Diário de Classe

Ao se buscar condenação sem julgamento imparcial, o que se tem é arbítrio

Autor

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

20 de julho de 2019, 8h00

O país que andou se vendo no espelho nesses meses é inclassificável. O furo da bolha provocado pelo jornalismo investigativo do site Intercept Brasil demonstrou que vivemos tempos sombrios e que, por isso, não se deve jamais se deixar levar pela ideia de diminuição da presunção de inocência.

Ocorre que o mês de junho “não passou”. As publicações que estão no Intercept Brasil, referentes à força-tarefa da "lava jato", nos anos que vão de 2015 a 2018, foram uma das coisas mais impactantes que já ocorreram no jornalismo brasileiro. O vazamento, divulgado em várias levas de reportagens, revelou (e ainda indica) o que de mais autoritário pode acontecer no interior do Judiciário. É dizer: ao se buscar condenação sem julgamento imparcial, o que se tem é arbítrio. É como jogar no lixo a ideia de Estado Democrático de Direito.

No meio de tudo isso, perto das férias de inverno, alunos e alunas geraram avalanches de reflexões em sala de aula sobre o modelo processual penal brasileiro. E, no encerramento do semestre letivo, temas como “inquisitoriedade” e “instrumentalização do processo” tomaram mais espaço que outras questões.

Vejamos…

Em Sobre o Autoritarismo, Lilia Schwarcz relata que o discurso autoritário sempre esteve presente ao longo destes mais de 500 anos no Brasil[1]. Convenhamos: somos frutos da arrogância dos bacharéis, da empáfia do Judiciário e ainda apresentamos graves dificuldades para implementar o Estado Democrático de Direito.

Peguemos a questão de que a história do Direito Processual Penal está ligada à Inquisição. Nessas horas, Jacinto Coutinho volta ao passado e relembra o ano de 1215 — e grifa o IV Concílio de Latrão[2]. Se seguirmos o fio que liga o raciocínio de Jacinto, veremos que o modelo procedimental de Justiça criminal foi moldado na inclemência dos inquisidores, nos poderes concentrados, no horror ao contraditório[3]. E aí se tem a matriz retratada em filmes como Sombras de Goya.

Pois bem! No decurso histórico, com a substituição da igreja pelo aparelho de Estado, deu-se uma viragem, mas a herança inquisitorial permaneceu intrínseca aos gabinetes mais sórdidos do poder. É aí que entra a “mentalidade (inquisitória) de outrora”, como diz, por todos, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (leia aqui).

Explico:

As condutas têm nomes, não vieram do nada. O imperador francês Napoleão Bonaparte, com o seu Code d’ Instruncion Criminelle (1808), engendrou um sistema bifásico. Isto é: uma fase investigativa; outra jurisdicional. E a isso se chamou de processo penal misto. É claro que não é uma questão de somenos. E Jacinto Coutinho tratou logo de esclarecer o porém. A questão — diz Jacinto — é que a estrutura continuou inquisitória[4]. Eis o ponto crucial: mesmo havendo a fase jurisdicional, a “mentalidade inquisitória” sobrevém. Essa é uma boa chave a ligar (e refletir) o modelo processual penal brasileiro, também de duas fases, com o inquérito policial e a fase jurisdicional, que tem parte de sua força na imparcialidade do juiz. E não adianta fazer de conta que a fase jurisdicional estará imune a problemas. A análise de Aury Lopes Júnior é muito clara: se a condenação está calcada nos atos de investigação, a estrutura acusatória fica contaminada por aquilo que foi feito na primeira fase[5]. Esse é o xis do problema.

O que se sabe já explica o porquê. A questão, em determinados casos, é a decisão como ato de vontade. É o juiz que toma lado e vira o gestor da prova. Enfim, como tantas vezes já advertiu Lenio Streck em colunas desta ConJur, é o caso do juiz que primeiro decide e depois apenas motiva aquilo que já escolheu, fazendo parecer legalidade (leia aqui).

Aqui exatamente chegamos ao ponto. O fato de o réu estar no sistema acusatório, sob a regência de órgão julgador, não significa que direitos fundamentais processuais sejam assegurados. Eis onde é preciso tomar cuidado com a expressão “o juiz é o garantidor dos direitos”, assunto que já foi muito bem explicado por Lenio Streck e Gilberto Morbach na ConJur (leia aqui).

