Opinião

O consequencialismo jurídico e o artigo 20 da Lindb

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7 de junho de 2019, 6h13

Não é de hoje que os argumentos consequencialistas vêm gerando debate, principalmente entre aqueles que atuam no contencioso.

A discussão ganhou especial relevo na medida em que avança no mundo o estudo do Law and Economics, demandando, dos operadores do Direito, análise dos efeitos práticos das decisões para as partes, em especial nos casos em que há grande repercussão econômica. Em outras palavras, as consequências das decisões, sejam judiciais ou administrativas, devem ser levadas em consideração no momento de decidir e argumentar.

No Brasil, o consequencialismo foi introduzido no ordenamento com a publicação da Lei 13.655/15, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) para trazer “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”. Nesse contexto, foi incluído o artigo 20, que dispõe que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Na íntegra:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.

A alteração legislativa, decorrente do Projeto de Lei 7.448/17, teve o propósito de atacar decisões que se afastam das normas jurídicas, baseando-se apenas em argumentos principiológicos.

Conforme parecer da CCJ da Câmara, tal mudança se justificou pela falta de capacidade de as normas regularem todas as atividades humanas, cabendo aos operadores do Direito interpretá-las e aplicá-las com base em princípios e direitos fundamentais. De acordo com o relatório, apesar de os princípios se adaptarem melhor à complexidade da sociedade, sobretudo num momento de evolução tecnológica, sua simples aplicação conferiria “margem para amplas divergências interpretativas e contribui para o aumento da insegurança jurídica”.

Nessa premissa foi editado referido artigo, cujo propósito, de acordo com Carlos Ari Sundfeld e Bruno Meyerhof, é que os órgãos julgadores incorporem o pensamento “político” em suas decisões (espécie de avaliação dos goals to persuit[1] do ordenamento)[2].

É certo que existem questionamentos quanto à constitucionalidade e legalidade da norma, tal como defendido pelo TCU no Parecer 012.028/2018-5, com base nos seguintes argumentos: (i) a imposição de que as decisões levem em consideração aspectos externos aos trazidos pelas partes no processo; (ii) que as normas processuais existentes, em especial os parágrafos 1º e 3º do artigo 489 do CPC/15, já impossibilitam as decisões meramente principiológicas; (iii) a impossibilidade de os tomadores de decisão anteciparem os efeitos das decisões; e (iv) a ausência de critérios para a valoração sobre quais consequências têm maior ou menor relevância[3].

Contudo, o novo artigo parece exigir do magistrado a aplicabilidade prática daquilo que está sendo decidido, conferindo tangibilidade ao direito perseguido. Veja que, diferentemente do que sustenta o TCU, a norma não impõe ao juiz, seja judicial, seja administrativo, trazer elementos fora do processo, mas que meça, com base nos elementos trazidos pelas partes, a consequência prática de sua decisão de forma a garantir a efetiva prestação jurisdicional, reduzindo os casos jocosamente conhecidos como “ganhou, mas não levou”. Respeitado os posicionamentos diversos, nos parece que a novidade está alinhada com todas as demais normas, inclusive as citadas pelo referido parecer, eis que (i) o juiz deverá se posicionar quanto às consequências a ele apresentadas; (ii) está em linha aos dispositivos do CPC mencionados; (iii) garante previsibilidade para ambas as partes, conferindo maior segurança jurídica; e (iv) ponderação do princípio da razoabilidade para valoração dos impactos da decisão.

Em nosso sentir, a norma demanda ao juiz aproximar a alegação principiológica do caso em análise, avaliando-se a exata consequência de sua aplicação diante da realidade posta, tal como exposto no Parecer 22/2017 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, quando ficou consubstanciado que os artigos 20 e 21 da norma disciplinam exigências “de que os administradores, ao praticarem atos administrativos, o façam com motivação concreta, o que traz um ganho de qualidade para as decisões (especialmente administrativas e tributárias), pois se passa a exigir não só alguma motivação, mas uma que seja específica”.

Esse entendimento também foi exposto no parecer de resposta aos comentários tecidos pelo TCU ao PL 7.448/17 preparado por inúmeros juristas[4], que, em resumo, destaca a importância dos artigos para vedar motivações decisórias entendidas como vazias, as quais se utilizam apenas de retórica, ou que se fundam em princípios sem análise prévia dos fatos e os impactos dessa decisão para os envolvidos. “É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisório, analisar problemas, opções e consequências reais. Afinal, as decisões estatais de qualquer seara produzem efeitos práticos no mundo e não apenas no plano das ideias.”

