Opinião

Uma análise do Decreto 6.514/08, que altera regras para multas ambientais

Autor

  • Alexandre Burmann

    é advogado professor especialista em Direito Ambiental mestre em avaliação de impactos ambientais doutorando em Direito Ambiental presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e autor do livro: Fiscalização Ambiental (Editora Thoth 2022).

1 de junho de 2019, 6h55

Recentemente, o governo brasileiro anunciou mudança no Decreto Federal 6.514/08 com o objetivo de “tornar mais ágeis as cobranças de multas ambientais no país”[1]. Saltou aos olhos de todos os observadores da área ambiental a criação do Núcleo de Conciliação Ambiental (NCA), esfera administrativa que pretende estimular a conciliação, “com vistas a encerrar os processos administrativos federais relativos à apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”[2].

De forma concisa, pretendemos avaliar as situações indicadas do novo decreto. Como referido em outra oportunidade, não pretendemos “questionar eventuais aspectos que são considerados inconstitucionais do Decreto nº 6.514/08 pela doutrina. Aqui, partimos da premissa que o Superior Tribunal de Justiça[3] vem decidindo pela não existência de violação ao princípio da legalidade, quando o detalhamento das infrações administrativas ambientais ocorre por meio de decreto regulamentador”[4].

Premissas iniciais consignadas, verificamos que o Decreto Federal 9.760/19 trouxe em seus dispositivos inserir-se em um viés de estímulo à conciliação, consoante redação do novo artigo 95-A, buscando soluções alternativas para a resolução de conflitos. Assim como a audiência conciliatória, prevista no novo Código de Processo Civil (artigo 334), inclusive na área ambiental, a possibilidade de conciliação em processos administrativo pode servir de instrumento para resolver pendências que por muitas vezes parecem intermináveis — e resultam em um processo administrativo ambiental ineficiente, em descumprimento ao artigo 37 da Constituição Federal[5].

Um breve parêntese aqui: em relação à eficiência nos processos administrativos, está indicada a possibilidade de intimações por meio eletrônico, desde que haja concordância expressa do autuado[6] — medida que pode agilizar as notificações nos expedientes, sobretudo se considerarmos que, em um curto espaço de tempo, todos os processos migrarão para o meio digital.

O recém-instituído Núcleo de Conciliação Ambiental (artigo 98) é mais uma instância administrativa no processo e de seu funcionamento correto dependerá todo o sucesso desta mudança. Tal núcleo será composto de pelo menos dois servidores efetivos, sendo um deles integrante do órgão de fiscalização. O Núcleo de Conciliação Ambiental terá competência para realizar a avaliação preliminar para “a) convalidar o auto de infração que apresentar vício saneável; b) declarar nulo o auto de infração que apresentar vício insanável; c) decidir sobre a manutenção de embargo, suspensão de atividades, demolição e as demais sanções elencadas no artigo 101”.

Sobre tais competências referidas, o NCA se constitui, como referido, em uma instância administrativa prévia de análise dentro do processo, pois as mesmas atribuições continuam sendo de competência da autoridade julgadora, nos termos dos artigos 99 e 100 do decreto originário. Há clara sobreposição de competências administrativas. Presume-se que o núcleo de conciliação possa tornar mais célere a análise de eventuais vícios do auto de infração e instauração do processo administrativo ambiental, de forma a diminuir o volume de atribuições da autoridade julgadora.

O NCA tem competência também para a realização da audiência de conciliação ambiental, onde será explanada as razões de fato e de direito que ensejaram a autuação. Esse é um ponto importante e talvez mais interessante da criação do NCA: a partir desse momento, a administração apresenta as opções para que o autuado possa “encerrar” o processo administrativo, homologando a opção porventura escolhida, como o desconto para pagamento, o parcelamento e a conversão de multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental. Nas redações passadas, o autuado raramente conhecia a possibilidade de conversão do valor da multa e de firmatura do Termo de Compromisso Ambiental — e sendo assim, na maioria das vezes, o pedido de conversão não era requerido por absoluto desconhecimento da parte.