O que se viu nos conluios vazados pelo site The Intercept Brasil quanto ao procedimento da operação "lava jato" é que há agentes de Estado que estão (re)criando formas autoritárias no século XXI, indo ao absurdo de um “faz de conta” processual, com “jurisdição” via aplicativo mensageiro, em grupo de chat, um neoinquisitorialismo cabalístico.

E note-se. É indispensável combater a corrupção. Isso não está em causa. A questão é saber como esse combate deve ser feito, uma vez que o que se viu no deslinde do processo penal foram agressões à ordem legal, algo bestial, bruto. O problema se apresentou como um pêndulo a oscilar, indo do juiz do caso aos então procuradores da República, indo e voltando, numa oscilação nada harmônica, como um gradiente (sobe e desce!).

E atordoa. Instruir a acusação da força-tarefa — como fez o ex-juiz federal Sergio Moro — sobre qual seria a nova etapa da operação (Intercept, 9 de junho), com recomendações para melhorar o desempenho de procuradores para inquirição em audiência (Intercept, 20 de junho), lembrando o acusador de prazo processual vincendo e juntada de documento (Intercept/Veja, 5 de julho) é expediente terrivelmente ilegal, sabotador da defesa. É o mesmo que dizer que a evolução do Direito é inócua. Convenham que, nesse caso, jamais se poderá dizer “isso tudo é normal”! Alfabetizados que somos, basta a leitura do IV do artigo 254 do Código de Processo Penal para saber que “o juiz dar-se-á por suspeito […] se tiver aconselhado qualquer das partes”.

E que se note: agindo fora dos autos, em chat privado, acerca de questões públicas, o Estado-Judiciário ganha ares de tribunal de exceção. Ora, por qual motivo o assunto não podia ser levado a público? Na lição atualíssima de Franco Cordero, trata-se mesmo de um “quadro mental paranoico”[6].

Ainda a esse respeito, juiz que sugere uma “nota” para desqualificar o “showzinho da defesa” (Intercept, 14 de junho) e indica uma “fonte séria” para gerar prova contra o réu (Intercept, 9 de junho) é arbitrariedade em enxurrio! Note-se: a Constituição não assegura ampla acusação, mas, sim, ampla defesa (!). Diante de tantos escoiceamentos à ordem legal, prestem atenção a uma hipótese: e se estivéssemos falando em prisão que rendesse pena de morte? Pronto! Muitos nem mesmo saberiam dizer como seria.

Não me alongo. A questão é: qual a concepção de Direito para o ex-juiz do caso, hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e membros do Ministério Público responsáveis pela operação "lava jato"? Por que se deve seguir os ditames jurídicos em sociedades com pretensão democrática? Ao contrário da visão de senso comum sobre o tema, direitos fundamentais processuais decorrem de conquistas constitucionais. E, claro!, há que se fazer valer a Constituição, sob pena de nulidade de atos decisórios.

Se instituições se perdem no Estado Democrático de Direito, necessário se faz resgatar a ordem legal, dado que no processo de produção das leis a voz de amplos setores da sociedade foi ouvida. É por isso que se deve cumprir a lei, sob pena de colocar em xeque toda a ordem pública.

Vamos falar claro: depois da “vaza jato”, ou os estudantes de Direito entendem que processo como instrumento do juiz (justiçamento) é sinônimo de truculência, de manejo deformador da ordem legal, ou, acho, nunca mais vão entender.


[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 46 n. 183 julho./set. 2009, p. 103-115.
[3] Nota. Vale resgatar a literatura secular do Directorium Inquisitorum, de 1376, traduzido como Manual dos Inquisidores. A respeito deste ponto, cf. EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993.
[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: interlocução a partir da literatura. 2ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 62-77.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, vol. 1, p. 71.
[6] CORDERO, Franco. Guida ala procedura penal. Tourino: UETT, 1986, p. 51.


Referências
CORDERO, Franco. Guida ala procedura penal. Tourino: UETT, 1986.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 46 n. 183 julho./set. 2009, p. 103-115.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. 2ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, vol. 1.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
STRECK, Lenio; MORBACH, Gilberto. Lavajatogate: juiz das garantias? Uma resposta a Merval Pereira. Revista Consultor Jurídico – Conjur. 15 jun. 2019.
STRECK, Lenio O Direito no Brasil por seus predadores. GGN – O jornal de todos os Brasis. São Paulo, 12 out. 2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/justica. Acesso em 17 jun. 2019.

Autores

  • Brave

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!