Segunda Leitura

Os riscos de desvios dos magistrados ao longo da carreira

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de junho de 2019, 8h04

Spacca
Julgar foi, é e será sempre uma função de enorme relevância, para alguns uma missão quase religiosa, exigindo dedicação absoluta e restrições na vida pessoal.

A evolução desta atividade foi lenta. Séculos passaram entre o poder absoluto do chefe da tribo, depois dos reis na Idade Média, à tripartição do Estado pregada por Montesquieu. Mas alguns resquícios ficaram, como a denominação de Corte aos Tribunais, herdada pelos órgãos julgadores dos reis, quando estes, sem condições de exercer tal poder, delegaram-no a terceiros da sua confiança.

Atualmente a magistratura está profissionalizada e estruturada como carreira em boa parte dos países. Neste particular o Brasil se encontra entre os sistemas mais avançados, selecionando os juízes e juízas (doravante, usarei o masculino para ambos) em rigorosos concursos públicos, dando-lhes todas as garantias para o exercício da função de forma independente e pagando-lhes remuneração que permite uma vida confortável.

Por tal motivo, em um contingente de quase 16 mil juízes em exercício, a maioria absoluta é de pessoas tecnicamente bem preparadas, dedicadas e que exercem suas funções procurando dar o melhor de si. As exceções confirmam a regra e é claro que os deslizes aparecem muito mais do que o cumprimento do dever. Afinal, assim é em tudo. O errado atrai mais do que o certo.

Mas, na longa caminhada (ou na longa estrada da vida, como diria a dupla sertaneja) entre a alegria do dia da posse e a publicação do Decreto de aposentadoria, os riscos de desvios estão sempre presentes. A eterna luta entre o bem e o mal acompanham os magistrados em todos os momentos. Por vezes a tentação passa por uma linha limítrofe imprecisa, onde cabe o sim ou o não com resultados imprevisíveis.

O início é sempre festivo, a conquista da aprovação no concurso é comemorada e o orgulho da família acompanha o jovem magistrado fielmente. Mas, em pouco tempo cai-se na rotina. O volume de trabalho é enorme, o resultado muitas vezes se perde no emaranhado de recursos, as críticas e o ocaso das relações cordiais com os demais atores, vai minando a vontade daquele outrora idealista.

Esta é a porta de entrada em área de risco. Os sinais são dados por frases pessimistas, como “não adianta, estou só enxugando gelo” ou atitudes que demonstram a opção por outra coisa, que pode ser desde priorizar as aulas dadas em uma faculdade até reduzir as horas de permanência no Foro. Nada há de errado em ter interesse por outras atividades. O perigo está em só dar atenção a elas e, na Justiça, não dar um passo além do mínimo necessário.

Este estado de pessimismo e descrença afrouxa as regras de conduta. E aí, para aqueles que trabalham no interior, passa a ser natural aceitar o convite para uma churrascada, mesmo sabendo que o simpático anfitrião tem ações penais na Justiça e as conversas apontam-no como ligado ao contrabando ou ao tráfico de drogas.

Para chegar a este estado de leniência ética, não é preciso muito esforço para distrair a consciência. Por exemplo, chega-se a ele afirmando que, contra o animado festeiro, não há sentença condenatória transitada em julgado. Afinal, o Supremo Tribunal Federal rejeita o reconhecimento de maus antecedentes a condenado por tráfico de drogas, por terem passado mais de cinco anos da condenação.[i]

O tempo passa, vem a promoção ou remoção, acaba se chegando à capital. Nela o assédio é menos perceptível, porque o poder se reparte em diversas varas, inclusive de outros ramos do Poder Judiciário. No entanto, nem por isso deixará de existir. Afinal, uma liminar que defina uma situação poucas horas depois pode ser mais importante do que um enorme acórdão recheado de citações doutrinárias.

Na capital, a tentação pode chegar através de formas mais requintadas. O churrasco talvez seja substituído por um almoço para diversos convidados, com um vinho português Pera Manca, safra 2011. Conversas agradáveis, todos muito simpáticos, levará o magistrado a sentir-se parte de uma elite social. Ele, saído, regra geral, da classe média, conhecerá o doce sabor da ascensão social, deslumbrando-se com a posição conquistada.

Evidentemente, tais gentilezas não são gratuitas, pois antigo ditado inglês alertava que “there is no free lunch”, ou seja, não há almoço grátis. A fatura chegará um dia em informal título de crédito, sem data de vencimento. O investimento é de médio prazo e depende da necessidade de quem convida.