Superada essa questão, fato é que o disposto acrescenta novo elemento a ser observado nos julgamentos, impondo aos juízes observar eventuais impactos práticos e econômicos em suas decisões, com intuito de trazer maior segurança jurídica ao sistema legal.

A forma como o dispositivo será aplicado pelas autoridades ainda é uma incógnita (se é que será aplicado), porém o seu objetivo nos parece ser justamente o de inibir o afastamento de normas jurídicas pelos órgãos julgadores — administrativos ou judiciais —, proporcionando maior segurança jurídica e preservando as decisões legislativas em detrimento daquelas judiciais meramente principiológicas, sem se atentar às suas consequências.

Em decisão proferida na MC 5.257, o ministro Toffoli, ao determinar a suspensão de decisão proferida que havia garantido a permanência de empresas no regime tributário da Lei 12.546/11 (CPRB) durante o ano de 2018, fundamentou-se essencialmente em argumentos consequencialistas relativos aos danos aos cofres públicos que a liminar geraria, conforme se observa do seguinte trecho:

A execução imediata da decisão judicial ora combatida impacta direito de interesse coletivo relacionado à ordem e à economia públicas, pois implica alteração da programação orçamentária da União Federal (…).

Isso porque, além da redução da arrecadação de contribuição de empresas à Seguridade Social (correspondente à renúncia fiscal decorrente da modificação da base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo da empresa), a decisão no AI (…) produz efeitos imediatos nas contas públicas, tendo em vista o dever legal da União de “[compensar] o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração”.

(…)

Ademais, a decisão objeto do presente pedido de contracautela foi proferida em sede de mandado de segurança coletivo, circunstância que, somada ao risco de efeito multiplicador (…), constitui fundamento suficiente a revelar a grave repercussão sobre a ordem e a economia públicas e justificar o deferimento da liminar pleiteada.

Apesar de não mencionar expressamente o artigo 20 da Lindb, a decisão proferida parece ter se orientado nas mesmas razões que motivaram a edição da aludida norma, ao privilegiar uma análise econômica e fiscal em detrimento de uma análise puramente jurídica, invocando princípios como boa-fé e previsibilidade.

Obviamente o posicionamento não é imute à críticas, mas é visível na decisão a argumentação consequencialista de efeitos práticos (em tese alinhada ao comando do artigo 20 da Lindb) realizada pelo ministro, que em momento algum enfrentou a questão central debatida no processo.

Em que pese a decisão ter sido concedida em caráter precário, não nos parece que essa forma seja a mais adequada de aplicação do consequencialismo, eis a ausência quase absoluta de base jurídica a lastrear sua decisão.

Nosso entendimento é o de que o argumento pela consequência, introduzido na Lindb, deve guardar relação com as bases do direito em análise, bem como ser trazido pelas partes e comprovado de maneira a habilitar a contraprova pela parte contrária. Simplesmente alegar “grave repercussão sobre a ordem e economia pública” e especular “efeito multiplicador” parece esvaziar o fundamento que deu lastro ao artigo 20 e 21, de forma a tão-somente deslocar a invocação principiológica para justificativas econômicas sem qualquer lastro.

Quando se argumenta pelas consequências, em especial fundamentando-se no Law and Economics, é imprescindível que se identifique os elementos que embasaram a decisão, bem como os combine com os demais dispositivos legais que justifiquem a posição sustentada.

Todavia, com a nova norma, mister nos adaptarmos às posições, muitas vezes vazias e meramente especulatórias, que privilegiem “consequências práticas” das decisões, numa espécie de Law and Economics tupiniquim.


[1] MACCORMICK, Neil – On legal decisions and their consequence: from Dewey to Dworkin. In: NEW YORK UNIVERSITY LAW REVIEW. p.243.
[2] In Revista de Dir. Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 14, n.54, p.209-211, abr/jun 2016.).
[3] https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81881F62B15ED20162F95CC94B5BA4&inline=1
[4] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdfFloriano De Azevedo Marques Neto; Carlos Ari Sundfeld; Adilson De Abreu Dallari; Maria Sylvia Zanella Di Pietro; Odete Medauar; Marçal Justen Filho; Roque Carrazza; Gustavo Binenbojm; Fernando Menezes De Almeida; Fernando Facury Scaff; Jacintho Arruda Câmara; Egon Bockmann Moreira; José Vicente Santos De Mendonça; Marcos Augusto Perez; Flavia Piovesan; Paulo Modesto; André Janjácomo Rosilho; e Eduardo Ferreira Jordão.

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