Em 26 de abril de 1942, Adolf Hitler amaldiçoou, em pleno Reichstag, uma “praga” que lhe incomodava quase tanto quanto os judeus. Disse o tirano: “eu não vou descansar até que cada alemão entenda que é uma desgraça ser um advogado”[1]. Vejam a obstinação expressa na frase que promete “não descansar”, assim como quem promete vingança àquele que cometeu um mal terrível contra um ente querido seu. Longe de ser um surto do ditador, os ataques lançados contra a advocacia — especificamente aquela exercida de forma a contrariar os interesses do regime — sempre foram uma constante do führer, dado que em outras manifestações já deixara claro que os advogados eram “defeituosos por natureza” e se irritava até mesmo com o fato de ter de chamá-los de “doutores”[2].
Cabe, contudo, saber o porquê. Por que Hitler nutria tamanha repulsa com a advocacia? Isso leva ao questionamento da própria existência da figura do advogado: qual o motivo da sua existência?
Ao procurar uma resposta em nossa Constituição, não obteremos grandes soluções. Considerando a extensão da CF/88, a advocacia tem previsão tímida no artigo 133, cujo teor dispõe que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
A redação do artigo é pouco feliz porque não explica a contento sobre a advocacia, e aquilo que tenta explicar parece passar uma noção equivocada da sua verdadeira função. Ao fazermos a leitura crua do artigo 133, imaginamos que a advocacia é uma engrenagem que opera junto com as outras instituições para que se chegue à “justiça”. Esse é um primeiro impacto da leitura, que adota uma linha não muito adequada porque o advogado, antes de auxiliar na administração da justiça, é uma garantia do cidadão contra os eventuais arbítrios cometidos pelo Poder. Ou seja, o advogado não tem como função precípua a administração da “Justiça”, mas a fiscalização de que o exercício do Poder estatal seja exercido dentro dos limites que lhe são impostos. É exatamente nesse sentido que Eduardo Fonseca escreve ensaio de fôlego, no qual demonstra as diferenças entre advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, esclarecendo que esta é uma instituição de Poder, ao passo que aquela é uma instituição de garantia[3].
Com efeito, a advocacia surge já na Antiguidade. Ganha contornos distintos na Grécia e depois em Roma. Interessa-nos o seu surgimento no mundo anglo-saxão, porque ocorre em período muito próximo ao surgimento do Processo, outra garantia fundamental ao indivíduo contra os ímpetos invasivos do Poder[4]. Igor Raatz bem demonstra que é no capítulo 39 da Carta aos Barões de 1215, tal como na expressão devido processo legal, cunhada no 28º Estatuto do Rei Eduardo III em 1354, que o Processo surge como uma garantia contra o Poder[5]. Já a advocacia inglesa também tem seu surgimento no início do século XIII, aproximadamente em 1207, quando sacerdotes e pessoas de ordem sacral passaram a ter sua atuação impedida nas cortes seculares, de forma que os profissionais que ali atuariam deveriam ser compostos de uma classe especificamente treinada[6].
Os advogados ingleses eram moldados naquilo que ficou conhecido como Inns of Court, que, em seu início, eram espécies de associações que congregavam advogados de todo o reino e eram os locais onde as instruções sobre o Direito inglês eram fornecidas. Curioso observar as datas do surgimento dos referidos Inns: em sua versão incipiente, tiveram o seu surgimento no período de reinado do Rei João ao período do Rei Eduardo, mas a sua formação, como hoje é conhecida, foi provável e precisamente no reinado de Eduardo III, em 1327[7].
Observamos assim que processo e advocacia são coirmãos em sua gênese. Isso explica por que são coirmãos também em seu tratamento: são instituições de garantia do indivíduo, razão pela qual ambas despertam a fúria dos ditadores sedentos por mais Poder, afinal de contas, colocam verdadeiros empecilhos nas suas pretensões expansionistas e arbitrárias. A advocacia esteve, pois, militando em favor dos indivíduos e sua formação nasce, na esfera anglo-saxã, pautada na liberdade. Não é sem razão, portanto, a frase de Ben Johnson sobre as Inns of Court: “the noblest nurseries of liberty and humanity in the Kingdom". Bem compreendida, a advocacia é, portanto, sinônimo de liberdade.
