Opinião

Inconstitucionalidades da MP da "liberdade econômica" e o Direito Civil

Autor

  • Paulo Lôbo

    é advogado doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) professor emérito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e ex-conselheiro do CNJ.

6 de junho de 2019, 10h50

Em 30 de abril, foi editada a MP 881, ora em tramitação no Congresso Nacional, pretendendo regular o que se denominou de "liberdade econômica". Vários estudos vieram a lume, inclusive neste site. Atenho-me à análise de suas inconstitucionalidades formais e materiais, em relação às normas do Código Civil, que foram por elas alteradas ou acrescentadas.

Sobre inconstitucionalidade formal:

O parágrafo 1º, I, b, do artigo 62 da Constituição Federal não inclui explicitamente, entre as vedações de edição de medida provisória, matéria relativa a Direito Civil. Porém, decorre do sistema constitucional nela adotado, pois:

a) não pode configurar urgência, requisito determinado no caput do artigo 62, pois o Código Civil foi sancionado em 2002, com suspensão de vigência de um ano, estando em vigor há mais de 16 anos. Os artigos do Código Civil alterados pela MP 881/2019, nesse longo período, foram objeto de estudos doutrinários e de laboriosa aplicação pelos tribunais, sem jamais terem sido obstáculos à liberdade econômica ou ao exercício da atividade econômica. Ao contrário do que subjaz na inspiração da MP 881, as normas originárias do Código Civil estão em conformidade com os princípios jurídicos fundamentais da atividade econômica estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal e do modelo de Estado social, por esta adotado e inaugurado no Brasil desde a Constituição de 1934;

b) o processo legislativo para aprovação de código é diferenciado e mais complexo que o exigível para as leis ordinárias, inclusive as que resultem de conversão de medidas provisórias. O parágrafo 4º do artigo 64 da Constituição Federal exclui os projetos de código da solicitação de urgência pelo presidente da República, diferentemente dos demais projetos de sua iniciativa, não podendo sobrestar as demais deliberações legislativas da respectiva Casa. Assim é porque o projeto de código, máxime de um Código Civil, repercute na vida cotidiana permanente das pessoas e não pode confundir-se com proposições que envolvem resultados almejados por políticas públicas que são, por sua natureza, contingentes. O atual Código Civil brasileiro tramitou durante 27 anos no Congresso Nacional, e o anterior demandou mais de década e meia de discussões congressuais. Sua alteração, portanto, apenas pode ser efetuada mediante processo legislativo de projeto de lei ordinária, sem caráter de urgência.

Sobre inconstitucionalidade material em geral:

A livre-iniciativa, na Constituição de 1988, configura um dos fundamentos ou uma das premissas do modelo de economia de mercado regulado, mantido e estruturado pelo poder constituinte. Não é norma constitucional. Não é princípio jurídico-constitucional fundamental, como o considera a MP 881. O princípio jurídico fundamental é o dos “valores sociais da livre-iniciativa”, prescrito no inciso IV do artigo 1º da Constituição. Se a livre-iniciativa fosse princípio jurídico fundamental, então nenhuma lei que regulasse determinada atividade econômica poderia ser considerada constitucional.

Essa precisa distinção entre o que é fundamento ou diretriz e o princípio fundamental encontra-se no voto condutor da ADI 319-4, proferido pelo relator ministro Moreira Alves, cujo julgamento ocorreu em 3/3/1993. Decidiu-se pela constitucionalidade da Lei 8.039/1990, que dispunha sobre critérios de reajuste de mensalidades escolares. Do acórdão, publicado no DJ de 30/4/1993, extrai-se o seguinte enunciado:

“Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa a ao aumento arbitrário dos lucros”.

O voto condutor do relator esclarece a distinção, ao dizer que, ao contrário da Constituição anterior, a Constituição atual passou a ter a livre-iniciativa “como um dos dois fundamentos dessa mesma ordem econômica”, dando “maior ênfase às suas limitação em favor da justiça social”, instituindo como princípio fundamental “não a livre-iniciativa da economia liberal clássica, mas os valores sociais da livre-iniciativa”.

Sobre inconstitucionalidades materiais específicas:

a) A “declaração de direitos de liberdade econômica” (artigos 3º e seguintes da MP 881) tem por fito elevar a livre-iniciativa (“liberdade econômica”) a princípio fundamental, em colisão com a natureza que a esta é atribuída pela Constituição. A partir dessa equivocada premissa, estrutura verdadeira camisa de força ao Poder Judiciário, que deverá ser nela contido “na aplicação e interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas” (artigo 1º, parágrafo 1º).

