Opinião

A formação jurídica e o sistema de Justiça na República Tcheca

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2 de junho de 2019, 6h52

1. Introdução
Este artigo foi escrito originalmente em inglês por Miroslav Hromada, juiz tcheco, e traduzido para o português, com alterações, por Renan Araújo. Os autores se conheceram na República Tcheca em 2017, por ocasião de pesquisa comparativa realizada na Universidade da Boemia do Oeste. Um artigo sobre o sistema de Justiça brasileiro, escrito originalmente em inglês por Araújo e traduzido para o tcheco por Hromada, foi publicado no periódico Soudce (2018).

Brasil e República Tcheca são dois países bastante distintos: tamanho, diversidade populacional, geografia e tradições históricas são completamente diferentes. O que parece óbvio para os juristas de um país levanta dúvidas para os do outro. Mesmo assim, não é sábio ignorar a realidade estrangeira. Ela, muitas vezes, pode oferecer um melhor olhar para o nosso próprio quintal. Algumas práticas enraizadas, que parecem verdades invioláveis, podem ser desmistificadas, e as experiências estrangeiras podem inspirar mudanças. Ou, ao contrário, nos mostrar as nossas próprias virtudes.

2. Um panorama sobre a República Tcheca
Até 1993, o país fazia parte da Tchecoslováquia. Localizado na Europa Central, possui uma população de 10,6 milhões de habitantes e uma extensão territorial de 79 mil km2, comparáveis a Portugal ou Pernambuco. Seu PIB ­per capita em 2018 foi de R$ 156 mil, e sua taxa de desemprego, de 2,2% (OECD, 2019).

A maioria dos habitantes da República Tcheca é de etnia tcheca, componente do gênero étnico dos eslavos, o mesmo dos russos. Minorias geralmente também são de etnia eslava, como eslovacos e ucranianos. Outras etnias envolvem a grande população de vietnamitas (imigrantes da época soviética) e a minoria cigana (os roma).

Governamentalmente, a República Tcheca é presidencialista. O Legislativo é bicameral, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Atualmente, a República Tcheca é um Estado-membro da União Europeia.

3. A educação jurídica
A formação em Direito na República Tcheca dura cinco anos e confere ao graduado o título de mestre (magistr, abreviado como Mgr. antes do nome). Somente quatro faculdades, todas públicas, oferecem tal formação: Universidade Carolíngia de Praga (1348), Universidade Masaryk de Brno (1919), Universidade Palacky de Olomouc (1566) e Universidade da Boemia do Oeste (1993). O ingresso em tais universidades é altamente competitivo. Apesar de gratuitas, após cinco anos o aluno deverá custear a continuidade de seus estudos. Titulações mais altas incluem o JUDr. (iuris utrisque doctor), tradicional doutoramento que envolvia a formação em Direito Secular e Canônico, e o mais moderno PhD., voltado à pesquisa.

Em 2017, 1.488 mestres em Direito foram formados na República Tcheca. De acordo com pesquisa de opinião realizada com os formandos, 58% pretendiam ser advogados, 15% buscavam a magistratura, 10% desejavam trabalhos administrativos em setores estatais, 4% visavam a carreira acadêmica e 3% almejavam a Promotoria.

4. Admissão nas carreiras jurídicas
4.1. Magistratura
Para se tornar um juiz na República Tcheca, é preciso experiência profissional de três anos, aprovação no exame de magistratura e idade mínima de 30 anos.

A experiência profissional é realizada nos tribunais, numa posição semelhante à de trainee, após o término da formação de cinco anos em Direito. O trainee passa por todos os departamentos da corte distrital (instância mais baixa) e da corte de apelação. Participa de audiências, produz decisões simples e realiza algumas oitivas de testemunhas. Além disso, o trainee também aprofunda sua formação na Academia Judicial, órgão estatal que oferece formação e cursos para trainees, juízes e promotores. No curso, são realizados moot courts, seminários, ensino de línguas e de soft skills (habilidades relacionadas ao trato social, como inteligência emocional, comunicação etc.).

Após três anos de prática, o trainee pode fazer a prova para se tornar juiz. A prova envolve todos os ramos do Direito e é composta de uma etapa escrita e uma oral, durando três dias. Após a aprovação, para se tornar efetivamente um magistrado, o trainee deverá aguardar até que atinja a idade mínima de 30 anos e que uma vaga seja aberta, por aposentadoria ou morte — a quantidade de juízes é numerus clausus. A República Tcheca possui cerca de 3 mil juízes (cerca de 30 juízes por 100 mil habitantes). Por haver tantos magistrados, não é comum que o governo expanda o número de vagas. Assim, os trainees, mesmo aprovados, precisam aguardar trabalhando como assistentes nos tribunais durante vários anos.