Hitler foi coerente naquilo que propôs e os seus ataques aos advogados são apenas corolários lógicos do seu projeto de Poder. É por isso que fantasiar o ditador como uma pessoa desprovida de inteligência não representa bem a realidade, sobretudo porque sua leitura sobre a natureza real do Poder foi extremamente aguçada. O ser humano médio não consegue fazer sequer com que seu próprio cachorro lhe obedeça; Hitler segurou a batuta de uma das hecatombes mais brutais de que se teve notícia, mas antes, para que isso fosse possível, teve que colocar toda uma nação de joelhos perante si. Nada mais lógico e coerente, portanto, do que atacar aqueles que lhe apresentavam entraves e insistiam em tentar endireitar a espinha dorsal dos indivíduos em face do Poder arbitrário: os advogados.
Assim, o regime nazista tratou de eliminar todos os resquícios de uma advocacia forte e independente, porque sabia que ela seria um verdadeiro entrave aos seus anseios hipertróficos. Não é por outro motivo, aliás, que, dentre todas as medidas jurídicas que foram adotadas por Hitler, além da icônica criação do Volksgerichtshof, responsável por condenar à pena capital mais de 5 mil pessoas sem que sequer tivessem o direito de recorrer, foi o aumento dos poderes da Gestapo, a revogação formal da legalidade, o fortalecimento da posição procedimental do acusador e, obviamente, o enfraquecimento dos direitos dos advogados de defesa[8].
A advocacia é, de fato, uma desgraça. Para o Poder arbitrário.
Daí por que a advocacia é algo tão caro à liberdade e ganha contornos preocupantes no Brasil. Obviamente o advogado que escreve este pequeno ensaio não perdeu seu senso de proporções e não pretende sequer supor que há um paralelo entre as investidas contra a advocacia de regimes totalitários e o quadro brasileiro atual. Longe disso, o ponto é apenas descrever a importância que a advocacia teve ao longo da história e reivindicar que a advocacia seja tomada mais a sério pelas instituições do país e, principalmente, pelos próprios advogados, que parecem estar tomados pela letargia da humilhação diária[9].
Afinal, o respeito alheio só é devido quando aqueles que o avocam são dignos de serem respeitados.
[1] JASCH, H. Civil service lawyers and the holocaust: the case of Wilhelm Stuckart. In: STEINWEIS, A.; RACHLIN, R. (Ed.) The law in Nazi Germany: ideology, opportunism, and the perversion of justice. New York: Berghahn, 2013. p. 38.
[2] RACHLIN, R. Roland Freisler and the Volksgerichtshof: The court as an instrument of terror. In: STEINWEIS, A.; RACHLIN, R. (Ed.) The law in Nazi Germany: ideology, opportunism, and the perversion of justice. New York: Berghahn, 2013. p. 67-68.
[3] COSTA, E. J. da F. A advocacia como garantia da liberdade dos jurisdicionados. Empório do Direito, Santa Catarina, 9 de maio de 2018.
[4] Que sempre e invariavelmente procura a sua própria expansão. Nesse sentido, ver DIETRICH, W. G. O processo: a história natural do seu sufocamento. Empório do Direito, Santa Catarina, 8 de maio de 2019.
[5] RAATZ, I. Processo, liberdade e direitos fundamentais. Revista de processo, v. 288, p. 21-54, 2019.
[6] TIMBERLAKE JR., E. W. Origin and development of advocacy. Virginia Law Review, Vol. 9, No. 1 (nov. 1922), p. 30-31.
[7] TIMBERLAKE JR., E. W. Origin and development of advocacy. Virginia Law Review, Vol. 9, No. 1 (nov. 1922), p. 30-31.
[8] STOLLEIS, M. The law under the swastika: studies on legal history in Nazi Germany. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. passim.
[9] STRECK, L. L. Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos. Consultor Jurídico, São Paulo, 28 jul. 2016.