Paradoxo da Corte

Honorários do advogado não podem suplantar benefício do vencedor

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

16 de julho de 2019, 8h00

Consagrado no novo Código de Processo Civil, o princípio da causalidade continua a justificar a responsabilidade pela sucumbência, como se infere do caput do artigo 85: quem perdeu deve arcar com os honorários do advogado do vencedor. “É o fato objetivo da derrota”, como ensinava Chiovenda.

Ademais, prestigiando, em vários aspectos, o posicionamento que já prevalecia na jurisprudência, o parágrafo 1º do artigo 85 estabelece que são devidos honorários: a) na reconvenção; b) no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo; c) na execução, resistida ou não; e d) nos recursos.

Como regra de regência, o parágrafo 2º do artigo 85 dispõe que os honorários deverão ser fixados no percentual entre 10% e 20% da condenação, do proveito econômico ou, na impossibilidade de estimar-se o quantum debeatur, sobre o valor atualizado da causa. E isso tudo, independentemente da natureza da decisão, se de extinção do processo sem julgamento do mérito, de procedência ou de improcedência do pedido (parágrafo 6º). Na hipótese de perda superveniente de interesse de agir (perda de objeto), a parte que deu causa ao processo deverá também arcar com o pagamento dos honorários (parágrafo 10).

A exegese dessa importante questão foi afetada à 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, para julgar, em 13 de fevereiro, o Recurso Especial 1.746.072/PR, então interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Paraná, que deu provimento a agravo de instrumento de uma empresa, reduzindo os honorários advocatícios com fundamento na equidade. Lembro que a ministra Nancy Andrighi, relatora sorteada, com arrimo no parágrafo 8º do artigo 85, defendeu a majoração dos honorários do recorrente de R$ 5 mil para R$ 40 mil, ponderando ser possível a fixação dos honorários advocatícios fora do critério de 10% a 20% estabelecidos no parágrafo 2º. Sustentou a ministra que o conceito de “inestimável”, na redação do parágrafo 8º, abrange igualmente as causas de grande valor.

Não obstante, abrindo a divergência em voto-vista, acabou prevalecendo o voto do ministro Raul Araújo, ao sustentar “que o espírito que deve conduzir o intérprete no momento da fixação do quantum da verba é o da objetividade”, aduzindo que o novel Código de Processo Civil estabeleceu “três importantes vetores interpretativos”, que tendem a conferir “maior segurança jurídica e objetividade” à matéria em discussão.

Segundo o relator designado, ministro Raul Araújo, a regra geral e obrigatória é a de que os honorários sucumbenciais devem ser fixados no patamar de 10% a 20% do valor da condenação, consoante os termos do parágrafo 2º do artigo 85. O percentual pode ainda incidir sobre o proveito econômico ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa. Com esse fundamento, a 2ª Seção rejeitou o recurso da empresa e deu provimento ao do Banco do Brasil, fixando os honorários sucumbenciais em 10% sobre o proveito econômico — diminuição do valor pretendido — obtido pela instituição financeira.

Esse é, desde então, o precedente que tem sido seguido pelos tribunais de Justiça de nossos país.

Todavia, a experiência forense tem mostrado inúmeros cenários nos quais a aplicação automática e cega da referida regra acarreta algumas situações paradoxais, que colocam o advogado numa posição melhor do que a alcançada pelo seu próprio cliente, ou ainda mais privilegiada do que a parte que obteve vitória parcial de sua pretensão.

É evidente que, como advogado militante, sempre defendi a fixação de remuneração condizente com o trabalho profissional daquele que presta serviço essencial à administração da Justiça. Mas isso não significa, como é cediço, que o advogado obtenha, pelas circunstâncias da causa, um benefício financeiro maior do que aquele litigante que teve de ajuizar uma demanda e sagrou-se parcialmente vencedor.

É dizer, com Giuseppe Chiovenda: “O processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito [inclusive o advogado], tudo aquilo e exatamente aquilo que tem direito de conseguir” (Dell'azione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, 1, Roma, Foro Italiano, 1930, pág. 110).

