Opinião

Combate à corrupção não pode acobertar condutas penalmente puníveis

Autor

  • Thiago Turbay Freiria

    é mestre em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (Espanha) e Università Degli Studi di Genova (Itália) mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) pós-graduado pela Universitat de Girona (UdG) e diplomado em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile).

25 de julho de 2019, 7h14

O combate à corrupção não pode confiar o sucesso ou fracasso de ações públicas à seleção de alvos. Tampouco é material condizente à luta contra a corrupção o condicionamento de prêmios e posições de poder, sob pena de transviar ações estatais e fomentar outra corrupção, ainda mais grave.

Afora o falso âmbito de normalidade que se tenta opular, sustentando haver, simplesmente, um novo arranjo institucional eficiente entre agência persecutória e o Judiciário para fazer frente à macrocriminalidade, condutas que promovem a burla do sistema de Justiça criminal e do processo penal configuram graves delitos, em ordenamentos jurídicos de países civilizados e que — seriamente — admitiram o combate à corrupção como estratégia de moralidade pública e desenvolvimento social.

Há forte reprovação quanto à conduta de servidores que titularizam, ou titularizaram, funções públicas e se notabilizaram em maxioperações policiais/judiciais e cometem desvios funcionais.

A eficiência é, sem embargos, utilizada como fundamento de legitimação, ainda que não o seja, naturalmente. Trata-se de uma falsa premissa, que ao fim prorrogará custos desnecessários e produzirá forte insegurança. Jesús-Mária Silva Sánchez defende: "essa eficiência do chamado ‘Direito Penal moderno’, segundo meu juízo, é apenas aparente, incidindo unicamente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança"[1].

Exemplo destacado, a operação "lava jato" — a marca já predita forte adesão da sociedade — supostamente hospedou uma série de ações que fragilizaram e burlaram o sistema de Justiça e colocaram em risco a sociedade.

Burlar as regras do jogo às escondidas não favorece a sociedade, mas àqueles que as formularam, redefinindo privilégios e criando filtros de blindagem institucional que rompem o sistema de integridade jurisdicional, cuja expectativa de vigência legitima a punição estatal. Luis Greco e Adriano Teixeira alertam: "O poder deve colocar-se a serviço dos subordinados"[2].

O programa político normativo de Repúblicas que assume o compromisso de debelar a corrupção reúne esforços para impedir atuação fora dos quadrantes legais de servidores público, notadamente, aqueles à frente de processos penais, o que se verifica na adoção de tipos penais incriminadores que visam responsabilizar gravemente condutas nocivas à Justiça criminal. Nesse sentido, grandes reformas penais ocorreram na Alemanha, sobretudo, após 1997 (Gesetz zur Berkämpfung der Korruption).

Notabiliza-se o parágrafos 331[3] e 332[4] StGB[5], que virtualizam — amoldando os fatos aos tipos penais mencionados[6] — com perfeição as condutas relevadas pelo jornalístico Intercept Brasil.

Hans Kudlich assevera que, "no caso de possível suborno de juízes ou promotores, não há particularidade quanto às vantagens a serem buscadas. Tudo o que é considerado uma vantagem aqui é considerado como tal no caso de outros funcionários — possivelmente até mesmo com limites mais estritos de ajuste social, e mesmo pequenos presentes não são permitidos ao juiz durante o processo criminal"[7].

As condutas que merecem reprovação penal convolam-se na exigência maior, de dimensão normativa, de se manter a higidez e a confiabilidade do sistema de Justiça. Mais salutar é a posição de privilégio de membros de agências persecutórias e juiz, diante do domínio funcional de instrumentos que densificam aparelhos repressivos do Estado. Nota-se, de um lado está o titular da ação penal, e de outro quem define ou executa o título condenatório.

No caso alemão, o pacto do injusto da corrupção conecta a ação judicial ou persecutória e vantagem não prevista em lei, elemento central do injusto, que não precisa ser de natureza material. Move-se a ação no sentido da responsabilização penal, todavia, quando essa vantagem está atrelada ao âmbito privado.

O simples acréscimo de networking e visibilidade é passível de repressão criminal, nos casos em que o exercício profissional previsto no plexo de atribuições rescinda com os deveres funcionais[8] ou, não havendo descumprimento de dever, sejam os atos judiciais ou persecutórios motivados por alcance de posição vantajosa, ainda que não se concretize, vale dizer, que haja um pacto do injusto que focalize o desvalor da ação, e não simplesmente do resultado.

Exemplificando, decisão do BGH[9] (Bundesgerichtshof) alemão condenou professor universitário que recebia de uma empresa de equipamentos médicos uma quantia, que era destinada à pesquisa. A quantia era depositada em uma conta criada pelo professor, um fundo para fins científicos e de pesquisa. Ele, portanto, não era o destinatário final dos recursos. Também a empresa pagava viagens para a delegação do médico-professor. A condenação se deu por corrupção, parágrafo 331 StGB, dado que a gestão dos recursos se dava à revelia da administração da universidade e se atrelava com interesses privados.

Basta cingir a violação de um dever de agir dentro do processo ou investigação criminal para configurar a corrupção judicial, ou haver a mera ação vinculada à vantagem para incidir crimes previstos nos contornos legais ilustrados. Diferenciando-se, claro, a corrupção passiva simples do tipo penal qualificado pela infração do dever funcional.

