Opinião

Reedição da MP 867 é inconstitucional e vai gerar debate judicial desnecessário

Autor

  • Gustavo Bambini

    é mestre e doutor em direito do Estado pela USP e professor da mesma universidade. Foi secretário parlamentar no Senado Federal e assessor de Ministro do STF. Membro do observatório de processo legislativo e políticas públicas da Faculdade de Direito da USP.

3 de junho de 2019, 20h06

A formalidade do processo legislativo, principalmente em momentos de agravamento de crises políticas, tende a ser observada de forma mais restritiva. Isso não só deve se dar por vontade do próprio parlamento, com o objetivo de impor freios às ações do presidente, como também deve ser pressupor uma vigília constante dos estudiosos desse tema, sob pena de o processo informal colaborar com o acirramento desta crise.

Na noite de 3 de junho, a Medida Provisória 867, editada em 26 de dezembro de 2018, perdeu sua validade sem ser apreciada pelo Senado, ainda que aprovada inicialmente pela Câmara dos Deputados em 29 de maio deste ano. Alegando total falta de tempo para discussão e eventuais alterações do texto normativo, o Senado não analisou a proposta, que, no jargão coloquial, caducou.

Diante disso, todas as alterações que o texto original provocou na legislação brasileira em vigor perderam validade, voltando ao status quo anterior, deixando de alterar a Lei 12.651/2012, que dispõe sobre a extensão do prazo para adesão ao Programa de Regularização Ambiental.

Ao tomar conhecimento do ocorrido, o Executivo cogitou a reedição do texto da MP, no dia seguinte à sua perda de validade, conforme noticiaram diversos meios de comunicação. Reproduzo aqui o mais completo, publicado no site da revista Piauí, que explica que o governo cogitou a reedição por entender que o texto original, agora precluso, foi editado no apagar das luzes do governo Temer, e, portanto, ainda sob a vigência da legislatura que findou em 02 de fevereiro do corrente ano.

Por esse motivo, não se aplicaria ao caso a vedação do § 10 do artigo 62 da Constituição que diz ser "vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo".

O argumento não procede.

O texto da Constituição é bastante claro e objetivo. A vedação à reedição diz respeito à legislatura na qual o texto deixou de ser apreciado e não àquele em que foi editado. E sobre esse aspecto o Supremo Tribunal Federal já se debruçou e taxativamente interpretou o texto constitucional nesse sentido. Cito aqui dois precedentes fundamentais.

O primeiro deles é a decisão colegiada proferida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.964/DF, de 12 de dezembro de 2007, em que o STF argumentou ser impossível a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada. Foi além, ao declarar que tese contrária importaria em violação do princípio da separação de poderes "na medida em que o Presidente da República passaria, com tais expedientes revocatórios-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e operacionalizar a pauta dos trabalhos legislativos".

Como ficariam os requisitos constitucionais que justificariam a urgência e relevância da matéria se o próprio Congresso, ao rejeitá-la ou permitir a preclusão, implicitamente teria deixado claro que inexistiriam, sem que isso deixasse de evidenciar uma afronta direta ao poder do Parlamento? Esse aspecto também foi abordado na decisão citada.

Mais recentemente, em 27 de março deste ano, o STF analisou e julgou a ADI 5.717/DF e reiterou entendimento anterior ao afirmar que "é inconstitucional medida provisória ou lei decorrente de conversão de medida provisória cujo conteúdo normativo caracterize a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória anterior rejeitada, de eficácia exaurida por decurso do prazo ou que ainda não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo estabelecido pela Constituição Federal".

É cristalino o entendimento do STF no sentido de que a reedição da medida provisória caracterizaria não apenas afronta ao disposto no artigo constitucional citado, como também viola a lógica da separação de poderes e da soberania do Parlamento em dar a palavra final acerca dos requisitos constitucionais que devem pautar a edição de medidas provisórias, pelo Executivo.

Ademais, ainda que o Executivo insista na tese de que a MP foi editada ainda sob a vigência da Legislatura anterior, é fundamental ressaltar que, na data da sua edição, o Congresso já se encontrava em recesso, conforme dispõe a Constituição em seu artigo 57, em que prevê que a sessão legislativa é realizada de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro. Relembro: a MP foi editada somente após o natal. Com isso, seus prazos de vigência e tramitação foram suspensos, pelo recesso congressual e só passaram a valer a partir do início da atual legislatura, que se iniciou em 2 de fevereiro deste ano.

Diante do que foi aqui exposto, não parece restar dúvidas. Ou o governo adota o caminho do envio de um projeto de lei, sem eficácia imediata e que dependa de deliberação congressual para entrar em vigor, ou fomentará mais uma discussão judicial com precedentes, desnecessária e dispendiosa ao Estado brasileiro.

Autores

  • é mestre e doutor em direito do Estado pela USP e professor da mesma universidade. Foi secretário parlamentar no Senado Federal e assessor de Ministro do STF. Membro do observatório de processo legislativo e políticas públicas da Faculdade de Direito da USP.

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