Opinião

Afinal, o que é governança no contexto jurídico?

Autor

  • Atalá Correia

    é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) e juiz de direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

5 de junho de 2019, 12h58

A complexidade e pluralidade da sociedade contemporânea trazem desafios diversos. Esse cenário só se intensifica com o uso da tecnologia da informação. Tornam-se necessários nesse contexto novas ferramentas e abordagens. A governança insere-se nesse contexto.

A partir da década de 1970[1], diversos ramos do conhecimento passaram a tratar de alguns desses problemas sob a perspectiva institucional ou organizacional. Para além do Estado e do mercado, percebe-se com maior nitidez o papel das organizações formalmente instituídas. Com feição claramente prática, esses problemas passaram a ser tratados sob a denominação de “governance”, que, entre nós, acabou sendo traduzido como “governança”, e não como “governo”. A bem da verdade, “governo” traduz melhor a ideia de “government” e, assim, era razoável mesmo que se utilizasse expressão distinta para tratar de “governance[2].

Trata-se, portanto, de entender e investigar como as organizações públicas e privadas são governadas, que estruturas e formas adotam. Entretanto, é necessário compreender que a ideia de governança está para além da concepção de governo. Como ressalta Levi-Faur, “governança significa uma mudança no sentido de governo”[3]. Assim, a governança não tem preocupações meramente formais sobre a condução de organizações, mas deseja saber da qualidade na condução das questões coletivas existentes no âmbito organizacional. De modo simples, a governança está preocupada com o bom governo.

As organizações são criadas para atender aos interesses de grupos diversos de pessoas, sejam eles acionistas ou cidadãos comuns. Não é raro, contudo, que surjam conflitos os mais diversos, notadamente situações em que os gestores da organização deixam de estar alinhados com aqueles que haveriam de representar e passam a perseguir interesses particulares ou diversos daqueles que justificam sua atuação[4].

A análise econômica do Direito procura inicialmente explicar a existência das organizações a partir da noção de custo de transação. Como atender a todas as necessidades particulares diretamente via mercado pode envolver custos (de informação, transação, entre outros), as pessoas organizam-se em empresas onde esses custos são diminuídos[5]. Para além disso, percebeu-se que muitos dos conflitos de interesses vividos nas organizações têm sua origem relacionada à assimetria de informações. Os gestores profissionais dedicam-se a atividades que lhes asseguram acesso a informações relevantes antes que elas sejam de conhecimento público. Essa disparidade possibilita que o gestor se valha de sua condição privilegiada para auferir benefício privado ou para perseguir objetivo que não é propriamente daqueles que justificam seu cargo.

A perspectiva econômica vai muito além daquelas situações em que juridicamente há um vínculo de representação. O problema dos custos de agência (agent-principal) surge sempre em que o bem-estar de uma pessoa (principal) depende das ações tomadas por outra parte (agent), razão pela qual deve haver incentivos e meios de controle para que os interesses de ambos estejam alinhados[6].

Na esfera privada, quando não há alinhamento de interesses, um empregado, sabendo da ausência de controle interno, pode se valer dos equipamentos profissionais para uso particular; um gestor pode vender ou comprar ações negociadas em bolsa porque conhece fatores que irão afetar seu preço. Na esfera pública, o legislador pode comprar imóveis em região que, conforme sabe, serão valorizadas pelo plano urbanístico a ser aprovado; uma companhia que presta serviços públicos, como luz ou telefone, pode negligenciar o atendimento de comunidades carentes, sabendo que elas não lhe dão lucro.

Sob uma perspectiva ética mais ampla, é possível que os representantes, em entidades públicas ou privadas, tomem condutas que não estão em linha com os valores daqueles que representam ou da comunidade como um todo. Assim, o superior hierárquico pode adotar condutas ímprobas, racistas, sexistas ou de qualquer outra forma preconceituosas contra seus subordinados, investidores, consumidores ou cidadãos. O gestor pode fazer pagamentos indevidos ao fiscal para realizar negócios que, de outro modo, não seriam aceitos. O gestor pode deixar de pagar tributos para obter benefícios de curto prazo.

Diante desse contexto, pergunta-se como as instituições públicas e privadas devem ser governadas, dirigidas ou administradas, não apenas no sentido econômico de eficiência ou no sentido formal, mas também de modo a assegurar o respeito a interesses não econômicos de cidadãos, acionistas, sócios e consumidores. Esse é escopo da governança.

A governança surge, assim, como o centro das preocupações daqueles que adotam perspectivas institucionalistas não só na Economia, mas também na Sociologia e na Ciência Política[7].

Não se trata, contudo, de um problema de administração, pública ou privada, mas de design institucional e regulação no qual o Direito tem papel essencial. Como afirmam John Armour, Reinier Kraakman e Henry Hansmann, professores em Oxford e Yale, os meios legais para controlar o custo de agência podem ser divididos em estratégias de regulação e de governança. As primeiras têm caráter prescritivo, com o propósito de regular diretamente o comportamento dos agentes. De modo diverso, as estratégias de governança buscam facilitar o controle dos principais sobre os agentes[8].

Assim, as estratégias de governança indicarão que o poder nas organizações deve ser distribuído de forma a refletir os interesses dos vários grupos relevantes, de forma a possibilitar controle mútuo e reduzir os custos de cooperação. Sob essa perspectiva, surgem comitês específicos, conselhos de consumidores e populares, representações mandatórias, direitos de indicação de representantes, regras de transparência (ativa ou passiva), auditorias independentes, dentre outras medidas.

