Opinião

Os limites da sanção de proibição de contratação com o poder público

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19 de julho de 2019, 7h07

Spacca
Se nas duas últimas semanas nos dedicamos a tratar da sanção de perda da função pública em razão da prática de ato de improbidade administrativa, no texto de hoje passamos a falar sobre a pena de proibição de contratação com o poder público, prevista no artigo 12, incisos I a III, da Lei 8.429/1992, e de seus limites, não sem antes agradecer ao colega Marcelo do Lago, com quem a troca de ideias inspirou o desenvolvimento do tema.

A exemplo da perda da função pública, a proibição de contratação possui um duplo viés: a par da punição, busca-se prevenir nova ilegalidade eliminando-se a possibilidade de novo vínculo daquele considerado ímprobo com a administração por determinado período de tempo, com, nas palavras do ministro Mauro Campbell, “a força pedagógica e intimidadora de inibir a reiteração da conduta ilícita”[1].

Trata-se de pena que, embora não conste do artigo 37, parágrafo 4º, da Constituição — o que, em nossa opinião, põe em dúvida sua constitucionalidade — se aproxima de sanção igualmente prevista na legislação administrativa (artigo 87, IV, da Lei 8.666/1993) e, no passado, também na eleitoral (artigo 81, parágrafo 3º, da Lei 9.504/1997, revogado pela Lei 13.165/2015).

Especificamente sobre os limites da reprimenda, começamos por sua definição temporal a partir do registro de que os efeitos da pena, ainda que admitam cumprimento provisório[2], são prospectivos, não alcançando, acertadamente, contratos firmados anteriormente, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[3] e despacho da lavra do advogado-geral da União aprovando o Parecer 113/2010/DECOR/CGU/AGU[4]. Isso não se dá sem razão, já que a descontinuidade de serviços afrontaria o interesse público de modo mais grave que o simples exercício indiscriminado da prerrogativa de se punir, sobretudo quando se rememora que a proibição, no ponto, possui condão em larga medida preventivo, ressalvada ainda à administração eventual nulidade ou rescisão pontual com fundamento nos artigos 59 e 78 da Lei 8.666/1993.

Ainda sob o aspecto temporal, a Lei 8.429/1992, em nossa visão, cometeu o erro de estabelecer prazos fixos, que variam, conforme a espécie de improbidade praticada, entre dez (enriquecimento ilícito), cinco (prejuízo ao erário) e três (afronta a princípios da administração) anos, mas sem possibilidade de dosimetria. No ponto, vale mencionar a proposta trazida pelo Projeto de Lei 10.887/2018, que recrudesce a sanção elevando piso e teto, mas abre a possibilidade de gradação (quatro a 12 anos, quatro a dez anos e quatro a seis anos)[5].

Já quanto à amplitude da proibição de “contratar”, tomamos o gênero por todas as suas espécies, entendendo contemplados contratos “unilaterais ou bilaterais, onerosos ou gratuitos, comutativos ou aleatórios”[6], inviabilizando ainda não somente a participação de licitação, mas também contratos que poderiam advir das hipóteses de inexigibilidade e de dispensa.

Tema instigante diz respeito à abrangência territorial e institucional da punição. Há, é verdade, doutrina pela acepção mais ampla possível da locução “poder público”, nela pressupondo toda a administração, direta e indireta, em todas as três esferas federativas[7]; não podemos, porém, com ela concordar.

A mesma proporcionalidade que deve orientar a dosimetria da pena do tempo (artigo 12, parágrafo único, da Lei 8.429/1992) deve orientá-la no espaço, não ignorando o fato de que a atividade empresarial — de importância reconhecida constitucionalmente (artigos 1º, IV, 6º, 170, I, II e VIII e 145, parágrafo 1º) — é também força motriz de desenvolvimento.

Foi com base naquela premissa que o Superior Tribunal de Justiça, no passado, teve a oportunidade de assentar que a punição por ofensa à moralidade deve, sim, ser exemplar, mas “encontra limite na exasperação a qual, a pretexto de interditar participação em licitações, impõe um espectro tão extenso à punição, que inviabiliza as atividades empresariais, resultando na morte civil da empresa, fato que implica a redução da parte inoficiosa da sanção”[8]. Em outras palavras, o princípio da preservação da empresa, que encontra reflexos também no instituto da leniência, deve influenciar a gradação da pena em análise, preponderando quando a punição chegar a ponto tal de rigidez que sanciona toda a sociedade, produzindo graves impactos socioeconômicos.