Fui recentemente consultado em pelo menos duas ocasiões em que havia flagrante distorção ao ser aplicado, sem qualquer reflexão mais acurada, o supra aludido parágrafo 2º do artigo 85 do Código de Processo Civil.

Explico-me: um potencial cliente me procurou porque figurou como réu numa ação de dissolução de união estável cumulada com partilha de bens, sendo atribuído à causa o valor de R$ 12 milhões. Produzida a prova, a sentença de procedência atribuiu a cada litigante uma unidade autônoma comercial, no valor de mercado de R$ 500 mil, visto que apenas estes dois imóveis é que teriam sido adquiridos pelos companheiros durante o período em que perdurou a união estável. A sentença condenou reciprocamente os litigantes a pagarem aos respectivos advogados o percentual de 10% do valor atribuído à causa, devidamente atualizado. Resultado: cada um dos litigantes devia ao patrono da outra parte perto de R$ 1,5 milhão, em números atualizados.

Como os honorários de sucumbência constituem direito do advogado (cf. parágrafo 14 do artigo 85), não podendo ser compensados na hipótese de sucumbência recíproca, a incidência da lei acaba gerando esse inadequado desfecho. Inadequado simplesmente porque não houve deslocamento patrimonial decorrente de uma condenação e, muito menos, “proveito econômico” concreto!

Em outra situação, que tem ocorrido com mais frequência, o banco X requer o cumprimento de sentença contra o devedor Y, escudando-se em memória de cálculo no montante aproximado de R$ 10 milhões. O devedor oferece impugnação, baseando-se em adimplemento substancial da transação anteriormente celebrada com a entidade financeira, confessando dever apenas R$ 600 mil. A impugnação é parcialmente acolhida, com a fixação de 20% de honorários advocatícios em prol dos patronos do devedor, incidentes sobre o proveito econômico atingido, ou seja, 20% sobre R$ 9,4 milhões, redundando numa condenação de R$ 1,9 milhão de verba honorária sucumbencial, muito superior ao verdadeiro benefício financeiro do banco credor.

Em casos como estes, certamente haverá manifesta assimetria entre a posição do cliente e a do advogado. Verifica-se, com efeito, no primeiro exemplo, que os dois advogados contratados, tanto do vencedor quanto do vencido, colocam o seu respectivo cliente numa situação pior do que aquela em que ele se encontrava antes do processo, sem ter efetivamente contribuído para essa solução indesejada! Sob o prisma estritamente econômico, na hipótese aqui retratada, teria sido melhor deixar perecer o direito do que sofrer a condenação na verba honorária.

É preciso dizer, por outro lado, que a regra do parágrafo 2º do artigo 85 do Código de Processo Civil é uma via de mão dupla: se de um lado visa assegurar remuneração condizente para o profissional contratado pela parte que se sagra vencedora, de outro lado, acaba por impingir ao advogado do autor uma responsabilidade profissional aterrorizante, que milita contra o livre exercício da própria advocacia, visto ser impossível, como é sabido, adivinhar o desfecho da controvérsia em termos de fixação de honorários sucumbenciais.

Entendo, assim, que essas distorções não podem passar ao largo do julgador. Em primeiro lugar, faz-se necessário investigar quem deu causa ao ajuizamento da demanda ou ao cumprimento da sentença. Em seguida, o juiz deve perquirir qual foi efetivamente o “proveito econômico” alcançado com o resultado do processo, para então fixar a sucumbência proporcional (sempre proporcional) à vantagem material concedida pela decisão.

É de se concluir, pois, que o novo regime de sucumbência, estabelecido no Código de Processo Civil em vigor, não deve constituir obstáculo ao acesso à Justiça. Daí ser necessário o aprimoramento de um critério seguro, que contorne a interpretação literal da lei, para resolver questões excepcionais, a evitar condenações esdrúxulas, que inviabilizam o caminho da tutela jurisdicional, garantia constitucional assegurada a todo cidadão!

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