Opinião

Causas envolvendo Direito Administrativo ocupam boa parcela da Justiça do Trabalho

Autores

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

  • Sérgio Ferraz

    é advogado parecerista procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.

31 de julho de 2019, 6h19

A tentativa de redução ou mesmo de extinção da Justiça do Trabalho é tema que sempre está em pauta. Governos que adotam um posicionamento econômico mais liberal (ou neoliberal, utilizando uma expressão mais atual) tendem a enxergar a Justiça do Trabalho como um empecilho ao desenvolvimento econômico, convertendo-se em mais um custo desnecessário, somando-se a tantos outros — destacadamente excesso de burocracia e elevada carga tributária — que tolhem o espaço para um bom ambiente de negócios.

Parece-nos que assiste mesmo alguma razão aos críticos dessa corrente, que veem com maus olhos a Justiça trabalhista; há, de fato, uma série de razões que contribuem para o incremento dessa desconfiança quanto a esse ramo do Judiciário tão especializado. Dentre essas disfunções, destacamos dois pontos: a) um largo (e inoportuno) crescimento da Justiça do Trabalho no Brasil, com a criação de tribunais em unidades federadas que jamais suportariam ou justificariam a sua existência[1]; b) os excessos, maiormente processualísticos, cometidos pela Justiça do Trabalho, consubstanciado no desrespeito a regras processuais claras, criando um ambiente de insegurança jurídica e, até certo ponto, de pavor.

É claro que existem outros problemas relacionados à Justiça do Trabalho no Brasil, mas o objetivo deste pequeno texto não é apontar tais falhas, sob pena de iludir o leitor quanto ao desígnio do próprio título, que importa a outra leitura.

Tirante esses problemas, foquemos a realidade que hoje se apresenta. Existe uma Justiça do Trabalho concentrada em um tribunal superior e em 24 tribunais regionais do trabalho espalhados pelo Brasil, sem contar as inúmeras varas do trabalho. Analisar esse quadro implica indagar sobre sua natureza e, mais que isso, sobre sua verdadeira função — eis aqui o foco da discussão trazida neste pequeno ensaio: de que se ocupa a Justiça do Trabalho, sobretudo em alguns estados da federação?

A resposta poderia ser um pouco mais simplista, se interpretássemos a Justiça do Trabalho sob um viés notadamente de relações privadas na clássica relação patrão-empregado. Todavia, esse ramo especializado não cuida somente de causas de natureza estritamente privada, pois que se destina também a apreciar causas em que esteja presente o poder público, nas suas mais variadas relações.

Na ausência de um banco de dados mais completo, torna-se complicado lidar com números e estatísticas. Partiremos de análises mais abrangentes, sem qualquer pretensão de esgotamento, pois o objetivo do texto é, como já mencionado, alertar que a Justiça do Trabalho lida com várias causas em que se encontra presente a administração pública, comprovando que esse ramo especializado não trata apenas de relações privadas. Pois bem: citemos aqui alguns exemplos dessa relação publicista encontrada na Justiça do Trabalho.

A primeira delas envolve as chamadas contratações irregulares, usualmente realizadas pelos municípios brasileiros. Tal situação proporcionou a edição, pelo Tribunal Superior do Trabalho, da Súmula 363, que trata sobre os efeitos do contrato nulo, é dizer, aquele que viola a norma constitucional impositiva do concurso público, a ver:

Súmula nº 363 do TST
CONTRATO NULO. EFEITOS (nova redação) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

Esta ainda é uma realidade encontrada nos mais variados municípios brasileiros. Destaque-se que, dos 5.570 municípios espalhados pelo Brasil, boa parte deles não possui sequer estatuto e, mesmo quando possuem, as contratações ocorrem de modo precário, desaguando em variadas reclamações trabalhistas — que deverão ser solucionadas à luz da Súmula 363.

Para além, há outro fato que assola pequenos municípios brasileiros — a ausência de estatuto próprio, positivando o regime jurídico único local. Em tais situações, mesmo existindo regular concurso público, o vínculo com a administração pública (via de regra, a administração direta) é formado por meio da Consolidação das Leis do Trabalho, atraindo, portanto, a competência da Justiça do Trabalho para possíveis litígios. Essa é uma realidade ocorrente no Brasil[2], sobretudo em municípios menores, que sequer poderiam ter sido criados[3]. Cria-se um vínculo institucional com o poder público, mediante concurso público, mas regido pela legislação trabalhista. Decerto, a relação celetista formada perante a administração direta atrai um sem-número de efeitos, no mais das vezes problemáticos, a começar pelo questionamento quanto à estabilidade[4].

