Opinião

O direito à legítima ignorância do consumidor: o caso do "Não me perturbe"

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19 de julho de 2019, 14h00

A informação, per si, tem um valor democrático[1], uma vez que permite transparência e difusão do poder, sendo simultaneamente uma ferramenta eficiente de controle de decisões.

Com o advento da sociedade de informação[2], caracterizada[3] pela transmissão de informações sem limitações de distância, tempo ou volume, surgiram múltiplas demandas jurídicas, muitas delas com soluções esdrúxulas.

O recente caso do “Não me Perturbe” é uma delas. A origem do problema são as incontáveis ligações diárias ao consumidor feitas por empresas de telefonia que ofertam produtos e serviços, com o único objetivo: vencer o consumidor por osmose[4].

A solução encontrada tem como escopo uma obrigação do consumidor. Sim, um encargo. Para que ele não queira receber mais qualquer tipo de oferta, o consumidor deve, necessariamente, acessar o portal www.naomeperturbe.com.br e informar o seu desejo às prestadoras de serviços de telecomunicações.

A que ponto chegamos?

A inversão de valores basilares nas relações de consumo ou até mesmo civis é patente. Explico. Bastaria que, na primeira ligação que o consumidor recebesse da prestadora de telefonia, ele indicasse que não gostaria de receber qualquer tipo de oferta por meio telefônico e a mesma cumprisse. Ponto e pronto.

Aliás, o fundamento para tal vem das lições portuguesas do professor Menezes Cordeiro, ao desenvolver a ideia do direito à não informação ou direito da legítima ignorância do consumidor[5] — ferramenta hábil no comércio privado[6].

Em síntese, o consumidor tem o direito de não querer ser informado. Não quero assimilar tais e tais informações. Simples assim.

Explica o professor que em contratos de seguro[7], por exemplo, não há obrigatoriedade de o tomador acolher a informação que lhe seja disponibilizada. Ou seja, tão somente se pretender, ele poderá assimilar as informações ali transmitidas.

Acreditarmos que a solução encontrada do “Não me perturbe” foi a ideal é nos distanciarmos cada vez mais da virtude básica que rege todo ordenamento jurídico: respeito[8] à decisão de escolha do próximo.


[1] Vide conceito bem explicitado por BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. p. 735 e ss, disponível em: https://www.eff.org/cyberspace-independence. Acesso em 12 de julho de 2019.
[2] Vide VICENTE, Dário Moura. A informação como objeto de direitos. Revista de Direito Intelectual. n. 1. 2014. p. 116.
[3] Cfra: MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da informática. Coimbra: Almedina, 2006. p. 41 e ss.
[4] Sobre o fornecedor, a professora Fernanda Rebelo pontua da seguinte forma: "O seu objetivo é o de angariar e fidelizar o maior número possível de clientes, nem que para tanto tenha que lançar mão de certas técnicas de persuasão que podem tornar-se perigosas e agressivas para os consumidores e, por isso, terem repercussões negativas sobre o mercado". Confira: REBELO, Fernanda Neves, O direito à informação do consumidor na contratação à distancia., in: Liber Amicorum Mario Frota: a causa dos direitos dos consumidores. Coimbra: Almedina. 2012. p. 102 e ss.
[5] O professor Menezes Cordeiro, ao abordar o contrato bancário, esclarece que o excesso de informação é contraproducente para o consumidor, especialmente para o leigo. Para mais, confira CORDEIRO, António Menezes. Direito Bancário, Coimbra: Almedina, 2014, p. 409 e ss. Vide também: CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil IX: Direito das Obrigações. Coimbra: Almedina, 2016. p. 616 e 617. Para nós, o direito à legítima ignorância do consumidor não é absoluto. Entendemos que, no comércio eletrônico de consumo, o direito à legítima ignorância do consumidor estaria resguardado somente para as informações menos importantes do contrato.
[6] CORDEIRO, António Menezes. O direito à não informação. Estudos de Direito do Consumidor. Centro de Direito do Consumo. n. 9, 2015. p. 50.
[7] CORDEIRO, António Menezes, Direito dos Seguros. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 616 e ss.
[8] O professor Alexandre Câmara, ao descrever o princípio da dignidade da pessoa humana, assim pontua com maestria: “É inadmissível tratar as partes como se não fossem pessoas reais, meros dados estatísticos”. Confira: Câmara, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2019.p.70 e ss.

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