Daí o amadurecimento do que, hoje, é o entendimento predominante no âmbito do STJ: a bem da proporcionalidade, a proibição de contratação tem sido relacionada à delimitação territorial do ente tido como lesado, como bem ilustram os seguintes julgados:

(…) é de rigor a modulação da pena de proibição de contratar com a Administração Pública para restringi-la à esfera municipal. (…) 14. Recurso Especial parcialmente conhecido e provido em parte” (REsp 1.188.289/SP, DJe 13/12/2013); “(…) No caso, a imposição à construtora da pena de proibição de contratar com a Administração Pública em todas as suas esferas pelo prazo de 5 (cinco) anos afigura-se extremamente gravosa, de modo a autorizar a modulação da sanção, restringindo-a à esfera municipal do local do dano. Precedentes” (AgInt no REsp 1.589.661/SP, DJe 24/03/2017); “(…)No caso, a imposição à construtora da pena de proibição de contratar com a Administração Pública em todas as suas esferas pelo prazo de 5 (cinco) anos afigura-se extremamente gravosa, de modo a autorizar a modulação da sanção, restringindo-a à esfera municipal do local do dano. Precedentes (AgInt no REsp 1.589.661/SP, DJe 24/3/2017).

(…) No que se refere à proibição de contratar com o Poder Público, a pena, no caso, deve ficar restrita aos limites do Estado de Rondônia, lesado com o ato de improbidade. Impedir que os demandados, especialmente a empresa de ônibus, possam contratar com outros órgãos da Administração Pública (da União, de outros Estados ou de Municípios), representaria pena desproporcional, incompatível com o princípio da com o qual deve ser ajustada (REsp 1.003.179/RO, DJe 18/8/2008).

A par da proporcionalidade, um argumento interessante, com o qual concordamos, foi erigido pela ministra Eliana Calmon em defesa daquela tese ao invocar a aplicação subsidiária do artigo 16 da Lei 7.437/1985 (“a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”), ao final concluindo que, “se a sentença foi proferida por magistrado da Vara da Fazenda Pública de São Paulo, não pode ela interferir em licitações e contratações promovidas em outro Estados ou por órgãos federais”[9]. Assim, se é questionável a vedação, por lei federal, à concessão de benefícios ou incentivos fiscais por todos os demais entes (artigos 150, parágrafo 6º, e 151, III, da Constituição), é de se refletir igualmente sobre se, em que pese competir à União estabelecer normas gerais de licitação (artigo 22, XXVII, da Constituição), seria razoável — e legal e constitucional — um juízo estadual impedir a contratação de determinada pessoa jurídica por todas as demais pessoas políticas.

Muito embora, como afirmado, a vinculação pela territorialidade seja posição predominante, o STJ, no mesmo julgado citado no parágrafo imediatamente acima, adotou entendimento bastante interessante para excepcionar a regra a partir da premissa de que a sanção comportaria gradação, decidindo, em situação peculiar, que a proibição de contratação poderia dizer respeito a uma pessoa jurídica específica no âmbito municipal:

O princípio da legalidade estrita enseja o exame do questionamento dos embargantes quanto à modulação das sanções administrativas diante da previsão constante do parágrafo único do art. 12 da LIA, para verificar se as condenações foram proporcionais e razoáveis à extensão do dano causado. (…)
Proibição de contratar com o serviço público que deve restringir-se (…) às avenças com a empresa LIMPURB, diante do fato de só ter participado de três aditamentos, nenhum deles para inserir serviços sem licitação. Pela mesma razão, a vedação ao recebimento de benefícios e incentivos deve ficar restrito ao Município de São Paulo

Ou seja, no acórdão acima transcrito, se desenvolveu tese inovadora pela possibilidade de uma proibição aquém da territorialidade, limitada a pessoa jurídica determinada integrante da administração indireta. Uma indagação surge, então, quase que instintivamente: se seria em tese possível dosar para aquém, seria igualmente possível dosar para além? João Pedro Accioly Teixeira, em belo artigo sobre o tema[10], defende que sim, pontuando que:

(…) se a sociedade empresária demonstra possuir um histórico de transgressões reiteradas, que indiquem a existência de um “DNA intrinsicamente corrupto”, o juiz tem o poder-dever de estender a abrangência da medida proibitiva à Administração Pública brasileira como um todo, com vistas a tutelar os entes públicos de novos danos. (…) o postulado da proporcionalidade não incide apenas quando da decisão entre afastar ou aplicar a reprimenda em estudo.

