Direito Comparado

Privacy, direitos da personalidade e exposição de imagem de celebridades

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

5 de junho de 2019, 20h07

Spacca
Tiger Woods, o vitorioso jogador de golfe norte-americano, passou do zênite ao nadir quando sua vida privada foi exposta publicamente. Casado com a ex-modelo sueca Elin Nordegren, ele passou por uma turbulenta separação, após reportagem publicada no tabloide National Enquirer. Na sequência, a crise se aprofundou e Woods viu-se em uma grave crise de imagem. Sua história de superação foi um de seus trunfos para construir a reputação pública diferenciada: um golfista de origem afro-americana e tailandesa, sem recursos financeiros e sem conexões nesse esporte elitista, conseguiu se tornar um astro internacional. Seus êxitos nos campos de golfe e essa narrativa pessoal de êxito, levaram-no à condição de desportista bilionário em 2009.

Grande parte de seu patrimônio adveio de prêmios nos torneios de golfe e, com muito maior influência, dos contratos de cessão de direitos de imagem firmados com grandes companhias como a Gillete, AT&T e Accenture. Woods não foi o primeiro desportista a enriquecer com esse novo modelo de exploração da imagem. Ele, contudo, pode ser visto como um dos primeiros a extrair o grosso de seus rendimentos de uma combinação diferente de arranjos negociais: a imagem em si não era o elemento nuclear dos ativos do golfista e sim um conjunto de valores (disciplina, ética, temperança e bom exemplo) a ele associados.

Com a separação e a crise de imagem, as empresas que o contrataram romperam seus vínculos com Tiger Woods, valendo-se de uma cláusula de aceleração ainda pouco conhecida no Brasil na década passada: qualquer fato que envolvesse o contratado em situações prejudiciais à imagem das marcas poderia ser invocado para resolver o negócio jurídico. O jogador ficaria sem contratos, sem remuneração e ainda sem pretensão contra perdas e danos.

Nos últimos anos, ele retornou aos campos e tem obtido vitórias, além de haver firmado novos contratos com empresas de renome, embora não tão importantes quanto seus antigos parceiros.

O caso Tiger Woods pode ser parcialmente comparado ao do estilista britânico John Galliano, que chegou a comandar importantes casas de moda francesas, como a Givenchy e a Dior. Em 2011, ele foi demitido da Dior em razão de declarações antissemitas que foram gravadas e divulgadas no tabloide The Sun, conhecido como um jornal sensacionalista, do mesmo estilo do National Enquirer.

A situação de Galliano afastava-se do caso Woods quanto ao valor dos contratos (Woods era bilionário, algo bem distante de Galliano) e quanto ao tipo de negócio firmado, porque nos contratos de Woods sua imagem e sua conduta eram o próprio objeto economicamente apreciável. O estilista britânico, em comum com o golfista norte-americano, sofreu os efeitos dos danos à imagem por sua própria conduta e pelos efeitos colaterais às marcas que ele dirigia no mundo da moda.

Esses dois exemplos são, ao mesmo tempo, surpreendentes e compreensíveis.

Para que o leitor não se incomode com o aparente paradoxo dessa afirmação, é necessário recuar um pouco no tempo e compreender uma velocíssima transformação da indústria do entretenimento, que nasceu originalmente com a música e o teatro, depois incorporou o cinema, o rádio e a televisão, alcançando os esportes e, nos últimos anos, a produção de conteúdo pela internet.

Os artistas, até o início do século XX, integravam uma classe marginalizada socialmente e, em geral, associada a uma postura liberal em termos de costumes e moral privada. Com a industrialização de parte das atividades artísticas, no que o cinema exerceu um papel disruptivo, houve uma mudança de patamar no status social dessas pessoas. Em questão de duas décadas, o ecossistema cinematográfico passou a influir diretamente na opinião pública e a disputar espaços de poder com as elites tradicionais, particularmente a aristocracia de sangue. Com a televisão, esse processo acelerou-se profundamente, a ponto de se criarem objetos de estudo nas faculdades de Humanidades para se interpretar esse novo fenômeno.

A conexão com o consumo de massas concluiu esse câmbio e a publicidade-propaganda tornaram-se o principal fator de remuneração dos artistas de rádio, televisão e cinema. Com a captura das grandes federações desportivas por grupos de “profissionais” como João Havelange, Juan Antonio Samarach e Joseph Blatter (para se ficar apenas em três dos mais famosos), a partir dos anos 1970, o esporte tornou-se um “novo” negócio. A indústria do futebol e das Olímpiadas deixou de ser uma atividade de amadores para gerar recursos em escala global, com contratos bilionários e, com o tempo, até mesmo os atletas passaram a participar dessa escala inimaginável de ganhos.

A marginalização original desses agentes do entretenimento não atraia pessoas de classes privilegiadas e muito menos deles se exigia um código rígido em relação a moral e costumes. Exemplos como os de Paulo Autran (aluno da Faculdade de Direito da USP) ou de Audrey Hepburn (filha de uma baronesa do Reino Unidos dos Países Baixos) eram exceções que confirmavam a regra. Nos esportes, especificamente no futebol, a origem aristocrática (ou socialmente superior) dos jogadores foi substituída a partir dos anos 1920 no futebol e depois nos demais esportes, à medida em que eles se convertiam em um instrumento de rápida ascensão social para pessoas sem formação acadêmica ou laços familiares de prestígio.