Nesta fase há também a oportunidade de cursar mestrado na universidade local. Ótimo. Sempre é bom capacitar-se melhor, decidindo com maior raio de visão. Também é positivo estar em sala de aula com colegas de outras profissões, tomando conhecimento de seus anseios e pontos de vista diversos. Mas, a conquista acadêmica não significa render-se incondicionalmente à opinião do mestre e, por sua influência, passar a decidir sob a sua branda ditadura intelectual.

Vida que segue. Um dia se chega ao Tribunal. Posse, cumprimentos, um passo à frente. E, em pouco tempo, o poder de julgar se estenderá a outros de natureza administrativa. Decide-se a vida de várias pessoas em bancas de concursos públicos, conselhos de administração, escolas da magistratura, corregedoria, presidência e atividades afins.

Mas, junto com a promoção, chegam os fios de cabelos brancos e outras mudanças físicas indesejadas. Porém, mais do que isto, os filhos atingem a idade adulta. Como os dos demais colegas, eles quase sempre escolhem o curso de Direito e um dia chega a hora do estágio ou da colocação profissional. É preciso achar um bom local de trabalho.

Pressionado pelos fatos, às vezes pela esposa (ou esta pelo marido) ou até pela sogra, que cobra providências no almoço de domingo, acaba pedindo vaga de estágio para o filho em um escritório de advocacia renomado. Ou um cargo em comissão bem remunerado. Estas vagas são, atualmente, disputadíssimas e muitas vezes são dadas com objetivo de receber algo em troca.

Se o caminho apontar para uma corte superior, em Brasília, ótimo. Um coroamento de uma vida de dedicação à Justiça. Mas daí a provação será ainda maior. Os simpáticos interessados surgirão em grande quantidade, aproximando-se de todas as formas possíveis, em especial no coquetel das solenidades oficiais.

O status alcançado torna a vida confortável, um verdadeiro acolchoado de veludo, dando proteção contra todas as formas de desconforto. E por óbvio, as tentações serão maiores. Lindas festas, convites para palestras em lugares agradáveis, presentes de muito bom gosto. O trato com elevadas autoridades, no serviço ou na vida social, dá a noção exata da relevância do cargo e alimenta o ego, com risco concreto de crer-se especial.

É aí que o risco assume maiores proporções. Manter-se fiel aos princípios que jurou manter quando da posse mostra-se difícil. É onde se distingue o verdadeiro juiz, o que passou pelos desafios maiores (prazerosos, diga-se de passagem) e continuou imaculado. Aquele que os mais novos respeitam e admiram.

Mas que fazer para lutar contra o perigo da adesão à corrente minoritária dos que se valem do cargo para benefícios pessoais? Dos que sucumbem à tentação? Não há uma resposta pronta, mas algumas atitudes apontam o caminho certo. Vejamos:

Dizer não aos convites duvidosos. Não é algo fácil, porque importa em desagradar alguém. Mas tem que ser dito. Óbvio que não de forma seca, agressiva, mas sim agradecendo e explicando que não pode aceitar por isso ou aquilo. Na segunda negativa o pretenso amigo entenderá.

Em caso de grandes eventos com convite para palestrar ou presidir painel, com benesses diversas, como pagamento de passagem para acompanhante, perguntar quem está financiando o acontecimento. Óbvio que se for pessoa física ou jurídica com casos pendentes de julgamento, não pode ser aceito. Em aso de dúvida falar com um colega mais experiente.

Mostrar aos filhos, eventualmente a genro ou nora, que o melhor caminho é o do esforço e da conquista pessoal. Depender da posição do pai, mãe ou outro parente é permanecer em eterna instabilidade e saber que, em caso de morte ou aposentadoria meses depois chegará uma sugestão de que procure outro local para exercer suas atividades.

Manter a integridade em todas as ações. Algo bem difícil. De nada adianta ser imparcial nos julgamentos, decidir corretamente e depois dispensar o recibo do médico para ter direito a um pagamento menor da consulta.

Jamais alardear a correção de seu procedimento e suas virtudes. Isto gerará mal-estar junto aos colegas. Discrição na virtude.

Estas são breves considerações sobre o tema, tão complexo como pouco tratado. Muito há a ser acrescentado e praticado. A discussão bem-intencionada é positiva e deve ser estimulada.

[i] STF, HC 164.028, relator Ministro Celso de Mello, 22/11/2018, disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=396550. Acesso em 31/5/2019.

Autores

  • é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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