Opinião

Neymar deve ser presumido inocente, mas não pode abusar da defesa

Autores

  • Marco Antônio Ferreira Lima

    é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

  • Gustavo Ferraz de Campos Monaco

    é advogado professor titular de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da USP professor de Direito Internacional Público na Universidade Presbiteriana Mackenzie coordenador do Curso de Direito da Universidade Anhembi-Morumbi e membro da Comissão de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

3 de junho de 2019, 7h45

A mídia, de modo geral, vem divulgando fatos onde notório jogador de futebol é acusado por crime de estupro praticado em outro país.

Independentemente de se adentrar no mérito da questão — sob investigação que tramita de forma sigilosa a fim de se preservar a identidade da vítima — juridicamente, alguns pontos merecem destaque.

O primeiro deles diz respeito à competência territorial para julgar eventual crime.

O artigo 88 do Código de Processo Penal traz uma hipótese de jurisdição exorbitante. E não pode ser avaliado de forma isolada. A extraterritorialidade se classifica em três espécies: incondicionada, condicionada ou hipercondicionada.

A primeira está prevista no artigo 7º, parágrafo 1º, do Código Penal, alcançando os crimes descritos no artigo 7º, inciso I. Nesses casos, a lei brasileira, para ser aplicada, não depende do preenchimento de nenhum requisito.

A segunda se aplica aos crimes trazidos pelo inciso I. Nessas hipóteses para que a lei brasileira possa ser aplicada, precisa de modo cumulativo das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Por fim, para a extraterritorialidade hipercondicionada está positivada se o crime tiver sido cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil; além das condições comuns é preciso que não tenha sido pedida ou não tenha sido negada a extradição, ou ainda, que tenha havido requisição do ministro da Justiça.

Na verdade, o artigo 7º do Código Penal é que termina por estabelecer as condições mesmo diante do que estabelece o Código de Processo Penal.

No caso em apreço, ambas as partes são brasileiras, entretanto somente uma delas é residente no exterior e onde todo o iter criminis foi cometido. A competência, então, seria de qual país? Se no Brasil, justiça estadual ou federal?

Pois bem: aplica-se a extraterritorialidade prevista no artigo 7º, inciso II, alínea b, e parágrafo 2º, alínea a, do Código Penal, se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. Nos termos do artigo 88 do Código de Processo Penal, sendo a cidade de Santos (SP) o último domicílio do indiciado, na hipótese, é patente a competência do juízo da comarca de Santos. Afasta-se a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no artigo 109 da Constituição Federal, principalmente, porque todo o iter criminis ocorreu em país estrangeiro.

Outrossim, se o autor do fato não ingressar em território nacional, a competência jurisdicional será tanto da França — local dos fatos — assim como do Brasil diante do acima considerado.

Há outros fatores também a serem analisados.

E se estivermos diante de falsa comunicação de crime ou denunciação caluniosa? Nesse caso a competência é nitidamente do Brasil. Porém, há outras circunstâncias.

A assessoria — que não é jurídica — de Neymar, exibiu imagens íntimas da vítima para demonstrar que não houve crime e que os fatos contaram com o consentimento dela. Com essa exibição incorreriam no disposto no artigo 218, c, do Código Penal, onde não houve, para exibição dessas imagens, o consentimento da vítima. E também, a coautoria de quem entregou essas imagens e /ou as realizou.

Esse tipo, a melhor juízo, estaria afastado, diante não só da ausência de dolo, mas sim como exercício da ampla defesa, na sua raiz constitucional. Nesse ponto, outras questões surgem: estaria agindo sob excludente de crime? Qual? Legítima defesa? Se estivéssemos diante de um crime de calúnia (onde a conduta maior, a do crime contra a administração da justiça se sobrepõe e a absorve) não caberia a retorsão (que não exclui a tipicidade) mas somente a exceção da verdade; e um crime não pode ser justificativa para outro.

Também outra hipótese: repita-se, a assessoria de Neymar Jr. afirma se tratar de extorsão, o que se também for reputado como não verdadeiro incorreria, sempre em hipótese, no suposto delito inicialmente citado.

Neste raciocínio, resta uma observação fundamental: a presunção de inocência ou da culpabilidade mitigada e a preservação da intimidade não se aplica somente a uma das partes envolvidas por sua qualidade ou condições pessoais ou de gênero, e que ampla defesa não é sinônimo de defesa ilimitada.

Desta forma, preservando-se a intimidade e o que ainda resta de sigilo, tanto as investigações brasileiras como francesas é que poderão dizer o que de fato houve, lembrando ainda que, nessa hipótese de competência concorrente, se exige também a tipicidade recíproca.

São essas as ponderações, e que diga o Direito.

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