Nos Estados Unidos, até pela compreensão imediata do peso da indústria cinematográfica na vida social e econômica, criou-se uma barreira de contenção entre a vida privada dos agentes do chamado show business e sua imagem pública. Essa rede de proteção abrangia meios de comunicação e até mesmo cláusulas contratuais que previam a resolução do negócio jurídico na hipótese do envolvimento de atores, atrizes, músicos e outros artistas em situações moralmente escandalosas. Somente a partir dos anos 1980 é que tais muros “caiados de branco” começaram a ruir.

O fato é que, a despeito de todas essas transformações, a conjugação entre imagem e certos valores socialmente considerados como elegíveis ou esperáveis deu um novo significado ao que era apenas uma preocupação moral com reflexos econômicos. Daí ser um paradoxo apenas aparente a surpresa e a compreensão com os exemplos de Woods e Galliano: originalmente, esses valores diferenciados nunca foram realmente compartilhados pela maioria dos agentes da indústria do entretenimento. A prova disso está no aparato criado por empresas e nas cláusulas de limitação de condutas pessoais. Esse complexo sistema de controle só era necessário porque não se estava diante de uma cultura compartilhada pelos membros dessa comunidade. Mas eram essas condutas as que os consumidores esperavam ver refletidas em seus ídolos nas artes, na música, no cinema e nos esportes.

Tal assimetria entre valores projetados (pelos consumidores) e valores não assumidos (pelos agentes da indústria) está na raiz de boa parte das sucessivas crises de imagem envolvendo grandes celebridades. Com a evolução tecnológica, tais problemas acentuaram-se dramaticamente. Nenhum espaço é mais suficientemente privado ou protegido da captura de sons e imagens por terceiros, quando pelos próprios envolvidos.

A jurisprudência brasileira – para não se mencionar a estrangeira (caso Carolina de Mônaco) – possui vários exemplos de processos relativos às tensões entre a privacy das celebridades e a exposição de suas condutas por meio de fotografias, vídeos e pela internet. Em outra ocasião, após exame dos precedentes nacionais e estrangeiros, afirmou-se que:

“(1) Em relação às figuras socialmente notórias e conhecidas como celebridades, os níveis de proteção são menos amplos, pois haveria uma ‘esfera de iluminabilidade’ na qual essas pessoas se colocaram voluntariamente e em função de seus interesses profissionais e políticos.

(2) É necessário distinguir, porém, entre a imagem-atributo e a imagem-retrato, bem assim o caráter da informação, para se definir o que está ou não protegido. Dois exemplos ilustram esta hipótese: (a) A divulgação de um caso extraconjugal de um político famoso não tem interesse público e ele se protege à semelhança de um não notório. (b) No entanto, se a crise conjugal envolve o pagamento de dinheiro de origem governamental ou afim a uma amante, o político não se prevalecerá da proteção aos direitos da personalidade”[1]

Para além da simples classificação de agentes como celebridades, neste grupo incluído os agentes da indústria do entretenimento em sentido amplo, ou não celebridades, há uma nova configuração que precisa ser estabilizada: o real conceito de privacy no século XXI. Alguns estudos têm sido feitos com esse novo foco, que se desconecta da tradicional concepção de privacy como uma expressão dos direitos da personalidade, ou que analisam mais detalhadamente os limites interpretativos de contratos que possuem como objeto os referidos direitos.[2]

Essa nova configuração dos direitos da personalidade criou sub-ramos do Direito, que se dedicam, por exemplo, ao exame das relações jurídico-negociais entre atletas e as empresas pertencentes ao ecossistema do entretenimento, nos quais se inserem os contratos firmados por Tiger Woods e tantos outros desportistas famosos da atualidade.

Não se precisa ir muito longe para se encontrar tais problemas na realidade brasileira. Nos últimos dias, um famoso jogador de futebol tem ocupado as principais manchetes por ser alvo de acusações de prática de crimes sexuais. Em resposta, com uma evidente falta de assessoramento, o jogador expôs nas redes sociais um conjunto de mensagens, de modo a provar a natureza consensual dos atos praticados.

A veracidade ou não das acusações e a natureza do vínculo amoroso não interessam a esta coluna. Em termos jurídicos, isso será resolvido por meio de instrução probatória. A eventual transferência do juízo jurídico para o juízo da opinião pública é também pouco relevante. Há duas questões essenciais: (a) a dualidade de códigos morais, algo que está na essência da indústria do entretenimento desde sua origem, ainda faz sentido hoje?; (b) há alguma eficácia real nesses mecanismos privados de compliance para atores, atrizes, jogadores, músicos e outras celebridades?

Essas duas questões devem ser hoje analisadas pelos que se dedicam ao tema da privacy e dos direitos da personalidade especificamente voltados para esse grupo. De modo ainda preliminar, penso que a resposta a ambas as perguntas é negativa.


[1] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. O direito ao nome, à imagem e outros relativos à identidade e à figura social, inclusive a intimidade. In: SIMÃO, José Fernando; BELTRÃO, Silvio Romero. (Org.). Direito Civil: Estudos em homenagem a José de Oliveira Ascensão. 1ed.São Paulo: Atlas, 2015, v. 2, p.12.

[2] GEDIEL, José Antonio Peres; CORRÊA, Adriana Espíndola. Proteção jurídica de dados pessoais: a intimidade sitiada entre o Estado e o mercado. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, no 7, p. 141­153, 2008. Especialmente p. 142; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Interpretação dos contratos sobre direitos de personalidade / Roxana Cardoso Brasileiro Borges. Revista de direito civil contemporâneo, v. 11, p. 55-77, abr./jun. 2017

Autores

  • é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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