Opinião

Cabe à Convenção de Montreal regular transporte aéreo internacional

Autor

28 de julho de 2019, 16h44

1. Introdução
Durante muito tempo, houve uma séria divergência e mudanças de entendimentos judicias sobre a responsabilidade civil no transporte aéreo, especialmente no caso de extravio de bagagem e atraso de voo. Ao que parece, tudo está bem claro e pacifico, mas há alguns pontos obscuros.

Inicialmente, cumpre distinguir o que é um voo nacional e um voo internacional. Na dicção do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBAer) — na mesma linha dos tratados internacionais e demais normas —, é doméstico — nacional, para simplificar — o voo cujo ponto de partida, intermediário ou de destino encontra-se no território nacional. Portanto, se o voo tem origem, escala ou destino em território estrangeiro, é considerado internacional.

Aqui surgem duas noções. Primeiro, em uma mesma aeronave, pode haver passageiros de voos nacionais e de internacionais. Se o voo tem origem em São Paulo, escala em Fortaleza e destino em Orlando, há passageiros desembarcando em Fortaleza, portanto, voo nacional, e há passageiros desembarcando em Orlando, portanto, voo internacional. Segundo, as convenções internacionais (Montreal ou Varsóvia) somente se aplicam aos passageiros com destino a Orlando, por ser voo internacional.

Cabe um adendo para afirmar que, em relação ao transporte aéreo doméstico, não há nada a se questionar sobre qual norma aplicar. Em voo nacional, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, sem sombra de dúvidas. E, não estando caracterizada a relação de consumo, o Código Civil brasileiro.

2. Convenção de Varsóvia ou de Montreal
Feita essa distinção, observe-se que, no Brasil, o Decreto 20.704 de 1931 promulga a Convenção de Varsóvia para Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional (celebrada em outubro de 1929). A Convenção de Montreal para Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional foi promulgada pelo Decreto 5.910 de 2006 (celebrada em maio de 1999).

Nesse contexto, a Convenção de Varsóvia foi assinada em 12/10/1929 e ratificada em 2/5/1931, com vários protocolos de modificação posteriores. A Convenção de Montreal foi celebrada em 28 de maio de 1999, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 59, de 18 de abril de 2006. Entrou em vigor internacional em 4 de novembro de 2003, sendo este o sexagésimo dia contado da data do depósito do trigésimo instrumento de ratificação; e para o Brasil, em 18 de julho de 2006, nos termos de seu artigo 53.

Adicionalmente, o artigo 55 da Convenção de Montreal diz que:

A presente Convenção prevalecerá sobre toda regra que se aplique ao transporte aéreo internacional:
1. entre os Estados Partes na presente Convenção devido a que esses Estados são comumente Partes:
a) da Convenção para a Unificação de Certa Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, assinada em Varsóvia, em 12 de outubro de 1929 – (doravante denominada Convenção de Varsóvia);
b) do Protocolo que modifica a Convenção […];
c) da Convenção complementar à Convenção […]
d) do Protocolo que modifica a Convenção […]
e) dos Protocolos Adicionais números 1 a 3 e o Protocolo de Montreal número 4, que modificam a Convenção […]); ou
2. dentro do território de qualquer Estado Parte na presente Convenção devido a que esse Estado é Parte em um ou mais dos instrumentos mencionados nas letras a) a e) anteriores.

O texto determina que essa convenção prevalecerá sobre as demais normas de transporte aéreo internacional. Da simples interpretação deses texto normativo em pleno vigor para o Brasil, não se pode olvidar que está revogada a Convenção de Varsóvia pela Convenção de Montreal, relativamente a todos os países anteriormente signatários da Convenção de Varsóvia. Por óbvio, somente os países que ainda não ratificaram a Convenção de Montreal continuam submetidos às normas estabelecidas na Convenção de Varsóvia.

Para o Brasil, portanto, a questão atual não é sobre a aplicação de normas do Código de Defesa do Consumidor ou da Convenção de Varsóvia, mas, sim, desta ou da Convenção de Montreal.