Alheio àquelas posições, o PL 10.887/2018, no parágrafo 6º do artigo 12, optou por maior rigor, inferindo que a regra será pela proibição em âmbito nacional, admitindo-se, contudo, fundamentadamente, a limitação territorial. Temos alguma reserva quanto a essa opção, defendendo como limite máximo a unidade territorial da pessoa política lesada, embora admitindo gradação para menos de modo a restringir a vedação a pessoas jurídicas específicas, em linha, portanto, com a posição da ministra Eliana Calmon.

Finalmente, um último ponto sobre os limites toca o alcance da sanção do ponto de vista da pessoa apenada, especialmente a partir da previsão legal de que a proibição atinge inclusive “pessoa jurídica da qual [o apenado] seja sócio majoritário”. Mais uma vez, há quem sustente uma interpretação esgarçada da punição: “(…) não só o ímprobo, como também as pessoas jurídicas de que faça parte como sócio majoritário, ou mesmo as pessoas físicas ou jurídicas que sejam interpostas entre ele e o benefício almejado, sofrerão os efeitos da sanção”[11].

Estamos, contudo, com Calil Simão, que põe em dúvida a própria constitucionalidade do alcance de pessoa jurídica diversa da do autor do ato ímprobo com base no artigo 5º, XLV, da Constituição:

(…) essa sanção interpretada literalmente como prevista transcende a pessoa do condenado, atingindo outras pessoas de forma direta e indireta. A sociedade age em nome próprio, e não em nome dos sócios ou do administrador, razão pela qual não se pode, em princípio, alegar impedimentos de caráter pessoal dos sócios ou do administrador para não contratar com a sociedade. Esse impedimento restritivo deve se restringir sempre ao condenado. Eventual fraude deverá ser analisada e afastada no caso concreto[12].

Argumento contrário poderia surgir no sentido de que a punição poderia ficar esvaziada, haja vista a possibilidade de o apenado, uma vez condenado, constituir imediatamente pessoa jurídica nova ou migrar novos contratos para outro ente, preexistente. A ser essa a hipótese, todavia, entendemos que o instrumento cabível seria o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, assegurando-se, em todo caso, prévia citação e o exercício do contraditório pela companhia, que poderia, inclusive, refutar seu atingimento mediante expurgo do faltoso (alegando atos ultra vires, por exemplo), somando-se, no mais, ao poder público na censura à conduta do infrator.


[1] REsp1.185.114/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 2.9.2010.
[2] “(…) Nos termos do art. 20 da Lei 8.429/1992 – LIA, a imposição das sanções de perda da função pública e de suspensão de direitos políticos apenas se dá com o trânsito em julgado da sentença condenatória. 3. Por outro lado, em relação às penalidades de ressarcimento ao erário, multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, pelo período de cinco anos, não existe na Lei de Improbidade Administrativa a mesma previsão, sendo omisso o diploma quanto a esse aspecto.” STJ, REsp 1.523.385/PE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe, 7.10.2016.
[3] STJ, EDcl no MS nº 13.101/DF, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 13.05.2009, DJe, 25 maio 2009.
[4] http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Attachments/523431/RESPOSTA_PEDIDO_Parecer%20113-2010-DECOR-MCA%20-%20Aprovo%20AGU%20-%20SISCON.pdf
[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=80A26F1FF587788AAEAF0B243FF2B583.proposicoesWebExterno2?codteor=1687121&filename=PL+10887/2018
[6] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 472.
[7] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 373.
[8] STJ, REsp 827.445/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/02/2010, DJe 08/03/2010.
[9] EDcl no REsp 1.021.851/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe 06/08/2009.
[10] TEIXEIRA, João Pedro Accioly. Os contornos objetivos da proibição de contratar com o poder público por improbidade administrativa. In: Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 01. p. 181-220, jan./mar. 2017.
[11] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 475.
[12] SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa. Teoria e prática. 2ª ed. Leme: JH Mizuno, 2014, p. 853-674.

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Brave

    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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