Justiça Tributária

Reformar e reformar mais ainda: um país justo para todos

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

3 de junho de 2019, 8h07

Spacca
O Brasil precisa de um padrão legislativo, e um padrão a ser observado para que o jurisdicionado possa se pautar e se comportar conforme o entendimento do Judiciário. Se tivermos 200 entendimentos, ninguém saberá o que fazer.Tornar-se-á um país de malucos. Não podemos deixar cada tribunal e cada juiz decidir como quer.”
(ministro João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça)

A reportagem desta última sexta-feira sobre o lançamento da mais recente edição do Anuário da Justiça Brasil 2019 traz o pronunciamento acima transcrito, feito em fevereiro deste ano no encontro do presidente do STJ com os presidentes dos Tribunais de Justiça de todo o país, ocorrido em São Paulo.

Como todos sabemos, o aumento das possibilidades de recurso está na prática transformando o processo não num fim de solução de conflitos, mas numa coisa sem fim, ao que parece destinada a apenas a manter repartições e sustentar servidores públicos.

Pois nesta semana foi prolatada uma sentença em comarca do interior onde o juiz decidiu com acerto, dando por improcedente a cobrança de multas confiscatórias (cerca de 1.000%) sobre cobrança de taxa de fiscalização lançada e cobrada pela prefeitura. O mais curioso e divertido (sim colegas: advocacia tributária pode ser divertida!) é que se pretende tributar e fiscalizar atividade que não existe há décadas no município! Como se vê do destaque parece que este Tornar-se-á um país de malucos!

Taxa é espécie de tributo definida nos artigos 77 a 79 do Código Tributário Nacional cujo fato gerador é o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

Poder de polícia é definido no artigo 78 como atividade da administração pública relacionada com os atos ali especificados: segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos etc.

O artigo 79 fala na utilização efetiva ou potencial dos serviços etc. Não existe nada mais óbvio a sustentar a sentença: não se cobra taxa pela inexistência (sic) do que taxar! Nas alegações finais a advogada da prefeitura diz que não quer conciliação! Será que a colega vai apelar?

Quanto à multa de cerca de 1.000% , já está mais do que consagrada a proibição do efeito confiscatório. Não parece razoável, lógico, justo ou seja lá o nome que se queira dar a tal despautério, a insistência de algum agente tributante que queira . seja a que título for, insistir na cobrança. Decidiu o STF:

“Tem sido considerada confiscatória e assim inconstitucional, por conflitar com o artigo 150, IV, da Constituição Federal, toda e qualquer multa que ultrapasse o limite de 30% do tributo. A multa, enquanto obrigação tributária, é acessória e, nessa condição, não pode ultrapassar o principal.” ( STF, RE 81.550 in RTJ 74/319).

No Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 727.872/RS fora aplicada multa moratória de 30% sobre o valor do imposto devido. O fisco agravou e, sendo relator o ministro Roberto Barroso, deu-se provimento para reafirmar o que fora julgado antes, no sentido de que multa moratória tributária não pode superar 20% do valor do tributo, por caracterizar confisco vedado pela Constituição. Diz trecho da decisão:

(…) “A tese de que o acessório não pode se sobrepor ao principal parece ser mais adequada enquanto parâmetro para fixar as balizas de uma multa punitiva, sobretudo se considerado que o montante equivale a própria incidência. Após empreender estudo sobre precedentes mais recentes, observei que a duas Turmas e o Plenário já reconheceram que o patamar de 20% para a multa moratória não seria confiscatório. Este parece-me ser, portanto, o índice ideal. O montante coaduna-se com a ideia de que a impontualidade é uma falta menos grave, aproximando-se, inclusive, do montante que um dia já foi positivado na Constituição.” (…)

O Supremo Tribunal Federal tem entendido que , sequer nos casos de fraude inequívoca, em que as medidas punitivas são mais rigorosas em face do dolo comprovado, poderão subsistir penalidades confiscatórias, tendo na ADI 551/RJ, concedido medida liminar, consoante se lê da ementa:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Parágrafos 2º e 3º do artigo 57 do ADCT do estado do Rio de Janeiro , que dispõem sobre multa punitiva nas hipóteses de mora e sonegação fiscal. – Plausibilidade da irrogada inconstitucionalidade, face não apenas à impropriedade formal da via utilizada, mas também ao evidente caráter confiscatório das penalidades instituídas.” (RTJ 138/55).

O argumento segundo o qual a multa deve ser aplicada porque é prevista em lei, não resiste a um exame teleológico. Qualquer lei deve submeter-se à Constituição Federal, em cujo preâmbulo o povo brasileiro (que é a fonte de todo poder legítimo num regime democrático de direito) por seus legítimos representantes, afirmou que o Brasil é

“…um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social…”. 

O afirmado na edição de mais de 7 anos atrás do Anuário não pode ser coincidência. Vejam caros leitores:

“A ausência de respeito às decisões do Supremo revela a quadra do nosso Estado, que talvez não seja, como se diz na nomenclatura, um Estado Democrático de Direito. É inconcebível que o Supremo decida, e decida de forma reiterada, e o Poder Público — gênero, estados, municípios ou a União — ignore a decisão. O que nós precisamos no Brasil é de ética. É de homens, principalmente homens públicos, que observem a ordem jurídica constitucional. Eu sempre digo que se paga um preço, e ele é módico, para se viver em uma democracia. E está ao alcance de todos, mas parece que não está ao alcance dos homens públicos, que é o respeito às regras estabelecidas” (ministro Marco Aurélio, do STF, ConJur, 08/1/2012).

Por isso que continuamos a lutar nesta trincheira. Depois da reforma da Previdência, temos que lutar com força pela tributária e também pelas outras igualmente necessárias. Reformar e reformar mais ainda: eis como teremos um país justo para todos, com Justiça Tributária.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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