Cabe lembrar que, por determinação da própria convenção, a mesma lógica jurídica aplica-se ao transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga, efetuado em aeronaves, mediante remuneração. Ou gratuito efetuado em aeronaves, por uma empresa de transporte aéreo.

3. Decisão do Supremo Tribunal Federal
Com efeito, a famosa decisão do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral (Recurso Extraordinário 636.331-RJ, relator ministro Gilmar Mendes) sob esse olhar tem algumas atecnias que merecem destaque. Trata do conflito aparente do CDC e das convenções sobre transporte aéreo internacional no tocante à indenização por extravio de bagagem.

Nesse sentido, uma das partes argumenta que fazer prevalecer o CDC viola o artigo 178 da Constituição Federal de 1988. Conquanto seja essa a tese acolhida, o STF parece não ter observado, ainda que a título de esclarecimento, que “ordenação do transporte aéreo” (texto constitucional) não se refere, em essência, ao contrato de transporte aéreo. Em outros termos, a ordenação do transporte aéreo pode se referir apenas à navegação aérea, aos requisitos de certificação aeronáutica ou de concessão de licenças, por exemplo. Podendo, assim, não estar abarcando o contrato de transporte aéreo.

Dessa forma, entende-se que a Convenção de Montreal deve prevalecer sobre o CDC, pois também o Brasil assumiu o compromisso internacional com a celebração da convenção. E o próprio texto da Convenção de Montreal (citado acima) determina que esta prevaleça sobre as normas que se aplicam ao transporte aéreo internacional, como é o caso do CDC. Dessa forma, pela especialidade, a Convenção de Montreal derroga expressamente a aplicação do CDC ao transporte aéreo internacional. E observe-se que os dois são leis, ou seja, não há hierarquia entre estes.

Portanto, não se sustenta, da mesma forma, o argumento segundo o qual o CDC teria derrogado disposições anteriores. Ainda que tenha derrogado a disposições da Convenção Varsóvia (não cabe mais discutir sobre esta), a Convenção de Montreal, em vigor no Brasil desde 2006, é posterior ao CDC. Assim, reafirma-se que a Convenção de Montreal derrogou todas as normas legais e infralegais que a contrarie.

Com efeito, a tese fixada em sede de repercussão geral é:

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

Diante desse comando normativo emanado do Poder Judiciário, não se fala muito que a tese deve ser aplicada não apenas ao caso de bagagem, atraso (transporte de pessoas e bagagem). Essa tese, pelo comando da Convenção de Montreal, aplica-se também ao transporte internacional de carga, efetuado em aeronaves, mediante remuneração. Ou gratuito efetuado em aeronaves, por uma empresa de transporte aéreo.

Seguindo essa linha de argumentos, seria absurda contradição a prevalência da Convenção de Montreal sobre o CDC se também não prevalecer sobre o Código Civil brasileiro. Assim, entende-se que essa tese de repercussão geral faz prevalecer a Convenção de Montreal sobre todas as normas legais que versem sobre o transporte aéreo internacional de pessoas, bagagem ou carga.

4. Conclusão
Como pode-se observar, a Convenção de Varsóvia não vigora mais para o Brasil. Atualmente vige a Convenção de Montreal de 1999. Essa vigência implica na derrogação de dispositivos legais que versam sobre o transporte aéreo internacional de pessoas, bagagem e cargas.

O STF, na decisão sobre essa questão, não considerou isso, mas fixou uma tese que deve ser seguida nos casos de transporte aéreo internacional de pessoas, bagagem e cargas, por força do comando normativo da Convenção de Montreal. Por fim, essa lógica jurídica deve fazer prevalecer a convenção sobre o CDC e sobre o Código Civil brasileiro, além das outras normas legais sobre transporte aéreo internacional de pessoas, bagagem e cargas.


Referências
BRASIL. Decreto nº 20.704, de 1931. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D20704.htm>. Acesso em: 28.jun.2019.
BRASIL. Decreto nº 5.910, de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5910.htm>. Acesso em: 28.jun.2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão RE 636331/RJ. Relator: Gilmar Mendes. Diário Oficial da Justiça. Brasília.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!