Opinião

Improbidade e transação são institutos excludentes?

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7 de junho de 2019, 9h42

Spacca
A regência atual da improbidade administrativa lança, na literalidade do artigo 17, parágrafo 1º, da Lei 8.429/1992, disposição contundente: “é vedada a transação, acordo ou conciliação”. O contexto atual, contudo, não convida a que se placite a norma acriticamente, sem que a se ponha em dúvida.

Isso porque o indigitado dispositivo foi cunhado ainda em 1991 — há quase três décadas, portanto —, quando a conjuntura jurídica, política e social de combate aos atos ímprobos era completamente diversa do atual. Bem ilustra esse asserto a exposição de motivos aludida Lei 8.429/1992[1], subscrita pelo então ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, que guindava o diploma a parte integrante de um “processo de modernização do País”.

Dali em diante, sem embargo, o ordenamento nacional passou gradativamente a abandonar o dogma de uma impossibilidade absoluta de transação em demandas integradas pela administração pública e tendo por objeto direto ou indireto seu patrimônio.

Esse movimento, influenciado sobretudo pelas técnicas de Justiça penal consensual inauguradas pela Lei 9.099/1995 (notadamente, a transação penal e a suspensão condicional do processo), teve como fase importante a aprovação das leis 12.846/2013 e 12.850/2013, que, junto à Lei 8.429/1992, compõem o microssistema de combate a atos lesivos à administração pública e regulamentam, respectivamente, os acordos de leniência e de colaboração premiada.

Na seara processual civil, a Lei 13.105/2015, aplicável subsidiariamente ao procedimento especial da ação de improbidade por força do artigo 318, parágrafo único, e de entendimento jurisprudencial ainda anterior[2], estabeleceu em seu artigo 3º, parágrafo 3º, que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.

Na moderna quadra do Direito Administrativo não foi diferente: a noção de uma espécie intangível de indisponibilidade do interesse público tem sido gradativamente atenuada, não sendo mais possível conceber uma supremacia “sobre o privado como sendo óbvia, evidente ou mesmo inerente ao sistema jurídico”[3].

Essa verdadeira mudança de paradigma repercutiu na resolução de disputas, como testemunham Tomás-Ramón Fernández e Garcia de Enterría ao tratar da chamada administração concertada: “A Administração renunciaria ao emprego de seus poderes com base na imperatividade e unilateralidade, aceitando realizar acordos com os particulares destinatários da aplicação concreta desses poderes, ganhando assim uma colaboração ativa dos administrados (…)”[4]. Daí as mudanças, no campo legislativo, introduzidas pelo artigo 23-A da Lei 8.897/1995 (criando a possibilidade do “emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato [de concessão], inclusive a arbitragem”), cuja ratio foi reproduzida mais tarde pelos artigos 11, III, da Lei de Parceria Público-Privada (11.079/2014) e 31, parágrafo 4º, da Lei 13.448/2017 e reafirmada pelas leis 13.129 e 13.140, ambas de 2015.

A “disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais não encontra correlação com a disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público”[5]. Foi perdendo campo, assim, visão retrógrada a relacionar o resguardo ao interesse público indissociavelmente ao poder de império estatal.

Ao longo desse processo, naturalmente, os fatos se impuseram, repercutindo na valoração jurídica impregnada na norma; na lição de Reale, “o Direito se caracteriza por sua estrutura tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico”[6]. Mercê dessa interação, o significante-dispositivo, inobstante inalterado, foi vendo mudar seu significado-normativo, notadamente à luz de uma interpretação sistemática do ordenamento, que, aliás, guiou decisão emanada do Juízo da 5ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR[7]:

O art. 17, §1º, da Lei 8.429/92 veda a “transação, acordo ou conciliação” nas ações de improbidade administrativa. Se em 1992, época da publicação da Lei, essa vedação até se justificava tendo em visa que estávamos engatinhando na matéria de combate aos atos ímprobos, hoje, em 2015, tal dispositivo deve ser interpretado de maneira temperada.

Isso porque, se o sistema jurídico permite acordos com colaboradores no campo penal, possibilitando a diminuição da pena ou até mesmo o perdão judicial em alguns casos, não haveria motivos pelos quais proibir que o titular da ação de improbidade administrativa, no caso, o MPF pleiteia a aplicação de recursos semelhante na esfera cível.

