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Homeschooling é um prejuízo aos direitos da criança e do adolescente

25 de julho de 2019, 8h05

Por Paulo Modesto

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O ensino domiciliar no Brasil foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal em setembro de 2018. No Recurso Extraordinário 888.815-RS, submetido à sistemática da repercussão geral, o tribunal adotou tese com o seguinte teor: “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira” (Tema 822).

A simplicidade da tese proclamada esconde a riqueza do debate realizado no tribunal. No julgamento, três orientações foram assumidas pelos ministros da corte.

Para a primeira linha de compreensão, inaugurada pelo ministro Luís Roberto Barroso, a Constituição Federal cuida exclusivamente do ensino oficial escolar, ministrado em estabelecimento público ou privado, mas não proíbe o ensino domiciliar, de que resulta uma autorização implícita. Para essa orientação, uma leitura não paternalista e oficialista da Constituição permite reconhecer o direito de opção dos pais para recusarem as instituições formais de ensino e assumirem a responsabilidade pela formação educacional de crianças ou adolescentes na intimidade do lar, mantida a obrigação de avaliações oficiais periódicas.

Nessa primeira intelecção, normas vagas sobre educação constantes da Constituição devem ser densificadas pelo intérprete, sendo viável encontrar fundamento para o homeschooling em seu artigo 227 (“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito (..) à educação”) e no artigo 229 (“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”).

O ensino domiciliar, ainda nessa primeira orientação, é compatível com a Constituição Federal e pode ser implementado mesmo antes de sua disciplina pelo Congresso Nacional, desde que os pais notifiquem as secretarias municipais previamente da opção realizada, observem as unidades curriculares oficiais e os educandos domésticos sejam submetidos às mesmas avaliações periódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas públicas ou privadas. O homeschooling nessa leitura deve ser considerado modalidade específica de “ensino oficial e curricular”, embora realizado no lar, e não se traduz em segregação domiciliar do educando porque este pode socializar com outros estudantes em atividades extraclasse.

Para uma segunda orientação, de sentido oposto, inaugurada pelo ministro Luiz Fux, o ensino domiciliar “não pode ser considerado meio de cumprimento do dever de educação”, sendo proibido pela Constituição Federal, pois a carta estabelece a obrigatoriedade do ensino escolar, exigindo dos pais a matrícula dos filhos em instituições oficiais de ensino, públicas ou privadas, assim como o dever de zelar pela frequência do educando à escola no ensino fundamental (artigo 208, parágrafo 3º, da CF: “Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazendo-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”).

Para essa segunda linha de compreensão, o princípio do melhor interesse da criança, a função socializadora da escola, o princípio do pluralismo ideológico, religioso e moral inviabilizam inclusive o legislador infraconstitucional a autorizar modalidades de homeschooling. Práticas de desescolarização não se compatibilizam com o imperativo constitucional de formação integral e de socialização do educando.

Segundo ainda esta segunda orientação, a escolarização obrigatória encontra suporte em diversas normas constitucionais que valorizam a formação plural e complexa da criança e associam o dever de educação ao ambiente escolar (artigo 206, I; 208, I e IV; da CF) e, no plano infraconstitucional, são expressas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (artigo 6º) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 55 ). Além disso, a escolarização obrigatória dificulta a formação de “bolhas sociais”, o insulamento de elites em suas casas, cumprindo a escolarização o ideal republicano de respeito ao pluralismo (voto do ministro Ricardo Lewandowski).

Por fim, para uma posição intermediária ou terceira orientação, inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes, a Constituição Federal não seria incompatível em termos absolutos com o ensino domiciliar, porém essa modalidade estaria condicionada à aprovação de prévia base normativa emanada do Congresso Nacional.

Para essa terceira orientação, o ensino é obrigatório de 4 a 17 anos e, nos termos do artigo 227 da Constituição, família, sociedade e Estado devem assegurar a crianças e adolescentes convivência familiar e comunitária, não sendo admitida as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e modalidades de homeschooling puro, por negarem a participação estatal solidária, inclusive na fixação de currículos básicos e fiscalizações decorrentes. Seria cabível no Brasil apenas o “homeschooling por conveniência circunstancial”, isto é, quando esta modalidade de ensino privado individual se revelar “alternativa útil para prover os fins educacionais de modo tão ou mais eficiente que a escola” (ensino domiciliar “utilitarista”).

Segundo este último entender, a delimitação das circunstâncias especiais de cabimento do “ensino domiciliar por conveniência” cabe ao legislador nacional, não sendo direito público subjetivo dos pais ou do educando. O Congresso Nacional não está obrigado a criar essa modalidade de ensino, embora possa fazê-lo, mas deve observar princípios e preceitos da Constituição e adotar cautelas para evitar “evasões escolares disfarçadas de ensino domiciliar”, impondo frequência, supervisão, avaliação pedagógica e de socialização e fiscalização. Esses serviços de acompanhamento terão custos e mobilizarão agentes, eventualmente prejudicando o orçamento da educação pública, aspecto a ser livremente avaliado pelo legislador nacional infraconstitucional (voto do ministro Gilmar Mendes).

A orientação hermenêutica intermediária (terceira corrente) foi vitoriosa no debate do RE 888.815-RS, tendo obtido a maioria dos votos do tribunal, por isso o ministro Alexandre de Moraes lavrou o acórdão. Aprovada a repercussão geral e a tese no Tema 822, cumpre interpretá-la.

