Opinião

Manifesto à declaração conjunta sobre projeto de preços de transferência OCDE-Brasil

Autores

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

  • Luís Eduardo Schoueri

    é professor titular de direito tributário da Faculdade de Direito da USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

  • Romero J. S. Tavares

    é consultor da CNI sócio da PwC e professor de Tributação Internacional.

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

25 de julho de 2019, 21h40

O Governo Brasileiro reafirmou oficialmente seu propósito de ingresso e criou o Conselho para a preparação e o acompanhamento do processo de acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pelo Decreto 9.920, de 18 de julho de 2019. Não há dúvidas de que este é um passo fundamental para nosso país, e, em matéria tributária, poderá contribuir com o aperfeiçoamento da legislação brasileira neste momento de reformas.

Para a construção desta agenda, dentre outros temas importantes, merece atenção o regime dos chamados “preços de transferência” (transfer pricing ou TP), que trata de norma tributária que visa controlar os preços praticados por multinacionais na importação ou na exportação entre partes relacionadas. Tal norma visa proteger a base tributária dos países, ao mesmo tempo em que busca evitar distorções decorrentes de vantagens competitivas indevidas, tendo em vista os preços praticados entre partes não relacionadas (princípio arm’s lengthou ALP). Nesta matéria, estamos convencidos de que se deve buscar uma convergência coordenada para permitir aos contribuintes o direito de opção entre os métodos brasileiros e aqueles da OCDE, sempre em consonância com o ALP, como forma de garantir igualdade e segurança jurídica nas relações tributárias entre empresas.

Em fevereiro de 2018, meses após a notícia do pedido brasileiro de adesão à OCDE, a equipe de TP desta organização anunciou publicamente ter iniciado um grupo de trabalho com participação da Receita Federal para avaliar a legislação tributária brasileira e identificar se seria possível um alinhamento dos métodos de TP. Em 11 de julho de 2019, durante evento realizado na Confederação Nacional das Indústrias, foi divulgada uma declaração conjunta que resume os resultados do projeto.

A notícia dessa iniciativa conjunta foi, sem dúvidas, bem recebida pelas comunidades jurídica e empresarial, já que a atual legislação brasileira de TP apresenta diversos aspectos que afetam a neutralidade tributária e que impedem um fluxo adequado de investimento estrangeiro direto para o País.

Amplas evidências econômicas confirmam que o Brasil permanece, em grande parte, fora das principais cadeias globais de valor, e evidências pontuais e situações específicas de contribuintes coletadas na Pesquisa de TP realizada pela OCDE teriam correlacionado essa questão com a inconsistência entre os padrões de TP brasileiros versus OCDE.

Acreditamos que a Pesquisa de TP conduzida pela OCDE não capturou a situação de diversos contribuintes, que estão em conformidade com as regras atuais e em situações que não levam à dupla tributação ou não-tributação.

Na verdade, a introdução das Diretrizes da OCDE relativas aos Preços de Transferência (Diretrizes da OCDE) no sistema brasileiro, mantendo a atual abordagem de margens predeterminadas (com os aprimoramentos necessários), foi a proposta que defendemos ou endossamos no lançamento do Projeto TP da OCDE-RFB em 2018. Com essa abordagem, as atuais regras brasileiras seriam aprimoradas e efetivamente convertidas em um sistema de safe harbor compatível com os padrões da OCDE.

A nosso ver, a declaração conjunta não fez justiça às muitas características positivas da abordagem brasileira de TP. Para nossa surpresa, o documento não indica apenas áreas para maior alinhamento, mas propõe um mero descarte da legislação brasileira. Por essa razão, entendemos que seria positivo expressar os aspectos com os quais discordamos.

Em primeiro lugar, ainda que as Diretrizes da OCDE possam de fato ser caracterizadas como parte da “norma [ou padrão] internacionalmente aceita[o]”, não é verdadeiro que seja essa a única fonte de aplicação do princípio arm’s length. Por exemplo, avanços importantes foram alcançados sob a égide das Nações Unidas, e muitos países divergem das Diretrizes da OCDE, ao mesmo tempo em que permanecem fiéis ao ALP — é o caso até mesmo de membros da OCDE, que jamais podem ser juridicamente obrigados por uma Recomendação da Organização. Em nossa opinião, o padrão internacionalmente aceito por excelência é o ALP, e as Diretrizes da OCDE são uma (mas não a única) ferramenta apta a implementar esse padrão.