As estratégias de regulação lidam com regras que imponham alinhamento de agentes e representados. Essas regras podem ser específicas, ditando condutas ou abstenções, ou gerais, com padrões de boa-fé ou lealdade. Ainda podem ser internas ou externas à organização. Surgem, nesse contexto, códigos de ética, regulamentação por agências estatais e até mesmo a formulação de leis penais.

Como não basta estabelecer regras, é comum que elas sejam acompanhadas de mecanismos de efetivação (enforcement) e conformidade (compliance). Sob as estratégias de governança, os mecanismos de efetivação e conformidade são essencialmente internos, como comitês de ética, auditorias, ouvidorias, ombudsman, dentre outros. Sob estratégias de regulação, a efetivação depende mais diretamente da atuação de entidades reguladoras ou fiscalizadoras (como as agências reguladoras, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários, tribunais de contas e do próprio Judiciário). Para viabilizar essa fiscalização, é comum que se estabeleçam obrigações diversas relacionadas a transparência. É nesse sentido que se fala em compliance tributário, ambiental, trabalhista, penal (ou anticorrupção).

Na esfera pública, a ideia de governança traz desafios significativos, para que os interesses relevantes, notadamente dos cidadãos, sejam tomados em consideração. A governança pública propõe reflexão sobre quais devem ser os desenhos institucionais, com formação de organizações para além daquelas já conhecidas (municipais, estaduais, nacionais), possibilitando que temas locais, regionais, internacionais e globais tenham locus decisório apropriado. Tome-se, por exemplo, o tema do saneamento básico, que não vem encontrando soluções adequadas nas esferas tradicionais e que devem ser geridas por regiões metropolitanas[9].

Posta a questão sob essa perspectiva, há tanto no setor público quanto no privado uma série de modelagens e experiências em andamento, que podem se revelar mais ou menos vantajosas. O emprego acentuado da tecnologia nos ambientes de trabalho revela novas possibilidades.

Estudar o impacto da tecnologia sobre a governança é o principal objetivo do grupo de pesquisa Governance 4.0, que reúne pesquisadores da FGV, USP e do IDP. O grupo selecionou centenas de textos sobre o tema e vem realizando webinares quinzenais para desenvolvimento das pesquisas. Os interessados podem obter mais informações e inscrever-se no site www.governance40.com.


[1] CHEFFINS, Brian R. The History of Corporate Governance. OXFORD HANDBOOK OF CORPORATE GOVERNANCE, Mike Wright, Donald Siegel, Kevin Keasey and Igor Filatotchev, eds., Oxford University Press, 2013; University of Cambridge Faculty of Law Research Paper No. 54/2011; (December 1, 2011), ECGI – Law Working Paper No. 184/2012. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1975404 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1975404.
[2] Sobre as dificuldades de adaptação do termo em diversas línguas, vide LEVI-FAUR, D (Ed). The Oxford Handbook of Governance. Oxford University Press; 2012.
[3] LEVI-FAUR, D (Ed). The Oxford Handbook of Governance. Oxford University Press; 2012.
[4] BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. The modern corporation and private property. New York: Harcourt, Brace & World, 1932.
[5] COASE, Ronald Harry. A Firma, o Mercado e o Direito. Col. Paulo Bonavides. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2017.
[6] JENSEN, Michael C. e MECKLING, William H. Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, vol. 3, issue 4, Out. 1976, p. 305-360, https://doi.org/10.1016/0304-405X(76)90026-X. FAMA, Eugene F. Agency Problems and the Theory of the Firm. The Journal of Political Economy, Vol. 88, No. 2 (Apr., 1980), pp. 288-307, publicado por The University of Chicago Press, disponível em http://www.jstor.org/stable/1837292. WILLIAMSON, Oliver E. Transaction-Cost Economics: The Governance of Contractual Relations. Journal of Law and Economics, Vol. 22, No. 2 (Oct., 1979), pp. 233-261, publicado por University of Chicago Press, disponível em URL: http://www.jstor.org/stable/725118. ARMOUR, John, HANSMANN, Henry and KRAAKMAN, Reinier. Agency Problems, Legal Strategies, and Enforcement (July 20, 2009). Oxford Legal Studies Research Paper No. 21/2009; Yale Law, Economics & Public Policy Research Paper No. 388; Harvard Law and Economics Research Paper Series No. 644 ; ECGI – Law Working Paper No. 135/2009. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1436555.
[7] HALL, Peter A. and TAYLOR, Rosemary C. R.. As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova [online]. 2003, n.58, pp.193-223. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452003000100010.
[8] ARMOUR, John, HANSMANN, Henry and KRAAKMAN, Reinier. Agency Problems, Legal Strategies, and Enforcement (July 20, 2009). Oxford Legal Studies Research Paper No. 21/2009; Yale Law, Economics & Public Policy Research Paper No. 388; Harvard Law and Economics Research Paper Series No. 644 ; ECGI – Law Working Paper No. 135/2009. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1436555.
[9] STF, ADI 1842, Rel. Min. LUIZ FUX, Rel. p. acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2013, DJe- 13/09/2013, pub. 16/09/2013.

Autores

  • é juiz de Direito no TJ-DF, doutorando e mestre pela Universidade de São Paulo e professor no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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