Porém, desde já deve ficar claro que qualquer das opções assumidas pelo infrator junto ao NCA não acabarão por encerrar o processo, como supostamente se pretende. Isso porque o auto de infração, quando pago, parcelado ou convertido em serviços ambientais, deverá ser obrigatoriamente julgado. Poderá ser um julgamento formal ou mesmo realizado a título declaratório, mas obrigatório — pois somente o julgamento do auto de infração gerará os efeitos da reincidência (artigo 11 c/c 124 do Decreto Federal 6.514/08), como já alertaram outros especialistas da área[7]. Essa é uma das lacunas das alterações propostas.

Na sequências das alterações, outra mudança festejada é a possibilidade de pagamento de multa em sua forma parcelada. E assim como no caso da conversão do valor da multa, o processo deverá ficar em suspenso até seu efetivo pagamento (ou cumprimento do TCA, nos casos de conversão). Porém, a indicação da suspensão do processo administrativo ambiental deve ser adequada ou regulamentada pelo governo federal, considerando a supressão de texto expresso sobre o tema: o parágrafo 5º do artigo 146 do Decreto Federal 6.514/08. Ainda, o NCA também poderá decidir sobre eventuais questões de ordem pública, como a prescrição.

De outra banda, a possibilidade de conciliação não resulta na ausência de reparação dos danos efetivamente comprovados, pois a redação do parágrafo 2º do artigo 98-C indica expressamente que “a realização de conciliação ambiental não exclui a obrigação de reparar o dano ambiental”. Da mesma forma que a alteração proposta anteriormente pelo Decreto Federal 9.719/17[8], o novo texto legislativo reforça a independência entre as esferas de responsabilidade ambiental, vinculando a conciliação à responsabilidade administrativa e reforçando o caráter de responsabilidade civil da reparação do dano.

A partir da vigência da nova redação[9], portanto, o autuado, ao receber o auto de infração, será notificado da ocorrência de audiência de conciliação, em data e hora agendados[10]. O prazo para a apresentação de defesa continua sendo de 20 dias, porém, sobrestado até a realização da audiência de conciliação. Caso o autuado não compareça ou não tenha interesse na conciliação proposta, a data de contagem será a partir da data aprazada para a audiência.

Caso a audiência ocorra, dela será feita um termo, contendo: a) a qualificação dos participantes; b) a certificação de que foi realizada a análise preliminar da autuação; c) a certificação de explanação ao autuado das razões que ensejaram a lavratura do auto de infração, bem como da apresentação das soluções possíveis para encerrar o processo. Além disso, inserir-se-á a manifestação do autuado, confirmando: i) o interesse na conciliação, com a respectiva solução para o processo e suas obrigações; ii) a desistência de impugnar judicial e administrativamente a autuação e eventual obrigação de protocolar pedido de extinção do processo em eventuais ações judiciais propostas; e iii) a ausência de interesse na conciliação.

Outra mudança é a impossibilidade de converter o valor da multa em serviços ambientais quando da infração tenha provocado mortes humanas[11], em uma clara referencia às tragédias ambientais de Mariana e Brumadinho.

Os benefícios ao autuado para “encerramento” do processo administrativo foram ampliados, como a já referida possibilidade de parcelamento da multa ambiental, mantido o desconto de 30%[12] que também é oferecido para o pagamento à vista.

Também não há mais diferença de descontos entre a modalidade direta (o serviço ambiental é de responsabilidade do autuado) ou indireta (o serviço ambiental já é previamente cadastrado, cabendo ao infrator beneficiado somente o pagamento de valores). Ressalta-se que a modalidade de conversão indireta, que era predominantemente realizada por organizações não governamentais, agora contará com a concorrência de empresas públicas e privadas, conforme nova redação do artigo 140-A. É um tema que dependerá de uma regulamentação mais adequada para fins de sua implementação. Além disso, os projetos de conversão indireta “ser executados prioritariamente no Estado em que ocorreu a infração”[13], priorizando a localidade e o bioma prioritariamente afetado pela eventual ocorrência da degradação ambiental.

Assim, para ambas as modalidades de conversão da multa em serviços ambientais, o desconto poderá chegar até 60% do seu valor originário — uma grande vantagem ao autuado, como já informava Talden Farias[14]. O maior percentual de desconto, de 60%, será para quem solicitar a conversão na audiência de conciliação; de 50% para quem solicita a conversão até o julgamento do auto de infração; e de 40% para quem solicita a conversão em grau de recurso. Ou seja, não há mais momento processual administrativo específico[15] para requerimento da conversão do valor da multa em serviços ambientais; porém, com o objetivo de redução do tempo de tramitação dos processos administrativos, quem requere a conversão na fase inicial do processo terá um desconto maior.