Aqui chegamos à nossa segunda grande discordância da declaração conjunta. O documento sugere que a atual abordagem brasileira seja inconciliável com princípio arm’s length, do que discordamos fortemente. O fato de que a abordagem brasileira se escora em margens predeterminadas não leva, por si só, à conclusão de que o padrão arm’s length seja desrespeitado. Por princípio, acreditamos que as margens predeterminadas sejam sim compatíveis com o padrão internacional, desde que as margens estejam dentro de um espectro arm’s length, isto é, sejam melhor calibradas vis-à-vis o respectivo setor empresarial, e operem meramente como presunção relativa disponível aos contribuintes. É verdade, no presente estado, que as regras brasileiras ainda requerem muitos avanços nesses dois aspectos — mas isso de modo algum retira a importância das margens predeterminadas.

De fato, o uso de presunções relativas ou safe harbors opcionais confere importante segurança jurídica ao sistema, ao mesmo tempo em que evita a dupla tributação, ao permitir que o contribuinte produza evidências de que sua situação particular é diferente caso as margens predeterminadas não se ajustem aos seus fatos e circunstâncias específicos.

Com base no debate realizado na Confederação Nacional da Indústria em 11 de julho, entendemos que a OCDE tende a rejeitar essa abordagem conciliatória, por entender que as normas brasileiras poderiam levar à dupla não-tributação. No entanto, entendemos que um sistema de margens predeterminadas aprimorado optativo representaria um risco desproporcionalmente pequeno frente ao benefício que traria em termos de segurança jurídica.

Além disso, a declaração conjunta rejeita a atual abordagem brasileira de permitir que o contribuinte selecione seu método de preferência. A razão de se fornecer essa liberdade ao contribuinte reside no reconhecimento de que não existe um preço de transferência único, mas que o ALP visa estabelecer um espectro de preços. Assim, métodos diferentes que alcancem resultados diferentes ainda assim podem estar em linha com o padrão arm’s length. Ademais, o método considerado mais adequado para determinada situação pode também ser o mais oneroso, o que justificaria permitir a escolha do contribuinte.

Todos esses elementos reforçam a noção de que a abordagem brasileira, desenvolvida ao longo de anos, não deve ser simplesmente descartada. Ignorar suas muitas virtudes e partir para a completa adoção do padrão OCDE representaria, na melhor das hipóteses, uma oportunidade perdida de alcançar uma solução de compromisso que atenderia às necessidades de nosso país e que seria útil mundialmente.

O que está em jogo não é simplesmente o interesse de certos grupos empresariais que endossam a adoção das Diretrizes da OCDE na sua feição completa e original. Muito mais que isso, o esforço está em garantir que esta adesão seja feita com respeito à legislação que ousou criar uma alternativa aos métodos OCDE, reconhecida por sua relativa simplicidade e como garantidora de forte segurança jurídica. O desafio é ser capaz de aprender com a experiência brasileira e aproveitar a iniciativa conjunta com a OCDE, para gerir mutuamente um sistema aceitável de safe harbors.

Isso não quer dizer que rejeitemos a aproximação brasileira às Diretrizes da OCDE. Em diversas áreas, nosso sistema necessita de aprimoramentos, o que poderia ser alcançado com a conjunção de esforços entre RFB e OCDE. Por exemplo, a legislação brasileira de TP sobre intangíveis é insuficiente e incapaz de dar respostas adequadas aos desafios da economia moderna. Desenvolvimento adicional nessa área, no padrão arm’s length, seria muito bem-vindo.

Também acreditamos que seria positivo incorporar novos métodos e melhorar os atuais — desde que sejam mantidos como opções para o contribuinte. Em particular, a legislação brasileira e a prática administrativa ainda têm um longo caminho a percorrer no reconhecimento e implementação de ajustes de comparabilidade nos métodos transacionais (i.e. PIC, PVEX, PCI e PECEX). Embora existentes, esses ajustes são atualmente muito restritos e complexos. A contribuição da OCDE, também nessa área, seria muito relevante para aprimoramentos.

Em conclusão, defendemos firmemente que a abordagem da legislação brasileira não pode ser considerada incompatível com o princípio arm’s length (muito embora careça de aprimoramentos), e que há espaço uma solução conciliatória que incorpore as virtudes da abordagem brasileira, em benefício do Brasil, da OCDE e potencialmente de muitos outros países.

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