A alusão constante na MP 881 à intervenção mínima e excepcional do Estado, “por qualquer dos seus Poderes” (exemplo, parágrafo único acrescentado ao artigo 421 do Código Civil) tem por alvo, não explicitado, o Poder Judiciário, pois é este o competente pela interpretação e aplicação das normas jurídicas incidentes nas relação econômica privadas. Não cabe ao Poder Executivo ou ao Poder legislativo tal mister.

Note-se que o caput do artigo 3º da MP 881 indica como fundamento da “declaração” o parágrafo único do artigo 170 da Constituição, excluindo propositadamente o caput deste artigo, pois com este ela é incompatível, dado a que desconsidera seus explícitos princípios jurídicos, incluindo os da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades. O parágrafo único do artigo 170 não pode ser lido e interpretado com ignorância do que disposto no caput, como se este não existisse e no qual a livre iniciativa comparece como um dos fundamentos da ordem econômica, mas que deve observar os ditames da justiça social e os princípios que enuncia. O parágrafo único do artigo 170 integra o todo deste, e tem por finalidade esclarecer que o exercício da atividade econômica, salvo os casos previstos em lei, não depende de autorização de órgãos públicos, como ocorria com o Estado absolutista, na primeira fase do Estado moderno.

b) A MP 881 acrescenta ao artigo 421 do Código Civil, que estabelece que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social, as expressões “observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. A função social do contrato é consequência indeclinável do princípio constitucional da função social da propriedade (CF, artigo 170, III) e dos ditames da justiça social (CF, artigo 170, caput), pois o contrato é o instrumento de circulação da propriedade, inclusive no exercício da atividade econômica. A submissão à “Declaração” tem por finalidade excluir do dever jurídico de observância da função social os contratos utilizados no exercício da atividade econômica, não apenas os interempresariais, mas também os utilizados com os consumidores. Em outras palavras, pretende a MP 881 excluir da observância da função social esses contratos, o que colide com os princípios constitucionais regentes da atividade econômica.

Ainda no seu propósito de cercear a independência do Poder Judiciário na interpretação dos contratos, a MP 881 acrescentou o parágrafo único ao artigo 421 do Código Civil, que, além de estabelecer “a intervenção mínima do Estado”, limita de modo desarrazoado seu poder de revisão desses negócios jurídicos, quando contrariarem os princípios e outras normas de nosso sistema jurídico. A afirmação de que a revisão contratual é excepcional é abundante, pois é mínimo o número de demandas judiciais com esse desiderato e menor ainda o número de decisões que a acolhe. A aparência do óbvio mascara o intento de cercear a atuação do Poder Judiciário na revisão contratual, que já é excepcional. É norma vazia de conteúdo, pois o propósito do legislador esbarra na autonomia constitucional do Poder Judiciário, que não pode ser restringida por norma infraconstitucional. A aplicação de qualquer princípio jurídico, inclusive os instituídos pela MP 881, é exigente de intervenção do Estado-Juiz, para demarcação de seu conteúdo ao caso concreto.

c) A nova redação atribuída ao artigo 423 do Código Civil e os acrescentados artigos 480-A e 480-B do Código Civil vão na mesma direção de impedir a liberdade de formação do convencimento judicial para interpretação dos contratos. Para os negócios jurídicos na atividade econômica, incluindo os interempresariais, a MP 881 visa a qualificá-los como paritários (CC, artigo 480-B), para os quais deve prevalecer a “intervenção mínima do Estado”. Esses contratos, todavia, continuam sujeitos às regras gerais de interpretação contratual, notadamente as que têm fundamento na Constituição, que não podem ser derrogados por “parâmetros objetivos para interpretação” estipulados pelas partes (CC, artigo 480-A).

d) A MP 881 acrescentou ao Código Civil novo capítulo (artigos 1.368-C a 1.368-E), intitulado “Do fundo de investimento”, concebido como comunhão de recursos, “destinado à aplicação em ativos financeiros”. Tal matéria não se insere no âmbito do Direito Civil, ostentando nítida natureza financeira, o que a torna exigente de lei complementar específica, na forma do artigo 192 da Constituição Federal, não sendo cabível sua instituição mediante medida provisória nem seu enquadramento como Direito Civil.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.

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