Opinião

Com restrito campo de incidência, ação rescisória não pode ser banalizada

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25 de julho de 2019, 6h48

Como se sabe, no curso do processo, as decisões judiciais podem ser impugnadas pelos recursos instituídos pela legislação processual e, até mesmo, excepcionalmente, por mandado de segurança. A partir do trânsito em julgado, no entanto, a decisão que definiu o mérito da lide ainda poderá ser questionada judicialmente, porém através da ação em apreço, normalmente no prazo de dois anos, desde que ocorra, em tese, alguma das hipóteses inscritas no artigo 966 e seguintes do vigente CPC, correspondentes, mutatis mutandis, ao artigo 485 e seguintes do anterior código.

Como se observa, os meios legais, alargados pela jurisprudência, diga-se de passagem, para se opor a uma decisão são vários, o que se constitui em importante fator a concorrer no sentido da notória morosidade do Judiciário. Além dos recursos, a previsão da rescisória — contida, inclusive, em preceitos da CF, artigos 102, I, j, 105, I, e, 108, I, b etc. — denota a preocupação do legislador com o valor justiça, que deve constituir-se no substrato maior dos julgados.

Embora louvável tal preocupação, tendo em vista a falibilidade dos julgamentos humanos, seja em que seara for, inclusive e obviamente na judiciária, o certo é que, percorrido determinado procedimento, asseguradas todas as garantias processuais às partes, o processo há de findar-se, resguardando-se, para o bem comum, a segurança e a estabilidade sociais, alvos maiores visados pela proteção da coisa julgada (CF, 5º, XXXVI).

Logo, os preceitos legais que autorizam o ajuizamento de rescisória devem, tanto quanto possível, ser interpretados e aplicados restritivamente, conforme preconizam, em geral, doutrina e jurisprudência, pois tal ação se volta contra determinada situação já estabilizada pela decisão rescindenda. Aliás, o inciso IV do artigo 966 reforça, em certa medida, tal convicção ao prever a rescindibilidade da sentença que ofender a própria coisa julgada.

Quando a pretensão se fundava no inciso V do artigo 485 — violação de literal disposição de lei —, preceito que tinha seu correspondente no inciso I, c, artigo 798, do CPC/39, o STF, sob vigência daquele código e competência sua para interpretar e velar pela inteireza da lei federal, antes da CF/88, houve por bem em editar a Súmula 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Em linha evolutiva, o então TFR editou a Súmula 134: “Não cabe ação rescisória por violação de literal disposição de lei se, ao tempo em que foi prolatada a sentença rescindenda, a interpretação era controvertida nos Tribunais, embora, posteriormente se tenha fixado favoravelmente à pretensão do autor”.

Regra antiga e constante é que o dissenso interpretativo entre tribunais, de norma legal, não justifica aludida pretensão. Opta-se, mais uma vez, pela subsistência dos valores sociais subjacentes à proteção da coisa julgada, ainda que jurisprudência superveniente se tenha firmado em prol da tese sustentada pelo autor, significando dizer que, no plano interpretativo, a inteligência encampada pela decisão não foi a melhor, tanto que veio a ser superada, mas, por razões outras, mais ponderáveis, deve prevalecer.

O entendimento estratificado em tais súmulas não se aplicava, porém, se se tratasse de interpretação controvertida de norma da própria CF, conforme, por exemplo, a Súmula 63 do TRF da 4ª Região: “Não é aplicável a Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal nas ações rescisórias versando matéria constitucional”. Além de reiterada, iterativa jurisprudência a respeito.

Tal restrição, contudo, veio a ser superada pela própria suprema corte, no julgamento do RE 590.809/RS, ocorrido em 22/10/2014, com repercussão geral (Tema 136), do qual foi relator o ministro Marco Aurélio, consignando a ementa: “O verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado num primeiro passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda”.

Recentemente, em igual sentido, o AR 2.422, relatado pelo ministro Luiz Fux. Ante o prescrito pelo CPC, artigos 926 e, especificamente, 927 e seguintes, os tribunais deverão observar o referido precedente, por sua eficácia vinculante.

Não obstante o juízo rescisório ainda deva ser restritivo, observa-se, todavia, que o atual CPC, em certa medida, houve por bem em lhe conferir um pouco mais de elasticidade. Fê-lo, por exemplo, no inciso V do artigo 966, quando dispôs sobre o cabimento de AR quando a decisão de mérito transitada em julgado “violar manifestamente norma jurídica”.

Escusado dizer que “norma jurídica” é mais abrangente, em tese, do que “literal disposição de lei”, tal como previa a regra similar do anterior CPC. Aquela pode ser considerada gênero, do qual a lei é uma das suas espécies, mas, também, compreende decretos, princípios gerais do Direito — REsp 11.106/SC, rel. min. Adhemar Maciel; e REsp 329.263/RS, rel. min. Nancy Andrighi. Ademais, a Lei 13.256/16 ampliou o espectro da rescisória ao acrescentar os parágrafos 5º e 6º ao referido artigo 966 ao admiti-la, fundada no inciso V, quando a decisão rescindenda houver afrontado enunciado de súmula ou acordão proferido no julgamento de caso repetitivo, o que reforça a compreensão segundo a qual “violar manifestamente norma jurídica” configura previsão mais ampla, resultante da inteligência de referido permissivo legal.

