Senso Incomum

Precedentes? Uma proposta aos ministros Schietti, Mussi e Sebastião

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6 de junho de 2019, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Explico o mote da coluna. Matéria — excelente — de Fernanda Valente, na ConJur, tem a seguinte chamada: “Tribunais ainda resistem a aplicar precedentes do STJ, dizem ministros”. Para ministros da 6ª Turma do STJ, essa “resistência” é “uma das maiores causas do excesso de processos e demora na prestação jurisdicional”. Ou seja, os ministros se queixam de que seus precedentes não são cumpridos. É isso que está na matéria.

Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, a “cultura de precedentes” (?) é “nova” no Brasil. Essa “cultura”, dirá o ministro, “veio para permitir que o juiz, já no início do processo, analise a demanda”.

Escrevi bastante sobre o assunto “precedentes”. O livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica (segunda edição) trata só disso. Também meu Dicionário de Hermenêutica trata do assunto. Falei em tantos artigos, em periódicos, que já perdi a conta. Só neste ano foram dois, só sobre isso.[1] Mas o assunto é recorrente.

Vamos lá, ministros. Vou tentar colaborar para termos maior clareza na temática. Afinal, a academia e a doutrina devem servir para alguma coisa.

Senhores, talvez haja “resistência” na aplicação de precedentes porque não haja precedentes. Pronto. Ouso dizer que, do modo como está posta, a “cultura de precedentes” não vai pegar. Como já não “pegou”.

Por quê? Porque nós não temos uma cultura de precedentes. O que quero dizer, calcado em uma boa doutrina nacional e estrangeira — e o faço com toda a lhaneza epistêmico-acadêmica — é que o que o STJ e o STF estão fazendo não são “precedentes”. Claro que não explicarei amiúde isso aqui neste pequeno espaço, sendo que, para isso, escrevi o livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica. Mas tentarei adiantar algumas questões.

O que é um precedente? Pre-cedente; precede. Pode ser uma platitude, porém é preciso dizer que precedente advém de uma decisão pretérita que é reconhecida como vinculante, na tradição autêntica do common law.

O que nós temos no Brasil? Teses, que não passam de enunciados ou enunciações. Aliás, as matérias mais lidas nos sites jurídicos são quando são publicadas novas teses dos tribunais. Teses — que não são precedentes — de tribunais superiores, levem o nome que for, que já “nascem” com esse viés prospectivo. E esse é o equívoco.

Explico. O que se tem são teses gerais e abstratas que são criadas já visando uma posterior aplicação. Com isso, o tribunal acaba por imitar o legislador. E tudo começa de novo. Talvez seja por isso que juízes e tribunais não obedeçam a algo que não seja, mesmo, precedente.

Que não se entenda minha crítica como uma digressão, porque está diretamente relacionada ao ponto. Essa “cultura de precedentes” é exatamente uma importação equivocada, porque feita pela metade.

Primeiro: não se importa cultura. Cultura nova? Ora, alguém acha que o precedente, no common law, veio da noite pro dia? (Aqui veio.) Uma tradição se constitui enquanto tradição. Simples.

Precedente legítimo, em uma verdadeira “cultura de precedentes”, não nasce; torna-se. Precedente não tem certidão de nascimento. No common law o tribunal não termina o julgamento e diz: agora vamos fixar a tese. Um precedente legítimo é reconhecido como vinculante a partir da atividade decisória subsequente que relaciona um caso a outro. Alguém dirá: mas isso é no common law. Aqui é o Brasil. Respondo: Concordo. Mas então temos que discutir melhor a própria palavra. Porque aqui se quer abrasileirar sem perder a origem. E isso dá um ornitorrinco jurídico. Uma coisa que quer ser, mas não é.

No Brasil, e digo isso — insisto — com toda a lhaneza e respeito acadêmico, precedente tem sido visto como “precedente sem caso”. “Precedente pro futuro”. “Precedente com força de (nova) lei”. Como se o “precedente” fosse uma lei. Um mero conceito. Foi isso que levou Portugal a inquinar de inconstitucional os assentos, como discuto na nota 1, retro.

