Crime e castigo

A sociedade do cansaço: os excessos institucionais num novo paradigma

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

2 de junho de 2019, 15h25

Spacca
Estamos todos muito cansados? 

O teórico sul coreano Byung-Chul Han, professor de filosofia da Universidade de Artes de Berlim, jamais escreveu pensando no Brasil, e seus escritos nem foram traduzidos para o português. Ainda menos provável seria ele ter refletido sobre o direito criminal brasileiro, ou sobre o Judiciário do nosso país. Porém, ele acerta em cheio no diagnóstico, e a sua forma de ver a sociedade contemporânea explica muitos fenômenos que presenciamos.

Assim como Baumann nos despiu vinte anos atrás, Byung-Chul nos desnuda hoje! 

Estamos vivendo uma profunda mudança de paradigmas e mesmo com o direito penal do inimigo insuflado à vela cheia – a barlavento e a sotavento – por nosso Ministério Público e nosso Judiciário, a relação binária do “eu versus o outro” já não explica a totalidade dos movimentos e toda a nossa realidade jurídico-criminal.

A modernidade caracterizou-se por movimentos imunológicos, na alegoria montada pelo autor. Havia sempre o desejo de proteção frente a um inimigo conhecido. Era como se de um lado tivéssemos um organismo e do outro um vírus, e a tarefa de todos nós fosse a defesa contra as agressões, na luta por uma imunização protetiva. 

Este paradigma ainda persiste, na medida em que partidos políticos à esquerda e à direita, juízes combatentes e procuradores em cruzadas ainda vêem o outro como um vírus, e ainda se sentem na missão política de vacinar a sociedade, para protegê-la desse mal. Há fanatismos correntes e inflamados! Há complexo Marvel e há geração playstation! 

Esta “fase viral” ainda pode ser vista no dia a dia do Judiciário, onde todo aquele que é citado em uma delação premiada e todo acusado de tráfico de drogas com flagrante lavrado por policiais começam o jogo processual perdendo de quarto a zero: perdem um ponto na polícia, um ponto no Ministério Público, um ponto na opinião pública e um ponto no próprio Judiciário. 

Os rótulos de corrupto e de traficante são o bastante para desequilibrarem o jogo. Argumentações pseudojurídicas sem correspondência factual, ou levadas a efeito tendo por base puros chavões midiáticos, são comuns no dia a dia processual. 
Parte do movimento judiciário penal se explica desta maneira. Parte disso se sustenta na lógica do eu x ele: uma batalha entre o organismo e o vírus que tende a nos destruir.

Byung-Chul escreve para o universo alemão, se muito para o mundo europeu, onde a igualdade experimenta parâmetros muito mais evoluídos que na América Latina. 

Por assim dizer, o seu desenho da contemporaneidade talvez seja mais fiel ao mundo que sustenta seu olhar do que aos olhos negros, mestiços, sofridos e pardos desta parte do mundo. 

Se ali se pode dizer que a fase viral da sociedade já se vê substituída pelo tempo do cansaço, aqui se pode observar uma transição mais lenta, ou uma interpolação de paradigmas. 

Talvez estejamos vivendo algo próximo daquilo que Kuhn chamou de “revolução científica”, decorrente de uma ruptura de paradigma. 
Nestes tempos incertos estamos, de fato, cansados! Uma parcela da nossa atuação institucional já se explica pelo cansaço!

Somos contemporaneamente levados a agir, a construir e a exercer funções que não são nossas, numa velocidade tal que a liberdade ampla de fazer o que bem entendemos também nos cansa! Cansa porque não temos nenhum limite. Estamos nos tornando uma sociedade de rendimentos, vivendo uma corrida maluca por mais produção, mais informação e mais resultados! 

Nossas instituições não negam nada a ninguém, e a liberdade que a base da pirâmide tem de inverter a lógica da parte de cima do sistema, sem receios de negatividade, gera um grau de liberdade que induz ao cansaço. 

Instituições repletas de potências positivas, de ausência de negatividade, de perda de controle, extrapolam suas funções constitucionais e liberam a todos para ocuparem mais e mais espaços.
Judiciário faz as vezes de Legislativo; Legislativo atua como Executivo; Executivo age como juiz e legislador e o povo reage como censor universal do outro, de cada um e de todas as instituições, independentemente do escrutínio eleitoral democrático! 

Nossas instituições estão cansadas de tantas invasões, de tanto heroísmo, de tanta ausência de limites, de tanta falta de negação! 

Estamos todos mordendo nosso próprio fígado, porque somos também a águia que bica, até o fim dos tempos, Prometeu acorrentado. 

Na feliz alegoria mítica, a autoexploração que as instituições provocam cansam a si próprias e a todos, substituindo a normalidade da atuação necessária, pelo cansaço do excesso! 

A pergunta, por enquanto, sobreviverá: estamos cansados?

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    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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