O tema também já foi esgrimido na doutrina, merecendo abordagem de Fredie Didier Jr. e Daniela Bomfim[8] já reconheceram a incompatibilidade do artigo 17, parágrafo 1º, da Lei 8.429/1992 com o atual ordenamento jurídico:

O art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/1992 proíbe expressamente “transação, acordo ou conciliação” no processo de improbidade administrativa. Ele fora, oportunamente, revogado pela Medida Provisória nº 703/2015. Sucede que a MP caducou, em maio de 2016, pela não apreciação dela pelo Congresso Nacional.

Mas isso não é obstáculo a que se reconheça a possibilidade de autocomposição no processo da ação de improbidade administrativa. O parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/1992 já estava obsoleto.

Importaria, nada obstante, identificar por que via legitimar o afastamento do parágrafo 1º do artigo 17, eis que não declarado inconstitucional. A solução: dada a antinomia aparente entre aquele dispositivo e o artigo 36, parágrafo 4º, da Lei 13.140/2015, prevaleceria a máxima lex posteriori derogat legi priori, positivada pelo artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

É que a incompatibilidade entre o mencionado artigo 17, parágrafo 1º, e o ordenamento produz, é certo, diversas incongruências: por exemplo, a possibilidade de transação prévia (termo de ajustamento de conduta), mas não no curso da ação; ou a necessidade de que a ação de improbidade prossiga, ainda que com efeitos meramente declaratórios, frente à celebração de leniência. Porém, talvez seja o citado artigo 36, parágrafo 4º que forneça o estado da arte dessa discrepância, passível, pois, de ser eleito como paradigma normativo de evidenciação da incompatibilidade a conduzir à revogação tácita.

Seja como for, o ponto não escapou ao projeto de alteração da lei de improbidade (PL 10.887/2018), por meio do qual se propôs a previsão cabal da possibilidade de soluções consensuais entre as partes envolvidas:

Art. 17. (…)

§ 7º Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias. (…)

Art. 17-A. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados: I – o integral ressarcimento do dano; II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados; III – o pagamento de multa. § 1o Em qualquer caso, a celebração do acordo levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso. § 2o O acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade. § 3o As negociações para a celebração do acordo ocorrerão entre o Ministério Público e o investigado ou demandado e o seu defensor. § 4º O acordo celebrado pelo órgão do Ministério Público com atribuição, no plano judicial ou extrajudicial, deve ser objeto de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil. § 5º Cumprido o disposto no parágrafo anterior, o acordo será encaminhado ao juízo competente para fins de homologação.

De mais interessante, destacamos na proposta o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa lesada da vantagem indevidamente obtida, o que esvazia ainda mais uma visão ortodoxa da indisponibilidade do interesse público, e homologação do acordo pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil (as chamadas câmaras de coordenação e revisão).

Questão interessante, e à qual retornaremos, reside em saber a eficácia do virtual acordo, nos termos da proposta, perante os demais membros do Ministério Público, ciosos de sua independência funcional. Na semana que vem, exploraremos essa vereda.

*Agradecemos penhoradamente às contribuições de pesquisa feitas pelo colega Victor Hugo Gebhard de Aguiar.


[1] Disponível aqui.
[2] REsp 1.098.669/GO, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, DJe 12-11-2010.
[3] Carlos Henrique da Costa Leite apud MARTINS, André Chateaubriand. Arbitragem e Administração Pública em CAHALI, Francisco José et. al. Arbitragem: Estudos sobre a Lei n. 13.129, de 26.05.2015. São Paulo: Saraiva, 2016. p 74.
[4] FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Curso de derecho administrativo. Madrid: Civitas, 1999, p. 661.
[5] ZAKIA, José Victor Palazzi. Um panorama geral da reforma da Lei de Arbitragem: o que mudou com a Lei Ordinária n. 13.129/2015. Revista Brasileira de Arbitragem. N. 51, jul-set.2016. p. 41. Em sentido idêntico, ver MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Arbitragem nos Contratos Administrativos. RDA 218:84, jul./set., 1997.
[6] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 67.
[7] Autos do processo n. 5006717-18.2015.4.04.7000/PR.
[8] DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. A colaboração premiada como negócio jurídico processual atípico nas demandas de improbidade administrativa. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Ano 17, n. 67, (jan./mar. 2017). Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 116.

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  • Brave

    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

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    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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