Contas à Vista

Estão propondo mais Brasília e menos governos estaduais em nossa federação

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

30 de julho de 2019, 8h05

Spacca
Um dos motes de campanha do nosso presidente foi “menos Brasília e mais Brasil”. Será que, passados seis meses de seu governo, isso está na pauta do dia? Ou, em concreto, se verificam sinais do oposto?

Falar em “menos Brasília” é tratar de descentralização política, administrativa e financeira. É tratar de federalismo em sua essência. Não existe um modelo ideal de federação. Existem países que nem se organizam como uma federação e possuem descentralização, como se vê na Espanha, onde até mesmo é permitido que algumas regiões mantenham outro idioma em suas comunicações e no ensino, como na Catalunha, onde a língua própria, o catalão, é ministrado nas escolas e é divulgado na televisão. Não se trata da conhecida insurgência daquela região autônoma espanhola; isso é expressamente permitido naquele país.

Federação pressupõe descentralização, como se vê nos Estados Unidos, onde existem até mesmo regras de Direito Processual, de Direito Civil e de Direito Penal para cada estado — o regramento do matrimônio no estado de Nova York é diferente do da Califórnia, e o que é crime em um estado pode não ser em outro.

Nos primórdios do século passado, o Brasil seguia esses passos descentralizadores, até que, com o Estado Novo, de Getúlio Vargas, a centralização se impôs — o que era compreensível, pois se tratava de uma ditadura.

O breve intervalo de redemocratização, entre 1946 e 1964 — singelos 18 anos — não foi suficiente para recolocar em pauta um verdadeiro ideal federalista, através do qual os estados pudessem assumir maior responsabilidade nos destinos da sociedade.

Após novo período autoritário de 21 anos, iniciamos a nova redemocratização em 1985, que culminou com a Constituição de 1988, que possui boa feição federativa, embora tímida. Basta ver que, no âmbito financeiro, a própria Constituição (artigo 34, parágrafo 8º, ADCT) determinou a necessidade de respeitar a vetusta Lei Complementar 24, de 1975, para que os estados pudessem cobrar o ICMS. É nessa norma que consta a obrigatoriedade de unanimidade deliberativa pelos estados. Amarramos a Constituição financeira e a federação ao centralismo, pois basta um voto contrário — na verdade, um veto — para que as deliberações não ocorram.

Ocorre que, com a grave crise econômica vivida pela sociedade brasileira nos primeiros anos dessa Nova República, foi necessário recentralizar as finanças, completamente bagunçadas tanto no âmbito federal quanto nos estaduais. Ocorreu a federalização das dívidas estaduais, fazendo com que os estados ficassem à mercê do governo central. Isso garroteou os estados, pois, se não podiam usar o ICMS para desenvolver seus estados e tinham uma dívida a pagar com a União, o que lhes restava? Incrementar a guerra fiscal, sob possível arguição de inconstitucionalidade das normas aprovadas localmente, ou tentar driblar os pagamentos da dívida, que estava garantida pela permissão de retenção pela União dos repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE).

Além das renúncias fiscais do ICMS, os estados passaram a realizar novos gastos, vários deles com servidores que, possuindo estabilidade funcional, engessaram a despesa. Como não houve o adequado controle por parte dos tribunais de contas dos estados, o problema se agudizou, com atraso no pagamento dos salários. E o forte impacto na previdência estadual. A mesma análise serve para os municípios. Enfim, os entes subnacionais estão falidos, em sua maior parte. Nesse sentido, é correta a análise de Marcos Mendes ("Por que os Estados quebram"), errando, contudo, ao não se aperceber que o problema é estrutural, e não conjuntural.

O que fazer? Para permitir que os estados saiam desse sufoco, foi criado o Programa do Regime de Recuperação Fiscal (RRF – Lei Complementar 159) e, em maio, foi encaminhado ao Congresso novo programa de ajuste fiscal, o chamado de Plano de Equilíbrio Fiscal (PEF), ambos analisados por Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt. Porém, os dois trazem decisões traumáticas para a sociedade local e mais centralização. Basta ver que, nessa toada, muitas atividades essenciais para os estados serão privatizadas, para pagamento das dívidas dos estados para com a União.

Em síntese, estamos entrando em um sistema de estado endividado, que tratei em outra coluna.

O que dizer, então, das propostas de reforma tributária sob o prisma da descentralização?

A proposta que se encontra em gestação na União, pelo que se vê divulgado nos jornais, cujo mentor é o atual secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, não trata do assunto, pois se cinge a reformar alguns tributos federais, mantendo a sistemática estadual tal como está.

A despeito do silêncio na proposta de reforma tributária, a Secretaria da Receita Federal vem se movimentando de forma bastante ágil no sentido de extinguir diversas unidades (superintendências) nos estados, ocasionando mais centralismo. Vê-se isso, por exemplo, com a 2ª Região Fiscal (sede em Belém) e na 9ª Região Fiscal (sede em Curitiba). A leitura óbvia disso é mais Brasília e menos Brasil.

A PEC 45, de iniciativa da Câmara dos Deputados, a partir de proposta do economista Bernard Appy, simplesmente elimina a possibilidade de os estados e municípios fazerem política fiscal, pois extingue o ICMS e o ISS, o que, na prática, acaba com suas competências tributárias, remanescendo apenas a tributação sobre o patrimônio (IPVA, ITBI e ITCMD), de muito baixa arrecadação.

A proposta Hauly, encampada pelo Senado Federal (PEC 110/19), também extingue o ICMS e o ISS.

A proposta do Grupo Brasil 200, de adoção do imposto único e extinção de todos os demais, conta com a aprovação de empresários do setor de comércio de bens e serviços e forte desconfiança do setor industrial. Do mesmo modo, centraliza toda a arrecadação brasileira na União.

Infelizmente nenhuma das propostas prevê a extinção do uso de medidas provisórias em matéria tributária, que propus, outro instrumento centralizador de poder no presidente da República.

Isso nos leva a perguntar: que federalismo queremos? A proposta de menos Brasília e mais Brasil permanece de pé? Ou se trata de mais uma retórica política para reforçar a centralização das finanças públicas no Brasil e, com isso, reforçar o poder político daí advindo? Afinal, mais centralização pode implicar em autoritarismo, sendo o federalismo um antídoto para isso. Precisamos de menos Brasília e mais federalismo.

De minha parte, penso que seria melhor descentralizar tal poder, reforçando o federalismo em vez de concentrar nas mãos da União. Observe-se que tal convicção vai na contramão de tudo que está sendo proposto.

Não se trata de deixar tudo como está, mas de conduzir as reformas do ICMS (dentre outras) por caminhos diversos, reforçando as autonomias locais. Uma pista dessa trilha seria trocar a ênfase da arrecadação do ICMS para o destino, e não na origem, como hoje existe. Seria suficiente alterar a Resolução 22/89, do Senado Federal, o que é muito mais simples do que votar uma PEC.

Claro que o ideal seria a discussão de uma proposta de reforma financeira e não apenas tributária, pois, com esta, estamos apenas olhando um lado do problema, o que simplesmente adiará sua solução. Mas é o que politicamente é possível fazer neste momento, e, mesmo assim, com muito custo.

Autores

  • é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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