Opinião

A jurisprudência penal da 2ª Turma do STF no primeiro semestre de 2019

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21 de julho de 2019, 6h39

No primeiro semestre de 2019, o Supremo Tribunal Federal analisou diversas questões pertinentes em matéria penal, consolidando cada vez mais o seu papel na proteção de direitos fundamentais e na interpretação da legislação criminal em conformidade com a Constituição Federal e com os direitos convencionalmente previstos.

Assim, neste breve artigo pretende-se expor alguns julgados relevantes, que foram analisados de modo colegiado e presencial pela 2ª Turma, especialmente em Habeas Corpus. Até o fim de junho, a 2ª Turma concedeu oito Habeas Corpus, enquanto a 1ª Turma concedeu 42 ordens. Dos 12 julgados aqui expostos[1], 10 foram relatados ou restaram redigidos pelo ministro Gilmar Mendes, enquanto uma concessão foi relatada pelo ministro Ricardo Lewandowski, e uma denegação teve o acórdão redigido pelo ministro Luiz Edson Fachin.

Em 5 de fevereiro, nos HCs 144.159 e 163.461, por votação unânime em relatoria do ministro Gilmar Mendes, reconheceu-se a ilicitude de busca e apreensão realizada “em relação à pessoa distinta daquela prevista no mandado judicial, porquanto direcionado à pessoa jurídica PF & PJ Soluções Tecnológicas e cumprido em relação às pessoas físicas dos pacientes”. Citando precedente assentado pela turma no HC 106.566 (DJe 18/3/2015), o relator afirmou que:

“É fundamental o respeito às formalidades do ato de busca e apreensão, aos contornos definidos no mandado e na ordem judicial autorizadora, pois o meio de obtenção de prova em questão acarreta grave impacto à esfera de direitos do imputado. Assim, para limitar o poder do Estado, determina-se o requisito que pressupõe a autorização judicial.

O controle judicial prévio para autorizar a busca e apreensão é essencial com a finalidade de se verificar a existência de justa causa, de modo a se evitar fishing expedition (investigações genéricas para buscar elementos incriminatórios aleatoriamente, sem qualquer embasamento prévio)”.

Em 12 de fevereiro, no HC 166.694, por votação unânime em relatoria do ministro Gilmar Mendes, concedeu-se o Habeas Corpus para determinar a produção de prova requerida pela defesa (obtenção de filmagens de câmeras de estabelecimentos para verificar suposto álibi do réu), já que relevante e pertinente ao caso concreto e ilegitimamente indeferida na origem (“sob a alegação de que o princípio processual penal da paridade de armas não se aplica ao nosso ordenamento jurídico”). Conforme o voto do relator, além de ressaltar a importância da paridade de armas ao processo penal, “o direito à prova é essencial ao devido processo penal e ao direito à ampla defesa”. A ementa restou assim definida (clique aqui para ler a íntegra):

“Habeas corpus. 2. Direito à prova e à paridade de armas. 3. Imagens de câmeras de monitoramento em posse de terceiros. Pedido da defesa indeferido pelo Juízo de origem. 4. Relevância e pertinência. 5. Ordem concedida para garantir que as imagens sejam preservadas e levadas aos autos” (HC 166.694, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 22/3/2019).

Em 26 de fevereiro, no HC 147.837, por votação unânime em relatoria do ministro Gilmar Mendes, reconheceu-se a ilicitude de infiltração policial realizada sem prévia autorização judicial, em violação aos artigos 10 e 11 da Lei 12.850/13. Inicialmente designado para atuar como agente de inteligência com finalidade preventiva, no caso concreto o policial findou por expandir sua atuação e se inserir em grupo supostamente criminoso, em meio a manifestações no Rio de Janeiro. O relator assentou que, “enquanto ‘agente de inteligência’ tem uma função preventiva e genérica, buscando informações de fatos sociais relevantes ao governo, o ‘agente infiltrado’ possui finalidades repressivas e investigativas, visando à obtenção de elementos probatórios relacionados a fatos supostamente criminosos e organizações criminosas específicas”.