Os juízes são indicados pelo presidente da República em sua proposta de governo. O cargo é vitalício, mas há aposentadoria compulsória aos 70. Um juiz não pode ser transferido de um tribunal para outro sem seu consentimento, e a exoneração só é possível em caso de quebra grave de decoro, após processo disciplinar e decisão de corte especial composta de juízes e representantes das demais profissões jurídicas.

4.2. Promotoria
Os promotores são escolhidos através de um processo parecido com o de juízes: três anos de prática, exame de admissão e mínimo de 25 anos de idade. O Ministério Público tcheco faz parte do Executivo, sendo os promotores nomeados pelo ministro da Justiça. Os promotores possuem íntima ligação com a polícia tcheca e supervisionam as investigações dos casos em que funcionam como acusação. Há cerca de 1,3 mil promotores na República Tcheca.

4.3. Advocacia
Para exercer a advocacia, também é necessária a prática de três anos e a aprovação em uma prova profissional, mas sem idade mínima. Durante o período de prática, geralmente em um escritório de advocacia, o trainee exerce boa parte das atividades de um advogado, com raras exceções.

Com a prática e a aprovação no exame, o novo advogado deve obrigatoriamente se registrar na Associação de Advogados da República Tcheca, órgão profissional e autônomo, e pagar uma taxa anual. Não há numerus clausus de advogados na República Tcheca.

4.4 Outras profissões jurídicas
As outras profissões jurídicas que exigem prática e exame profissional são o notário e o executor. O notário é responsável por documentos públicos, assim como no Brasil, e o executor é responsável pela execução de decisões judiciais cíveis e comerciais, sendo uma profissão jurídica relativamente nova, criada em 2001. Há também numerus clausus para notários e executores.

A regra geral é que a experiência profissional e o exame de uma carreira jurídica sejam reconhecidos em outra. Assim, ao ter três anos de prática em um escritório e aprovação no exame para advocacia, o jurista se habilita também para ser promotor ou juiz, por exemplo. Por outro lado, a experiência de trainee específica prepara o candidato à prova correspondente, além da questão das idades mínimas e do numerus clausus nas carreiras públicas.

5. O Judiciário tcheco
O Judiciário tcheco, em comparação ao brasileiro, é deveras dependente dos demais Poderes. O Executivo indica todos os juízes e os presidentes de cada tribunal e o seu orçamento é definido pelo Parlamento e administrado pelo Executivo através do Ministério da Justiça, que determina quanto vai para cada tribunal. Assim, não há uma autonomia financeira do Judiciário, que é dependente do governo em sua subsistência material.

Para equilibrar, os tribunais são os responsáveis pela Justiça administrativa, revisando os atos administrativos do governo. Os assuntos internos dos tribunais são decididos por conselhos de magistrados, mas não há uma autoridade judiciária máxima que centralize as decisões — o topo do financiamento judiciário é o Ministério da Justiça. O orçamento do Ministério da Justiça em 2017 foi de R$ 4,48 bilhões, para os quais R$ 2,84 bilhões foram destinados ao Judiciário. As taxas pagas pelas partes ao Judiciário corresponderam somente a 10% de seu orçamento.

O salário dos juízes é de cerca de R$ 12,3 mil no início da carreira, 2,5 vezes maior que a média salarial do país, chegando a cerca de R$ 25 mil para os juízes da Corte Constitucional.

Quanto à eficiência, em 2016, a duração média de um processo civil foi de 344 dias (mediana: 197 dias). No total, 363.971 processos foram julgados na primeira instância (nível distrital) naquele ano, ou seja, cerca de 263 processos por juiz. A taxa de recursos contra as decisões cíveis do primeiro grau tcheco foi de 5,31%.

Quanto aos processos criminais, a duração média de um julgamento, em 2016, foi de 196 dias (mediana: 92 dias) na primeira instância. Um total de 82.670 processos criminais, ou 180 por juiz, foram julgados. A taxa de recursos criminais foi de 24,63% naquele ano.

5.1. Organização judiciária
Há 26 tribunais distritais, oito tribunais regionais e dois tribunais superiores, além da Corte Constitucional, em Brno.

Os tribunais distritais são a primeira instância e os tribunais regionais são a segunda da maioria dos casos. Suas jurisdições praticamente coincidem com a organização administrativa do governo, variando bastante em tamanho: o menor tribunal distrital, na cidade de Rokycany, possui sete juízes para 48 mil habitantes (1 para 6.857), enquanto o maior, em Ostrava, possui 83 juízes para 300 mil habitantes (1 para 3.614).

Os tribunais regionais também possuem competência originária para casos mais graves ou especializados, tanto no âmbito civil como no penal. Nesse caso, os recursos são direcionados aos tribunais superiores em Praga e Olomouc. A Corte Constitucional, no topo do sistema judiciário, é competente exclusivamente para remédios constitucionais excepcionais.

Quanto à Justiça administrativa, a primeira instância é localizada nos tribunais regionais e é composta de colegiados especializados. A mais alta instância é o Superior Tribunal Administrativo, em Brno.

