Direito Civil Atual

Dans l'âme de l'université: brasileiro ganha o mais nobre título acadêmico francês

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29 de julho de 2019, 12h03

ConJur
Ut per rivulos, non statim, in mare eligas introire
(Tomás de Aquino)

Introdução
Como se noticiou recentemente, o doutor Gustavo Cerqueira foi um dos 26 laureados no Concurso Nacional de Agregação em Direito Privado e Ciências Criminais, chegando assim à mais elevada posição acadêmica francesa: professeur agrégé des Facultés de Droit. O título, equivalente ao de titular no Brasil ou de catedrático na Alemanha e em Portugal[1], é inédito para um brasileiro e exige, a par de uma saudação ao titulado, uma breve exposição sobre seu perfil e sobre o desenvolvimento desse verdadeiro evento que é o Concours d’agrégation.

O laureado e sua trajetória
Maître de conférences na Universidade de Reims Champagne-Ardenne desde 2015 (posição equivalente à de professor adjunto nas universidades federais brasileiras[2]), Gustavo Vieira da Costa Cerqueira bacharelou-se em 1998 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, em 2014, defendeu tese de doutoramento em Direito na Universidade de Estrasburgo, em regime de cotutela. Foram seus orientadores os professores Jochen Bauerreis (Estrasburgo) e João Grandino Rodas (USP).

O tema de sua tese — Le rattachement juridique des sociétés commerciales supranationales — foi abordado com grande rigor.

Consagrando a vocação do autor para um tratamento original do Direito Internacional Privado e para um trabalho comparatístico de alto padrão, a tese é leitura obrigatória para quem busca se aprofundar no estudo do tratamento jurídico das sociedades comerciais supranacionais, cujo exemplo maior é o da sociedade "anônima" europeia. Que desafios impõe a introdução desse tipo de sociedade no seio de um mercado comum, como o Mercosul? Como estabelecer seu regime jurídico, em termos de método de conexão? A essas perguntas responde o autor a partir do exemplo europeu, para propor uma solução ao Mercosul e, a partir dela, voltar à Europa, questionando os rumos do modelo de referência.

Julgada a tese em banca composta dos professores Jean-Sylvestre Bergé (presidente), Véronique Magnier, Luiz Olavo Baptista e José Gabriel Assis de Almeida, foi-lhe concedida a aprovação e consideração de “nível excepcional” tanto no plano científico da tese quanto na sustentação oral. Como referiu o professor Bergé, o trabalho revela uma grande maturidade científica e inscreve-se na categoria das “grandes” teses. Para a professora Véronique Magnier, tinha-se ali o passaporte para uma brilhante carreira acadêmica[3].

Com efeito, a exata delimitação temática e as rigorosas demonstrações emprestam à tese uma superior qualidade, afastando eventuais objeções que se pudessem endereçar ao desenvolvimento do trabalho. Pode-se bater com a ideia geral, mas não com eventuais lapsos cometidos no tratamento do tema. Por isso, recebeu o prêmio de melhor tese de Direito Privado da Faculdade de Direito de Estrasburgo daquele ano. Para bem do público, será em breve lançada como livro pela Editora A. Pedone[4]. Ao encerrar a avaliação, o orientador, professor Bauerreis, salientou as qualidades do candidato, seu esforço de pesquisa durante a preparação da tese, bem como os importantes textos científicos que ele havia entrementes produzido.

Em 2013, Cerqueira obteve o diplôme supérieur de Droit Comparé da Faculté Internationale de Droit Comparé, em Estrasburgo. Lecionou nesta universidade e na de Saarbrücken (Alemanha) na condição de docente contratado, e depois recebeu a qualificação de maître de conférences pelo Conselho Nacional das Universidades da França. Como comparatista, sucede desde de 2017 o professor Joël Monèger na presidência da seção América Latina da prestigiosa Société de Législation Comparée.

Desde que chegou à posição de maître de conférences, Cerqueira tem produzido em diversas frentes, seguindo a tradição francesa das revisões críticas e das obras coletivas. Recentemente foram lançadas resenhas sobre livros nos quais tomou parte, com destaque para a originalidade das suas propostas em relação ao Direito Internacional Privado.

Cerqueira vem trabalhando na coordenação de dois eventos internacionais que ocorrerão em São Paulo, em agosto, chancelados pela Société de Législation Comparée. O primeiro deles consiste em um colóquio de preparação da obra A função modernizadora do Direito Comparado: 250 anos da Lei da Boa Razão. Terá lugar no dia 22, na Faculdade de Direito da USP. O segundo evento, a realizar-se no dia 30, é “Inteligência Artificial e Justiça”, com presença de autoridades nacionais e estrangeiras. Nos vários painéis discutir-se-á a relação entre carreiras jurídicas e inteligência artificial, assunto que movimenta amplos debates ao redor do mundo.