Outro caso ocorrente na Justiça do Trabalho envolvendo a presença do poder público diz respeito à terceirização no âmbito da administração pública. A celeuma sempre existiu e continuou a existir mesmo após o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 16 pelo Supremo Tribunal Federal. No âmbito da Justiça do Trabalho, vigora a Súmula 331, que, em seu inciso V, assim prescreve:

Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

Tramitam na Justiça do Trabalho incontáveis ações em que se discute a culpa in eligendo e in vigilando, motivos pelos quais a administração pública arcaria com as consequências decorrentes dos ônus da contratação supostamente errônea. Ao fim e ao cabo, nessas situações, há também a presença da administração pública na Justiça do Trabalho.

Ainda nesse rol de exemplificações, despontam as relações mantidas com as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista, bem assim suas subsidiárias, independentemente de serem prestadoras de serviços públicos ou exploradoras de atividade econômica). Em todos os casos, por serem empregados celetistas, possíveis questões jurídicas são tratadas na Justiça do Trabalho. Neste cenário, entram temas controvertidos, como a suposta motivação do ato demissional (OJ 247 do TST), matéria que vem sendo tratada pelo Supremo Tribunal Federal na apreciação do RE 599.658, assim como diversos outros assuntos, que, ao final, têm a presença da administração pública e, portanto, um conteúdo de Direito Administrativo.

Por fim — mas sem qualquer esvaziamento do tema —, citemos os exemplos dos empregados do terceiro setor, especialmente do Sistema S. Aqui também existe, ainda que em menor grau de incidência, a presença do poder público, nomeadamente por força das contribuições sociais (tributos) que são destinadas a estes entes. Não há como disfarçar a constância de normas do Direito Público e, sendo assim, não se pode atribuir aos conflitos trabalhistas existentes entre estes entes e seus empregados um conteúdo exclusivamente privado.

Portanto, não há como se desbordar da ideia de que a Justiça do Trabalho ocupa-se de uma boa parcela de causas que envolvem a presença do poder público, seja de forma mais direta, seja indiretamente, daí que se faz possível concluir pela existência de um Direito Administrativo do Trabalho, ou Direito Administrativo na Justiça do Trabalho, um ramo do Direito Administrativo, em simbiose com Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, que trata de uma parte específica das relações trabalhistas, onde o conteúdo nitidamente privado, ínsito à Justiça do Trabalho, já não é exclusivamente preponderante, porque presente, em maior ou menor grau, o poder público em um dos lados da relação jurídica processual.

À guisa de conclusões derradeiras — mas não exaurientes —, extinguir a Justiça do Trabalho não é a solução para o problema, porquanto as tratativas de Direito Público tratadas nessa Justiça especializada serão levadas a outra seara da Justiça comum; repensar seu funcionamento e estrutura, todavia, é algo que se impõe!


[1] Exemplo é o Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, no Piauí, que possui apenas 12 varas do trabalho (algumas sem condições de existir, face à inexistência de processos), e, para estas, oito desembargadores. É uma relação manifestamente assimétrica! Há outros casos, claro, de tribunais com menos de 20 varas do trabalho ou pouco mais que isso (Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão, Alagoas etc.).
[2] Os autores não têm um número exato sobre a quantidade de municípios brasileiros que não possuem estatuto próprio. Os dados não se encontram disponíveis em um banco de dados seguro. Portanto, as menções aqui apontadas partem de pesquisas empíricas, com espaço amostral mais reduzido.
[3] Quanto à possibilidade ou não de existirem tais municípios, ou quanto ao questionamento de eles terem sido criados, os autores possuem um posicionamento já formado, no sentido de que a sua quase totalidade sequer deveria existir; mas existem e, por isso, devemos tratar dos aspectos jurídicos decorrentes da realidade.
[4] O artigo 41 da CF não resolve a temática, porque somente faz menção à estabilidade de servidor nomeado para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. Ora, se o sujeito faz um concurso público para integrar a administração direta de um determinado município, o fato de este município não possuir estatuto não lhe retira, a nosso sentir, uma pretensão quanto à estabilidade. Todavia, apesar de este ser um tema polêmico, a Súmula 390 do TST, em seu inciso I, abona a tese por nós defendida: “SUM-390 ESTABILIDADE. ART. 41 DA CF/1988. CELETISTA. ADMINISTRAÇÃO DIRETA, AUTÁRQUICA OU FUNDACIONAL. APLICABILIDADE. EMPREGADO DE EMPRESA PÚBLICA E SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. INAPLICÁVEL
I – O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988”.

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    é sócio do Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador e vice-presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA).

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    é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.

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