Perfilhando igual diretriz, o inciso VII do mesmo artigo substituiu a obtenção de “documento novo” por “prova nova” após o trânsito em julgado, a justificar, atendidos os demais requisitos ali previstos, o ajuizamento de rescisória, ampliando o prazo para fazê-lo para cinco anos, contados da última decisão proferida no processo (parágrafo 2º do artigo 975). É mais um avanço relativamente liberalizante da ação, pois, naturalmente, “prova nova” é mais abrangente do que “documento novo”, como cediço.

A essência será a “descoberta da prova nova”, desconhecida do autor e, obviamente, não utilizada e que seja idônea para lhe assegurar julgamento favorável. Não se trata, como resultam de tais preceitos (VII, do 966 c/c parágrafo 2º do 975), de realizar, produzir nova prova, mas, sim, da obtenção daquela preexistente até então desconhecida da parte. Embora mais abrangente, o preceptivo deve ser interpretado restritivamente, prestigiando, tanto quanto possível, a coisa julgada. No REsp 1.770.123, de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, a matéria foi examinada, constituindo-se em valioso precedente a respeito.

Outra inovação resulta do parágrafo 2º, I e II, do 966, que admite a rescisória, embora não seja de mérito a decisão transitada em julgado, desde que a mesma impeça nova propositura da demanda ou a admissibilidade do recurso correspondente. Tal constitui, como se verifica, em exceção, tendo o legislador certamente entrevisto razoabilidade em fazê-lo, considerando o obstáculo jurídico à propositura de nova demanda ante a ocorrência, em regra, da chamada “perempção da instância”, conforme o artigo 486, parágrafo 3º do CPC, símile do anterior 268, parágrafo único.

Há também o cabimento de rescisória com fulcro nos parágrafos 15º e 8º dos artigos 525 e 535, respectivamente, do mesmo código, novidades não incluídas no elenco do artigo 966, matéria a ser comentada, todavia, em outra oportunidade, tendo em vista o limite de espaço.

O vigente CPC ampliou, comparativamente com o anterior, o âmbito de admissibilidade da rescisória. Ainda assim, tal espécie de ação deve ser manejada e, sobretudo, julgada com muita cautela, pois do lado oposto encontra-se a coisa julgada, a qual, tanto quanto possível, deve ser prestigiada, valorizada, pelos fundamentos que lhes são próprios e de relevante interesse social, sobretudo a segurança jurídica.

No entanto, enquanto não operada a decadência (artigo 975 e parágrafo 2º), a res judicata subsiste com certa provisoriedade, relatividade, pois poderá ainda vir a ser desconstituída se se fizerem presentes um ou mais dos requisitos legais, devidamente demonstrados, que justifiquem a prevalência do valor justiça em detrimento dos valores certeza, segurança jurídica, imanentes à coisa julgada. A ponderação entre tais vetores é, assim, fundamental no seu julgamento.

Consabidamente, houve, sobretudo com o advento da CF/88, exponencial aumento no acesso ao Judiciário. É natural, em tal contexto, o crescimento relativo de ações rescisórias por várias razões, dentre as quais, por exemplo, a enorme quantidade de julgamentos pelos magistrados, de variada gama de ações, recursos, o que conduz, em tese, a um maior número de equívocos em suas decisões, o que é natural, a desafiar a sua utilização.

Apenas ilustrativamente, de 7/4/1989, quando foi instalado, até o último dia 2, foram ajuizadas, perante o STJ, 6.498 ações rescisórias. Uma média de 200 ações por ano, aproximadamente. Considerando o elevado número de julgamentos que o “Tribunal da Cidadania” fez, no mesmo período, tal número é relativamente pequeno. Deve se considerar, no entanto, que o número de decisões (acórdãos, em geral) de mérito, pressuposto da rescisória e que fixa a sua competência, não é tão elevado, pois, como cediço, a maioria dos recursos não conduz à apreciação do mérito, restando competente para eventual rescisória a respectiva corte de apelação. Note-se que de tal quantitativo foram procedentes 538, e improcedentes 2.968 ações. As outras obtiveram destinos variados.

Logo, é provável, quase certo, que o número de tal espécie de ação nos tribunais ordinários deve ser, proporcionalmente, bem superior, o que revela ser fundamental sopesar, ao julgá-la, com muita ponderação, a bem da ordem jurídica e social, dos valores em confronto — de um lado, a coisa julgada, que infunde certeza do direito reconhecido e segurança jurídica e, de outro, o valor justiça, muitas vezes vilipendiado pela decisão que se almeja rescindir. Certamente, não foi sem razão que o legislador previu a competência originária de tribunais para o seu julgamento, mesmo nas hipóteses em que a sentença tenha passado em julgado em 1º grau de jurisdição.

Em suma, vários fatores — estabilidade e paz social, segurança jurídica, resguardo da coisa julgada como princípio etc. — estão a recomendar que o tema seja alvo de muita reflexão, ponderação, evitando-se banalizar, diríamos, a rescisória, que tem por natureza restrito campo de incidência, não se devendo correr o risco de seu desmedido alargamento; não devendo, outrossim, o Judiciário se esquivar de admiti-la e julgá-la procedente quando estritamente tipificado o seu cabimento. Deve prevalecer, em suma, o antigo, mas sempre novo “bom senso”!

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