Desde logo a orientação vitoriosa assinala a inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal sobre educação domiciliar sem prévia regulamentação nacional, em bases gerais, dessa modalidade de ensino pela legislação de diretrizes e bases da educação nacional ou norma de igual hierarquia. Por outro lado, a meu juízo, a deliberação deixa em aberto vários aspectos: quais circunstâncias fáticas podem autorizar o “ensino domiciliar utilitarista”? Se houver aprovação de legislação nacional genérica, sem especificação suficiente das chamadas “circunstâncias especiais de conveniência”, incorrerá a lei aprovada em inconstitucionalidade por déficit de previsão? Quem decide em caso de conflito sobre a opção pela “escola privada individual”: os pais ou o educando?

Sem recusar o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, penso que deve ser rigorosa a avaliação jurisdicional da legitimidade da exceção ao ensino escolar formal obrigatório no Brasil. O mesmo Estado que presta com deficiência o serviço escolar tende a controlar com ineficiência a qualidade do ensino doméstico. Na prática, o ensino exclusivamente no recesso do lar sujeita crianças e adolescentes a riscos agravados que não devem ser negligenciados.

A escola é um espaço de aprendizado, de coexistência com o outro, de hétero e autorreconhecimento e, sobretudo, de equalização de diferenças. O ensino domiciliar promove o enclausuramento do educando e o torna vulnerável a discursos homogêneos, estritamente vinculados à ideologia dos pais ou de grupos em que estes estejam inseridos (igreja, partido, sindicato), sem participação plural ou o contraditório de outra instância crítica. Há perda da vivência comum ou coletiva, risco acrescido de negligência e violência doméstica, enfraquecimento do sentido de horizonte comum e de cidadania. Corre-se o risco até de criação de sistemas informais de ensino dominado por igrejas sectárias, sindicatos e partidos. Temores exagerados? Talvez.

Nesta passagem, recordo a advertência sempre atual de Hannah Arendt, em A Condição Humana, sobre a importância de esfera pública:

“É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida” (Rio: Ed. Forense Universitária, 1989, p. 68).

Educação escolar não é apenas ensino formal, mas experiência formativa ampla, que pode proteger crianças e adolescentes dos vieses dos próprios pais e eventualmente até inibir a exploração infantil e a violência doméstica, permitindo à comunidade acompanhar, fiscalizar, influir e participar do processo do pleno desenvolvimento da criança e do adolescente como pessoa. A educação, direito fundamental indisponível do educando, constitui um dever não só da família e do Estado, mas da própria comunidade, interessada na escola “aberta a todos”, aquela que fomenta a coesão social e o ethos republicano em regime de participação, solidariedade e pluralismo.

O ensino domiciliar complementar à escola é legítimo; o ensino domiciliar como alternativa excludente da escola é um prejuízo aos direitos da criança e do adolescente, salvo quando for a única ou a melhor forma de oferecer o serviço educacional para menores em situação de risco. É dizer: o educando tem o direito público subjetivo de ter acesso e permanecer na escola — direito assegurado na Constituição Federal (artigo 206, inciso I, e artigo 208, parágrafos 1º e 2º). Esse direito fundamental deve ser resguardado pelo Estado inclusive da negligência dos pais e tutores. Trata-se de hipótese de intervenção protetiva do Estado justificada pela falta de capacidade de autodeterminação dos menores e perante o déficit informativo do titular do direito fundamental, cuja não proteção pode acarretar danos irreversíveis a longo prazo.

Crianças enfermas de doenças contagiosas ou autoimunes, impedidas momentânea ou prolongadamente de frequentar a escola, devem receber serviço de ensino individual substitutivo, em casa ou no hospital. Jovens residentes em localidades desprovidas de escola habilitada ou com vaga devem poder legitimamente receber ensino domiciliar. Mas a generalização do direito à opção pelo ensino no recesso do lar parece um excesso em nosso país, além de experiência que compromete as três finalidades constitucionais da educação, enunciadas no artigo 205 da Constituição:

  • o pleno desenvolvimento como pessoa do educando;
  • o seu preparo para o exercício da cidadania; e
  • a qualificação do educando para o trabalho.

A primeira finalidade — seu pleno desenvolvimento como pessoa — pressupõe seu amadurecimento como indivíduo em interação social. A segunda — o seu preparo para o exercício da cidadania — convoca o educando a reconhecer e valorizar o pluralismo ético, racial, religioso, sexual e ideológico. A terceira — qualificação do educando para o trabalho —, no mundo contemporâneo, reclama do educando o desenvolvimento de habilidades para o trabalho em equipe, formatado no diálogo de talentos e capacidades. São resultados do processo formativo difíceis de alcançar na escola e quase inviáveis na segregação do lar, sem contato próximo com os da mesma geração em processo educacional compartilhado.

O direito à educação deve ser interpretado à luz das peculiaridades do país e sobretudo da historicidade subjacente ao direito fundamental à escola no Brasil. Em nosso país, em que há assustadoras estatísticas de violência doméstica e trabalho infantil, evasão escolar e gritantes disparidades sociais, autorizar genericamente a educação domiciliar amplificará riscos sem qualquer garantia de que estes serão minimizados por um amplo e adequado acompanhamento do sistema de controle do Estado.

Não por acaso o direito à educação, que na lei maior anterior a 1988 era expressamente autorizado a ser ministrado “no lar e na escola” (artigo 176, EC1/69), na atual lei fundamental foi definido em bases coletivas, como evidenciam os princípios fundamentais estabelecidos no artigo 206, a exemplo da “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”. Essas foram as convocações normativas do constituinte de 1988. E espera-se que elas sejam consideradas pelo legislador infraconstitucional, de forma a inibir ou evitar que o extraordinário se transforme no novo normal, e a educação se converta em segregação educacional.