticos. Trad. Regis Barbosa; Karen E. Barbosa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
[4] WEBER, Marianne. Biografía de Max Weber. Trad. María Antonia Neira Bigorra. México, DF: FCE, 1995, p. 582. Horst Bahro assevera: “Tanto quanto sei, [Hugo Preuss] não o consultou durante as deliberações de Weimar na Assembleia Nacional Constituinte alemã e o seu nome não foi mencionado nas sessões das comissões nem no plenário!”. BAHRO, Horst. A influência de Max Weber na Constituição de Weimar e o semipresidencialismo português como sistema político de transição. Análise Social, Lisboa, v. XXXI, nº 138, 1996, p. 782.
[5] DUVERGER, Maurice. Échec au roi. Paris: Albin Michel, 1978.
[6] LINZ, Juan J. Presidential or parliamentary democracy: does it make a difference? In: LINZ, Juan J.; VALENZUELA, Arturo (Ed.). The failure of presidential democracy: comparative perspectives. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994, v. I, p. 49.
[7] BAHRO, Horst. A influência de Max Weber na Constituição de Weimar e o semipresidencialismo português como sistema político de transição. Análise Social, Lisboa, v. XXXI, nº 138, 1996, p. 780.
[8] MOMMSEN, Wolfgang J. Max Weber and German politics (1890-1920). Translated by Michael S. Steinberg. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
[9] DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Trad. Liszt Vieira; Marcus Lessa. Rio Janeiro: Record, 1999, p. 321-322.
[10] WEBER, Max. Escritos políticos. Trad. Regis Barbosa; Karen E. Barbosa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 463.

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    é livre-docente em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas de Rio de Janeiro, além de professor titular da pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor).

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