Muito recentemente Cerqueira lançou um livro a respeito da sucessão nas empresas familiares[5], tema em voga no Brasil, onde se discutem os mecanismos de organização patrimonial e sucessão nos bens dos sócios. O planejamento sucessório, como se há tornado comum referir, invoca um leque de problemas, e de parte relevante deles cuida o autor, com capacidade teórica e tino prático, nessa obra prefaciada pelo professor Rodrigo Broglia Mendes e estampada pela YK Editora.

Aprovado na agregação, Cerqueira dará início ainda em 2019 às suas atividades na Universidade de Nîmes, após nomeação oficial pelo presidente da República.

Eh bien, ao concurso.

O Concours d’agrégation
O Concurso de Agregação é um evento singular. Nas palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior, “trata-se do mais difícil, prestigioso e importante concurso público nas carreiras de Estado em França”[6]. Bianual, com duração de 12 meses, compõe-se, no caso de Droit Privé et Sciences Criminelles, de quatro etapas (lições)[7].

As primeiras duas são eliminatórias. Na primeira analisam-se os trabalhos científicos dos candidatos. Na segunda, deve-se elaborar um comentário a texto doutrinário, legal ou a uma decisão judicial, após sorteio de tema pelo candidato, que dispõe de oito horas para, enclausurado, elaborar a peça. As últimas duas lições são classificatórias. A terceira é de livre preparo, também após sorteio de tema, com 24 horas para entrega. O tema tirado por Cerqueira foi “A indiferença”. Na última lição, avalia-se a especialidade. Também dispõe o candidato de oito horas, sob clausura, para a preparação. Cerqueira tratou de tema interior ao Direito Internacional Privado, área que escolheu: “Os créditos sobre o Estado devedor em direito internacional privado”.

O júri do último concurso foi composto dos professores Olivier Cachard, Hélène Gaudin, Laura Sautonie, Anne Lepage e Philippe Stoffel Munck e pelo conselheiro da Corte de Cassação Jean Yves Frouin. Coube a presidência ao professor Hugues Fulchiron.

No concurso se desenvolve o escrutínio de um saber que de há muito se tem defenestrado das universidades: o conhecimento amplo e geral do Direito. E isso se revela já pelo nome: Agregação em Direito Privado e Ciências Criminais. A junção desses dois campos em uma prova demonstra a generalidade do certame.

As especialidades são pressupostas, porque já talhadas na experiência anterior, e já demonstradas no doutoramento. Espera-se que o candidato saiba manejar os conceitos jurídicos elementares, articulando-os com elevada maturidade e expondo-os com clareza. Se ao magistério de mais alto grau pretende ascender, a forma tem grande importância.

Não é o concurso, assim, uma oportunidade para dar lustro aos próprios méritos, ou a um savoir faire particular que eventualmente caracterize o pretendente. Ao contrário, o exame procura aqueles que investem em uma das mais difíceis tarefas da vida acadêmica: abrir mão de vaidades, de exposições pessoais e do excessivo reconhecimento de si para, com mais força, articular conhecimento. Junto ao vasto saber, aprecia-se a capacidade expositiva. Sem volteios, rodopios de pensamento ou empolamentos retóricos, que desses não se serve uma verdadeira universidade.

O Concurso de Agregação resgata uma parcela da essência mesma da academia. Ao aliar ao conhecimento geral do Direito à capacidade para aplicá-lo, o laureado espelha aquilo que Ortega y Gasset referia como os pilares da universidade. Deles todos — técnica, ciência e cultura —, o mais desgastado contemporaneamente é este último, e assim o mais merecedor de resgate, dizia também o autor d’A Rebelião das Massas.

Realmente, é na conta do desprezo a uma formação cultural geral e abandono dos alicerces teóricos que se pode creditar parte do processo de declínio a que se tem submetido o ambiente acadêmico moderno, assinalado por aquilo que Eduardo Marchi chama de “utilitarismo desmedido”[8].

Quando questionado, em entrevista à RDCC, sobre o que considera essencial para a formação em Direito, o professor Reinhard Zimmermann, uma das maiores autoridades jurídicas da atualidade, não hesitou em responder: “fundamentos, fundamentos, fundamentos”[9]. Esse mesmo periódico republicou, há certo tempo, um belo texto de Moreira Alves, no qual o ex-ministro do STF pugnava pelo ensino do Direito Romano nas universidades justamente por conta de seu peso na formação cultural do aluno. Em suas palavras, a transmissão dos fundamentos do Direito evitaria que as universidades se transformassem em “fábricas de meros tecnocratas jurídicos”[10].

Pois se sobrevive na França um exame que rema na contracorrente da tendência geral dos “especialistas em especialidades”, tal se é de louvar. O júri quer que o futuro Professeur agrégé saiba dar formação sólida aos alunos, os quais, depois, buscarão a especialização, este ou aquele rumo. É nessa perspectiva ampla que se concentra a avaliação. Procura-se um verdadeiro professor. O concurso simboliza a cultura jurídica francesa: é a alma da universidade — l’âme de l’université.