Precedente com força de lei, pro futuro, sem caso: é isso que temos. De tempos em tempos, o STJ lança tantas teses sobre o assunto tal. São apenas enunciados, Mas, enunciados sobre o quê? Precedentes que acabam como conceitos sem coisas.

Vamos fazer um distinguishing de uma tese prospectiva dessas de que jeito? Que precedente é esse? Como se distingue um caso de… um não-caso?!

Quando o conceito é baseado em nada, pode-se dizer qualquer coisa. Vemos coisas assim todos os dias. Tem uma súmula (falo da SV 11, do STF). É vinculante. Um juiz não pode divergir do STF. OK? Mas “a referida súmula admite que as particularidades da causa amparem o uso de algemas”. Quais? Quem olhar o link acima verá que o ministro Edson Fachin negou reclamação a um maneta (acusado com um só braço — a foto está no link) que foi algemado com base na Súmula 11 que, na espécie, justamente proíbe o algemamento. A “fundamentação” é tão standard que chega a ter “no(s) custodiado(s). A “fundamentação” já vem pronta. Serve para um ou mais custodiados…! Resultado — e aqui a prova de que “não existe uma cultura de precedentes”: o juiz que mandou algemar não deu bola para o “precedente”. Reclamaram para um dos editores da SV11 –— um ministro do STF — que também não deu bola para a súmula.

Onde está o precedente? Cada juiz e até mesmo cada ministro dá o sentido ao “precedente” (não vou discutir a obviedade de que precedentes é que conformam uma Súmula — portanto, já que uma SV só se forma quando há precedentes, a SV é hierarquicamente superior a um “precedente” — eis a extrema complexidade da questão e que por isso não pode esse assunto todo ser resumido ao fato de termos ou não “precedentes”) que quer. Assim como Humpty Dumpty dá às palavras o sentido que quer.

Por isso, ilustres ministros, parafraseando o título da escritora Lionel Schriver do famoso livro Precisamos Falar sobre Kevin, ouso dizer que Precisamos Falar Sobre os Precedentes. A sério. Peço que os tribunais deem uma chance à academia. E à doutrina. Queremos ajudar.

Vamos falar sobre “precedentes” — mas a partir da coerência e da integridade. Para que não mais nos queixemos de que “ninguém está obedecendo nossos precedentes”.

O que quero dizer à comunidade jurídica é que é sempre uma questão de particularidades da causa. E é exatamente isso que invalida a tese dos “precedentes à brasileira” que não tem caso concreto.

O Direito é sempre uma questão de facticidade. O fenômeno só se dá em seu tempo, em suas circunstâncias. Essas teses — do modo como são feitas hoje nos tribunais superiores — nada mais são, permitam-me dizer, do que insistir num paradigma oitocentista.

Isso não quer dizer que não existam milhares de casos semelhantes. Todavia, há que se ter coerência na sua interpretação. E que se saiba o que vincula, mesmo, no julgado que podemos chamar de “precedente”. E que o “precedente” não seja aquilo que o aplicador disser que é, como no caso do maneta das algemas, em que nem o juiz e nem o ministro obedeceram ao “precedente”.

Vou resumir numa frase: não existe respostas antes das perguntas. Ponto. E quando não há perguntas, as resposta servem pra qualquer coisa. Vai sempre ter uma súmula pra tudo. Vai ter sempre uma tese pra tudo. E pra nada.

Ora, é óbvio que precisamos de segurança jurídica. Por isso insisti para que fosse introduzido no CPC o artigo 926. Precisamos, sim, de previsibilidade. Necessitamos de uma racionalidade mínima que permita um ordenamento estruturado sobre e sob um princípio de fairness (equanimidade).

O que não precisamos é de um instituto de precedentes-que-não-são-precedentes, com força de lei, vinculantes, pro futuro, instituído da noite pro dia. Precedentes não são precedentes pelo simples fato de serem nominados como teses-precedentes, como Austin e Hobbes diziam que auctoritas non veritas facit legem, no que hoje o STJ e o STF parecem ter transformado em auctoritas non veritas facit precedentes. Austin e Hobbes já foram superados. Acreditemos nisso. Auctoritas não (se) basta.