Ainda sobre a conversão de multas em serviços ambientais na modalidade direta, foi revogado o texto que determinava a necessidade de apresentação de projeto de serviço ambiental (ou pedido de prazo para tanto) no momento da defesa. Isso deve facilitar o pedido de conversão de multa por parte do autuado, que poderá discutir livremente com a administração a melhor forma de prestação do serviço ambiental.

Assim, nessa análise sucinta, verificamos que a intenção das mudanças promovidas no Decreto Federal 6514/08 são, no geral, positivas ao desenvolvimento do processo administrativo ambiental, especialmente com o estimulo à solução dos conflitos com a criação do Núcleo de Conciliação Ambiental. Porém, a sobreposição de competências administrativas desse núcleo e da autoridade competente para o julgamento do auto de infração mostram que o efeito prático pode não ser o almejado, pois o NCA terá autonomia limitada a avaliações sobre os vícios dos autos de infração e questões de ordem pública. Não obstante tal fato, a oportunidade de exposição da situação em audiência e a possibilidade de um encaminhamento de solução (para ser consolidada pela autoridade julgadora) poderá ser uma ferramenta para acelerar a tramitação dos processos. Se a proposta não funcionar, teremos mais uma instância burocrática a trabalhar pela ineficiência dos processos administrativos.

Nesse sentido, faltou uma melhor definição sobre o encerramento dos processos administrativos pelo núcleo de conciliação em relação à necessidade de julgamento dos autos de infração, que continua sendo atribuição da autoridade julgadora do órgão ambiental. Reafirma-se que a aplicação do instituto da reincidência, para duplicar ou triplicar o valor da sanção pecuniária, só é possível mediante o julgamento do auto de infração.

A mudança que inclui a opção de pagamento da multa de forma parcelada é uma decisão acertada, porém, dar a mesma vantagem (desconto de 30%) para quem pretende pagar o valor à vista não parece ser uma medida razoável.

De outra banda, o alinhamento dos valores de descontos para as conversões de multa, nas modalidades direta ou indireta — que causava confusão entre os operadores de Direito e especialmente ao órgão ambiental —, também foi uma boa medida. Ficará a critério do autuado a decisão de realizar o serviço por seus próprios meios ou aderir a algum projeto pré-definido (ainda depende de regulamentação).

Não há como antecipar conclusões positivas ou negativas, apesar das intenções propostas. Somente o “tempo, a prática jurídica (nos processos administrativos ambientais) e a efetivação de projetos e serviços ambientais mostrarão se as mudanças foram bem sucedidas”[16].


[1] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/04/11/bolsonaro-assina-decreto-para-converter-multas-ambientais-em-acoes-de-recuperacao-do-meio-ambiente.ghtml
[2] Conforme redação do artigo 95-A.
[3] Alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça: REsp 1.091.486/RO; REsp 1.080.613/PR.
[4] https://www.conjur.com.br/2018-jan-27/alexandre-burmann-conversao-multas-servicos-ambientais
[5] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte.
[6] Artigo 96, §4º.
[7] Pedro Campany, 5 minutos de Direito Ambiental, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=0kFzQhV9-ZY
[8] Artigo 141 do Decreto Federal 6.514/08, com redação do Decreto Federal 9.179/17.
[9] Prazo de 180 dias a contar de sua publicação, conforme artigo 3º do Decreto Federal 9.760/19.

[10] Artigo 97-A.
[11] Artigo 139, parágrafo único.
[12] Artigo 113, §2º, NR Na redação anterior: modalidade direta, 35% desconto; modalidade indireta, 60% desconto.
[13] Nova redação do § 3º do artigo 142-A.
[14] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/04/14/O-que-muda-com-o-decreto-de-Bolsonaro-sobre-multas-ambientais.

[15] Na redação anterior, o Decreto Federal 6.514/08 indicava a necessidade de requerimento da conversão do valor da multa somente no momento da defesa ou das alegações finais.
[16] https://www.conjur.com.br/2018-jan-27/alexandre-burmann-conversao-multas-servicos-ambientais

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em Direito Ambiental, professor, mestre em Avaliação de Impactos Ambientais, secretário-geral da União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa), diretor da Associação Gaúcha de Direito Ambiental Empresarial (Agaae) e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RS.

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