Busca-se, pois, um jurista com habilidade e sensibilidade pedagógicas, como o que já a Constituição Omnem rei, de Justiniano, afirmava sobre a atividade docente. Dirigindo-se aos mais ilustres professores da época, dizia o Imperador que o objetivo do ensino era tornar os estudantes “mais perfeitos e mais instruídos jurisconsultos”[11].

Na contemporânea França, conquanto tenha ela enfrentado — como de resto toda a Europa e outras partes do mundo — uma progressiva reformulação do ensino jurídico, persiste essa marca indelével. E na agrégation está a mantença desse elevado padrão humanístico.

Cerqueira honra as palavras que seu orientador, professor Bauerreis, proferiu ao encerrar a avaliação de sua tese. Referindo-se aos méritos pedagógicos do pupilo, recomendou-lhe que não se desfizesse nunca desse traço: um estilo “que não visa apenas à transmissão do saber, mas, acima de tudo, explicar, demonstrar, convencer”. A aprovação no concurso concretiza essa esperança.

Avançando aos poucos na carreira, granjeando reconhecimento e saber, produzindo à medida das forças e com equilíbrio, há no laureado a confirmação do primeiro dos 16 conselhos de Tomás de Aquino “para adquirir o tesouro da ciência”: Ut per rivulos, non statim, in mare eligas introire; quia per faciliora ad difficiliora oportet devenire (“Escolha entrar no mar pelos regatos, não diretamente, pois é pelo mais fácil que convém chegar ao mais difícil”).

Conclusão. Res severa verum gaudium[12]
Na mesma França de onde, após o recrudescimento duma cosmovisão tecnocrática — cujo auge está na Revolução[13] —, espalhou-se a tentativa de reconstruir o Direito e seu ensino a partir de um entendimento restrito de ambos; nesta mesma França que enfrentou o processo de massificação das universidades na segunda metade do século XX[14]; nesta França, enfim, a existência do Concours d’agrégation é um alento. Se o ensino voltado ao fornecimento de técnicos em larga escala foi furtando à academia o seu papel de formação humanística, pode-se dizer que contra essas tendências vem o concurso mostrar a persistência de uma tradição muito saudável.

Saber que um brasileiro se insere nessa tradição, chegando ao seu topo, é também reconfortante. Gustavo Cerqueira representa mais do que um bom nome alçando a posição merecida. Representa um traço da alta cultura jurídica brasileira que se vai fixar nos quadros da universidade francesa, dignificando-a e dignificando todos aqueles que, do Brasil, atuantes em prol de um Direito levado a sério, congratulam-no pela conquista.

Deste autor receba o novo professeur agrégé, por suas qualidades de caráter e pela dignidade de sua conduta, a mais sincera reverência.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo francês (Parte 15). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mai-27/produz-jurista-modelo-frances-parte-15.
[
2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit.
[3] Procès verbal de soutenance de la thèse de doctorat nouveau régime en Droit International de Gustavo Vieira da Costa Cerqueira. Strasbourg, 2014.
[
4] Um resumo da tese encontra-se na Revista de Direito Mercantil, n. 166/167, p. 72-110, mar. 2017.
[
5] CERQUEIRA, Gustavo. Sucessão hereditária nas empresas familiares: interações entre o Direito das Sucessões e o Direito das Sociedades. São Paulo: YK, 2018.
[
6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit.
[
7] Informações extraídas da notícia: “Professor brasileiro alcança mais distinta titulação acadêmica da França” (https://www.conjur.com.br/2019-jun-28/professor-brasileiro-alcanca-distinta-titulacao-franca).
[
8] Introdução. In VASCONCELLOS, Manoel da Cunha Lopes et al. Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano – vol. I. São Paulo: YK, 2017. p. 35.
[
9] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sergio. Interview with Reinhard Zimmermann and Jan Peter Schmidt. RDCC, n.2, v.4, p. 379-413, jul.-set. 2015, p. 394.
[10] Universidade, cultura e Direito Romano. RDCC, n. 2, v. 3, p. 337-352, abr.-jun. 2015, p. 352.
[11] In VASCONCELLOS, Manoel da Cunha Lopes e et al. Digesto…cit. p. 42.
[
12] A frase, de autoria de Sêneca, é a divisa da Faculdade de Direito da UFRGS, de onde é egresso o laureado.
[
13] V. GALVÃO DE SOUSA, José Pedro. O Estado Tecnocrático. São Luís: Resistência Cultural, 2018.
[
14] MIAILLE, Michel; FONTAINHA, Fernando de Castro. O ensino do direito na França. Revista Direito GV, v. 6, n. 1, p. 59-66, jan.-jun. 2010. p. 62.

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