Estamos em um sistema de civil law. Estamos em um país sob uma Constituição que, além de ter inaugurado, legitimado e institucionalizado toda uma tradição autêntica, tem força normativa. Por seus fundamentos, aqui, vinculante não é o precedente; vinculante será sempre a lei que fundamenta o precedente. Ponto. Judiciário não faz lei.

Temos uma Constituição. Temos leis. Temos um Código de Processo Civil que, é verdade, fala em “precedentes”. Mas em nenhum momento institui precedentes à luz de uma importação fragilíssima do stare decisis. O CPC fala em precedentes, enquanto decisões pretéritas; e fala logo depois do artigo 926, que exige coerência e integridade.

Coerência e integridade. É uma exigência lógica, é uma exigência de princípio, é condição de possibilidade pro Direito e, além disso tudo, é algo que está positivado no direito brasileiro.

Essa, sim, é a cultura que tem de pegar; uma cultura que se construiu de forma autêntica. Não foi em 2015 que passamos a ter essas ideias como guia fundamental.

Quando finalmente entendermos que o Direito é uma questão de coerência e integridade, não precisaremos de teses, de súmulas, de importações pela metade.

Há que se entender que, terminado um julgamento, o julgamento efetivamente terminou. Não tem de fazer tese logo depois. Judiciário julga um caso. Não faz teses. A observância obrigatória advém da aplicação contingencial do julgado que se transformará em precedente.

É por isso que, em vez de os juízes buscarem cumprir o que efetivamente vincula, os tribunais lhes dão uma tese ou teses, que são abstratas, como se leis fossem. Vamos fazer um teste? Vamos lá. Uma súmula é o resultado de vários precedentes. Concordamos? OK. Portanto, alguém já viu uma sumula ser produto de teses? Não, né? Então por que teses viram precedentes? Eis o ponto central do problema. Precisamos falar sobre ele.

Fairness. Não é mera platitude. Ignorar isso, sim, é o verdadeiro problema do direito brasileiro.

Por tudo isso, senhores ministros — e estou escrevendo isso em face das queixas de Vossas Excelências —, que se entenda que minha crítica não é pela crítica. Não é um fim em si mesmo. Tampouco é motivada por vaidade epistêmica. A grande razão disso tudo é o fato de estarmos todos no mesmo barco. E se eu trago isso à tona, só o faço porque, primeiro, levo o Direito a sério e, segundo, porque acredito que também os senhores levam o Direito a sério.

Alguma coisa está dando errado com a “cultura dos precedentes”. Reconhecer isso já é o primeiro passo. E, como falei acima, talvez o problema seja exatamente esse: não se obedece aos precedentes porque talvez não sejam precedentes como se pensa que eles são (ou deveriam ser).

Insisto: teses não são precedentes. Teses são apenas teses. São enunciados. É como se o STJ e o STF estivessem fazendo aquilo que fazem os juízes e professores em determinados workshops: enunciados sobre dispositivos legais. Só que disso não extrai que enunciados (teses) sejam precedentes.

Numa palavra: Se estou oferecendo reflexões críticas é exatamente pela confiança que tenho no STJ (e no STF, e nos tribunais, e nas varas…) como guardião da coerência e da integridade. Refletir criticamente sobre algo é meu maior voto de respeito e admiração: só vale a pena falar sobre aquilo que é imprescindível.

As instituições são imprescindíveis, e eu sou um soldado na luta para que elas estejam à altura da ocasião.

Por isso tudo, precisamos falar sobre precedentes e outros mecanismos previstos no CPC que tratam de observância obrigatória. Afinal, nem tudo é a mesma coisa.


[1] Como exemplo, cito aqui o artigo que escrevi, com Igor Raatz e Gilberto Morbach, na UFSM, interpretando a tese precedentalista a partir de uma genealogia dos (inconstitucionais) assentos portugueses.

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