Tem-se, por óbvio, que o abuso de poder no âmbito do processo penal configura hipótese de corrupção. Infere-se, portanto, que o desvalor da ação se traduz, principalmente, na burla à legitimação do exercício do poder concedido a esses atores, que concentram, em boa parte, a tutela da liberdade e de direitos fundamentais. Defendem, Greco e Teixeira, a "necessidade de justificação de toda posição de poder". Desguarnecer a justificação legítima ou desapontá-la é ato, em tese, punível penalmente.

No caso brasileiro, a questão adere a contornos ainda mais disfuncionais. A investigação recai, notadamente, na verificação do nexo entre a vantagem proibida e o exercício funcional coligado. Ora, se flexibilizarmos a determinação do ato de ofício[10] para configuração da corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal brasileiro), abrangeremos condutas que não guardam relação com a atividade funcional, abrangendo extensivamente condutas estranhas ao plexo de atribuições e competências do servidor. No Brasil, por fim, a condenação do BGH poderia, em tese, também se repetir, justapondo-se a conduta ao tipo penal do artigo 317.

Guardadas as devidas "onomatopoeses" jurídicas, os servidores atrelados ao processo penal devem ter controlados seus poderes, sob pena de deslegitimar a ação persecutória estatal e, pior, de se produzir comportamento corruptivos. Não é admissível, nesse quadrante, que o combate à corrupção sirva para acobertar condutas penalmente puníveis, com grau mais elevado de reprovação.


[1] Silva Sánchez, Jesús-Mária. Eficiência e direito penal. Jesús-Mária Silva Sánchez ; trad. Maur[icio Antonio Ribeiro Lopes. Ed, 11, Baurueri: Manole, 2004, pp. 54.
[2] A aproximação a uma teoria da corrupção. Luiz Greco, Adriano Teixeira Guimarães. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vl. 134/2017, pp. 159-188.
[3] § 331. Aceitação de vantagem. (1) Um encarregado ou uma pessoa especialmente obrigada com o serviço público que ele requer prometer, ou aceitar uma vantagem para si ou para um terceiro para uma ação do serviço, será punido com pena privação de liberdade até três anos ou com multa. (2) Um juiz ou árbitro que exige, promete ou aceita uma vantagem para si ou para um terceiro como consideração por ter tomado uma ação legal, ou irá atuar no futuro, será punida com privação de liberdade por até cinco anos ou multa. A tentativa é punível (3) O fato não é punível de acordo com o parágrafo 1, quando o autor se permite prometer ou não aceitar uma vantagem. Não é exigido por ele e pela autoridade correspondente no âmbito das suas competências, ou autorizar com antecedência a aceitação da vantagem, ou o autor imediatamente avisa e autoriza a aceitação.
[4] § 332. Corrupção. (1) O titular de um cargo ou especialmente obrigado com o serviço oficial exigido torna-se penhor, ou aceita uma vantagem para si ou para um terceiro como contraprestação por ter realizado um ato de 'serviço ou realizará no futuro e, portanto, violou as suas obrigações de serviço, ou que as violam, será punido com pena de privação de liberdade de seis meses a cinco anos. Em casos menos graves, ele será punido com pena de prisão até três anos ou com multa. A tentativa é punível. (2) Um juiz ou fiscal (Ministério Público) que exige, é feita a promessa, ou aceita uma vantagem em troca de ter feito uma ação legal, ou fazê-la no futuro, viola as suas obrigações de serviço, e será punido com privação de liberdade de um ano a dez anos. Em casos menos graves, ele será punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. (3) Se o autor requer a promessa de vantagem ou aceitar como contrapartida para a ação futura, e, em seguida, deve aplicar os n.ºs 1 e 2, quando ele mostrou-se disposto, 1. a violar os seus deveres na ação ou 2. Assim que a ação estiver sido influenciada pela vantagem, deixar ser influenciado pela vantagem no exercício da discricionariedade.
[5] Código Penal Alemão. Disponível em:
https://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/obrasjuridicas/oj_20080609_13.pdf
[6] Não se está, alerta-se, prescrevendo um julgamento de uma conduta que não é criminosa, não constitui ilícito penal no Brasil, dado os limites legais formativos do tipo de corrupção, ainda que se possa fazer um paralelo entre as elementares típicas alemãs, notadamente, parágrafos 332 e 334 StGB, e os artigos 317 e 327 do Código Penal, chegando-se a um resultado prático muito semelhante.
[7] Víctor Gómez Martín, Juan Pablo Montiel y Helmut Satzger (eds). Estrategias penales y procesales de lucha contra la corrupción. Marcial Pons: Madrid, 2018. Pp. 196. Tradução livre.
[8] Idem 1. Denomina-se como corrupção simples o pacto do injusto que não prescinde de violação de dever funcional, já àquelas com dever funcional estão previstas nos parágrafos 332 e 334 StGB.
[9] BGHSt 47, 295. Disponível em: http://www.servat.unibe.ch/dfr/bs047295.html. Acessado em 22 de julho de 2019.
[10] Reflexões iniciais acerca do crime de corrupção e a necessidade de haver o ato de ofício. Marcelo Turbay Freiria e Thiago Turbay Freiria. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 994, ago. 2018.

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