A partir disso, conclui-se que “a ilegalidade, portanto, não reside na designação para o militar atuar na coleta de dados genéricos nas ruas do Rio de Janeiro, mas em sua infiltração, inclusive ao ingressar em grupo de mensagens Telegram criado pelos investigados e participar de reuniões do grupo em bares, a fim de realizar investigação criminal específica e subsidiar a condenação havida”. O julgado restou assim ementado (clique aqui para ler a íntegra):

Habeas corpus. 2. Infiltração de agente policial e distinção com agente de inteligência. 3. Provas colhidas por agente inicialmente designado para tarefas de inteligência e prevenção genérica. Contudo, no curso da referida atribuição, houve atuação de investigação concreta e infiltração de agente em grupo determinado, por meio de atos disfarçados para obtenção da confiança dos investigados. 4. Caraterização de agente infiltrado, que pressupõe prévia autorização judicial, conforme o art. 10 da Lei 12.850/13. 5. Prejuízo demostrado pela utilização das declarações do agente infiltrado na sentença condenatória. 6. Viabilidade da cognição em sede de habeas corpus. 7. Ordem parcialmente concedida para declarar a ilicitude dos atos da infiltração e dos depoimentos prestados. Nulidade da sentença condenatória e desentranhamento de eventuais provas contaminadas por derivação (HC 147.837, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 26/6/2019).

Em 26 de março, no ARE 1.067.392, de relatoria para acordão do ministro Gilmar Mendes, negou-se seguimento ao recurso, mas por maioria concedeu-se Habeas Corpus de ofício para restabelecer a impronúncia de dois réus. No caso concreto, a sentença assentou que “testemunhas presenciais não os viram chutando ou arremessando pedras na vítima”, mas houve a sua reforma no tribunal, pronunciando os réus com base em uma testemunha de ouvir-dizer (que não presenciou os fatos) e outra que não foi ouvida na fase processual porque não requerida pela acusação. Em tal julgamento, o Tribunal de Justiça afirmou que para a pronúncia ao júri seria aplicável o in dubio pro societate.

Nos termos do voto do relator, o caso “demonstra claramente os efeitos problemáticos ocasionados pela construção do in dubio pro societate”. Após assentar a necessidade de uma teoria racional de valoração da prova e do estabelecimento de standards probatórios para as decisões judiciais, afirmou-se que, “para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação”, mas “a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória” de modo que se requer “um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias”, nos termos do artigo 414 do CPP. Assim, “se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro”.

Em 2 de abril, no HC 169.119, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, revogou-se prisão preventiva por maioria, pois o decreto prisional se mostrou inconsistente na demonstração tanto do fumus commissi delicti como do periculum libertatis. Quanto ao primeiro, assentou-se que “os fatos novos que pretensamente justificariam a nova decretação de prisão seriam oriundos de declarações de colaboradores premiados”, as quais seriam insuficientes para legitimar a restrição cautelar à liberdade. Assim, o relator ressaltou a “insuficiência de declarações de colaboradores para motivação do fumus comissi delicti para decretação de prisão cautelar”, pois “os elementos de prova produzidos a partir de acordo de colaboração premiada têm sua força probatória fragilizada em razão do seu interesse em delatar e receber benefícios em contrapartida, além dos problemas inerentes à própria lógica negocial no processo penal” (citando o precedente Inq 4.074, rel. min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão: min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe 17/10/2018).