5.2. O Ministério Público
O Ministério Público é organizado de forma semelhante ao Judiciário. Entretanto, diferentemente dos juízes, os promotores tchecos possuem uma organização hierárquica e são subordinados às ordens dos promotores de instâncias superiores, podendo ser removidos.

5.3. Corte Constitucional
A Corte Constitucional separa-se da organização judiciária normal. Ela é composta de 15 juízes indicados pelo presidente, com a aprovação do Senado, com mandato de 10 anos. A reputação da Corte Constitucional é positiva e chegar ao cargo de juiz dela é considerado a maior conquista que um jurista pode adquirir no país.

6. O Direito Civil tcheco e seu processo
O processo civil tcheco é dividido em dois grandes ramos: contestado e não contestado. A principal fonte de direito material privado é o Código Civil de 2012 (Lei 89/2012 Sb — qualquer legislação tcheca pode ser acessada, no original, neste link), inspirado na legislação de ordenamentos como o da Áustria, da Suíça e do Quebec (Canadá).

No processo civil contestado, tratam-se os temas de disputas entre particulares, sendo iniciado somente na hipótese em que uma pessoa judicializa uma ação contra outra. Algumas das principais matérias tratadas dentro desse ramo são dívidas, disputas trabalhistas e direito proprietário. A principal norma processual é o Código de Processo Civil de 1963, que, apesar de diversas reformas, encontra-se defasado e em breve dará lugar a um novo, com inspirações, principalmente, no processo civil austríaco.

No processo civil não contestado, o Estado interfere na esfera privada. Cabem nesse ramo matérias como direito dos menores, direito sucessório, custódias, limitação da capacidade legal, adoção e violência doméstica, dentre outros. O processo é iniciado sob a tutela do Ministério Público. Uma lei específica trata desses casos, a Lei de Procedimentos Especiais (Lei 292/2003 Sb), e o Código Civil é utilizado subsidiariamente.

Na primeira instância, a regra é que um juiz seja responsável pelo julgamento. Apenas em casos específicos, como disputas trabalhistas e questões relativas à propriedade intelectual industrial, um colegiado formado por um juiz togado e dois juízes leigos é o responsável pelo julgamento. Além disso, via de regra, a competência inicial é das cortes distritais, mas em tais casos específicos (bem como os de Direito Empresarial) a competência é das cortes regionais.

No âmbito civil, não há uma obrigação geral para que os litigantes sejam assistidos por advogados, com exceção dos casos que chegam à Corte Constitucional e ao Tribunal Superior. Todavia, caso a parte prefira, pode contratar um advogado para processos em quaisquer instâncias. Os litigantes que não têm condições podem requerer um advogado pago pelo tribunal.

O processo civil segue um rito semelhante ao brasileiro. É iniciado com a judicialização da ação, quando é dada a oportunidade ao réu de resposta. É então agendada uma audiência presencial (a não ser que as partes entrem em acordo antes da audiência). O término da audiência é o limite para apresentação de alegações e provas. Em seguida, é feito o julgamento. Apelações só podem ser interpostas se o mérito da questão tiver valor superior a 10 mil coroas tchecas (cerca de R$ 1,7 mil).

7. O Direito Penal tcheco e seu processo
As principais fontes em matéria penal e processual penal são o Código Penal de 2009 e o Código Processual Penal de 1961. O Direito Europeu também possui certa importância nessa matéria. Por exemplo, um cidadão tcheco pode ser preso por um mandado de país europeu e levado para julgamento em outro Estado-membro da União Europeia.

Na República Tcheca, a responsabilidade penal começa aos 15 anos. Para infratores menores que 15, a legislação que se aplica é a Lei de Justiça Juvenil (Lei 218/2003 Sb). A responsabilidade penal de pessoas jurídicas é regulada por lei específica, a Lei 418/2011 Sb.

Entre janeiro e novembro de 2016, houve 204.040 crimes registrados pela polícia da República Tcheca. Um total de 101.308 pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público (16.271 eram mulheres). O tipo de delito mais comum foram fraudes em geral (crédito, seguro, falta de pagamento, falsificação de dinheiro). Outros tipos de delitos comuns são os relacionados a drogas e ofensas de trânsito. Nesse período, houve somente 127 homicídios.

O processo penal tcheco só pode ser iniciado por um promotor. O Ministério Público, como parte do Executivo, supervisiona os trabalhos da polícia e, quando achar conveniente, apresenta a denúncia. As cortes distritais são geralmente a primeira instância, tratando dos delitos mais simples. Os delitos mais graves (homicídio, tráfico de pessoas, crimes financeiros de grande monta etc.) são de competência originária das cortes regionais. Os réus só são obrigados a constituírem advogados no caso de estarem em prisão preventiva ou caso respondam a delitos com pena máxima superior a cinco anos de prisão. Caso não tenha condições de pagar um advogado particular, o tribunal contrata um.

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