Em 9 de abril, no AgR no HC 152.676, de relatoria para acordão do ministro Gilmar Mendes, vencido o relator original ministro Edson Fachin, por maioria revogou-se prisão preventiva não fundamentada em elementos concretos a demonstrar o periculum libertatis, mas pautada somente por presunções e riscos hipotéticos. No caso, reiterou-se que “a sentença condenatória superveniente não acarreta, automaticamente, o prejuízo de impetração de habeas corpus anterior direcionada ao decreto prisional original”, citando-se o precedente do HC 137.728 AgR (rel. min. Edson Fachin, 2ª Turma, DJe 31/10/2017).

Em 7 de maio, no HC 131.943, de relatoria para acordão do ministro Edson Fachin, vencido o relator original ministro Gilmar Mendes, denegou-se a ordem afastando-se a tese de insignificância na importação irregular de arma de ar comprimido com calibre inferior a 6 milímetros. Conforme a maioria, tal conduta configura contrabando, e não descaminho, sendo, portanto, inaplicável a insignificância.

Também em 7 de maio, a RCL 32.722, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, por votação unânime foi julgada procedente para “assegurar à defesa o acesso aos arquivos originais das interceptações telemáticas, consoante fornecido pela operadora BlackBerry”, por violação à Súmula Vinculante 14 do STF. Nos termos do voto do relator, por ter se estabelecido uma situação de dúvida, embasada em elementos concretos (depoimentos de policiais responsáveis pelos atos), sobre a confiabilidade dos dados apresentados pela autoridade investigatória em relação às comunicações interceptadas, “a incerteza sobre a fidedignidade das investigações impõe a adoção de medidas para proteção da cadeia de custódia das informações”.

Em 14 de maio, no HC 136.015, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, concedeu-se por maioria a ordem para anular o julgamento de recurso em que havia atuado desembargador cujo pai, também desembargador, participara de outros juízos no mesmo caso (HC e apelação). No seu voto, o ministro Gilmar Mendes assentou que “embora o texto normativo não regule a hipótese de julgadores que, possuam relação de parentesco atuarem em um mesmo processo, por uma interpretação sistemática, percebe-se que resta caracterizada fragilização da imparcialidade necessária para um julgamento justo”, de modo que “não se trata de ampliar o rol previsto no CPP, mas de declarar algo reconhecido pelo próprio julgador e depois destacado pelo Desembargador substituto, que votou pela anulação do processo desde o julgamento do Recurso em Sentido Estrito”.

Em 28 de maio, no HC 171.438, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, por empate na votação (ausente o ministro Lewandowski), concedeu-se a ordem para “convolar a compulsoriedade de comparecimento em facultatividade e deixar a cargo do paciente a decisão de comparecer, ou não, à Câmara dos Deputados, perante a CPI-BRUMADINHO, para ser ouvido na condição de investigado”. Ou seja, em razão do direito ao silêncio e da vedação à condução coercitiva (ADPFs 395 e 444) autorizou-se o não comparecimento do paciente à CPI. Nos termos do voto do relator, “por sua qualidade de investigado, não pode o paciente ser convocado a comparecimento compulsório, menos ainda sob ameaça de responsabilização pena”, pois, “se o paciente não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação”.

Em 11 de junho, a RCL 33.711, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, por maioria foi julgada procedente para declarar a nulidade de entrevista informal realizada com investigado. Conforme assentado pelo relator, “no caso em análise, a violação do direito ao silêncio e à não autoincriminação, estabelecidos nas decisões proferidas nas ADPFs 395 e 444, ocorreu com a realização de interrogatório travestido de entrevista, formalmente documentado durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão, no qual não se oportunizou ao sujeito da diligência o direito à prévia consulta a seu advogado e nem se certificou, no referido auto, o direito ao silêncio e a não produzir provas contra si mesmo”, além de sem que pudesse sequer saber previamente as razões pelas quais estaria sendo investigado.


[1] Além das oito concessões em HC, expõe-se uma denegação, duas reclamações deferidas e um ARE negado, mas com ordem de Habeas Corpus concedida de ofício.

Autores

  • é assessor de ministro do STF, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pós-doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela PUCRS.

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