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Plano nacional estimula a prática de serviço voluntário

14 de julho de 2019, 8h03

Por Vladimir Passos de Freitas

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No dia 9, foi lançado o Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, vinculado ao Ministério da Cidadania, com o “objetivo de fomentar a prática do voluntariado como um ato de humanidade, cidadania e amor ao próximo; e estimular o crescimento do terceiro setor, contribuindo para a transformação do Brasil em um país mais justo e mais solidário”[1].

Não se pode dizer que a proposta é inédita[2], mas, com certeza, ela é um passo importante no desenvolvimento desse tipo de atividade, já que é incontroverso que o poder público não consegue, sozinho, dar solução aos inúmeros problemas do mundo contemporâneo.

O voluntariado teve início como ato de filantropia, tal qual o existente há séculos nas Santa Casas de Misericórdia[3]. Ao longo do tempo, foram se transformando e assumindo forma mais organizada e em situações múltiplas, como a dos “Doutores da Alegria”, que prestam serviços de valor inestimável[4].

No sistema de Justiça e segurança pública, a referência mais antiga é feita aos inspetores de quarteirão, que, segundo Felipe Genovez, “surgiu com toda força a partir do Código de Processo Criminal do Império (1832) que regulamentou o art. 162 da Constituição outorgada de 1824”[5]. Referidos personagens prestaram serviço voluntário até a Constituição de 1988, quando perderam a força.

As formas e locais em que se pratica o voluntariado são todas as que a imaginação possa alcançar. Tradicionalmente, o sistema de saúde é o mais procurado e lembrado. Através de segmentos religiosos, associações, movimentos de bairros, promove-se o serviço voluntário junto a hospitais, asilos, creches, museus, associações de proteção do meio ambiente ou de animais, comunidades carentes e outras atividades como a assistência a imigrantes.

É voz corrente que o maior beneficiário do serviço voluntário é quem o presta. E pacífico é, da mesma forma, que toda nação que o pratica revela alto desenvolvimento social e cultural de seus membros. Não será demais concluir que, atualmente, em um processo de desestatização e quebra das fronteiras constantes, a participação da sociedade nas atividades públicas é — e tende a ser — cada vez mais atuante.

Vejamos um exemplo. O incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi um dos maiores prejuízos à cultura brasileira. A tragédia foi lamentada por centenas de pessoas através de manifestações, protestos e atos públicos, como o realizado na manhã do dia 3 de setembro de 2018, na Quinta da Boa Vista[6]. Todavia, se a sociedade tivesse se envolvido mais na conservação daquele importante museu, provavelmente o incêndio não teria ocorrido. Envolver-se significa não apenas prestar serviços uma vez por semana, mas também cobrar a ação das autoridades públicas encarregadas do fornecimento de verbas, da prevenção e manutenção.

Assim, se é verdade que o serviço voluntário existe há muito tempo, se é certo que ele, segundo o IBGE, vem crescendo no Brasil (13% em 2017)[7] o que falta para atingirmos o nível de excelência existente em outros países[8] como Myanmar, Estados Unidos ou Irlanda?

Ao meu ver, o primeiro e essencial fator é o da confiança. Com efeito, o voluntário precisa ter fé na conduta dos condutores da política pública ou privada a que irá servir. Não basta uma lei e muito menos discursos emocionados. O que é imprescindível é que quem for doar horas de sua vida a terceiros tenha a certeza de que os organizadores perseguem o mesmo fim.

Neste particular, há um grande risco de se mesclar voluntariado e atividade política. Por exemplo, se uma associação de bairro, criada para amparar menores carentes, tiver o seu presidente candidato a vereador, inevitavelmente tal fato trará divisões internas entre os que se dedicam à atividade. Interesses eleitoreiros poderão direcionar as decisões.

O terceiro aspecto é trazer os jovens para o voluntariado. São eles, com certeza, a parcela mais idealista, nessa fase da vida ainda não conhecem os aspectos negativos do ser humano. Normalmente os jovens preferem se dedicar à proteção de animais ou à conservação da natureza, mas podem prestar excelentes serviços, por exemplo, na área de tecnologia da informática. Técnicas de como trazê-los ao grupo devem ser estudadas com a ajuda de pessoas da área da psicologia ou simplesmente com os que detêm experiência no assunto, como a ONG Parceiros Voluntários[9].

Criar estímulos também é importante. Algumas medidas, como o Dia Nacional do Voluntário (Lei 7.352/85, 28 de agosto), são importantes, mas é preciso ir além. Assim, apenas exemplificando: a) estabelecer, por lei, o direito à preferência, nos casos de empate em concurso público, ao que detenha mais tempo de voluntariado; b) contar o tempo de voluntariado como de efetiva prática, quando houver exigência em concurso público e a atividade seja adequada ao exigido na lei (por exemplo, para a magistratura); c) convidar e possibilitar a visita de estudantes a locais onde se pratica a solidariedade; d) interceder junto a diretórios acadêmicos de faculdades para que, em vez do trote, os calouros doem um dia de sua existência à prática de serviço voluntário (por exemplo, visita com música a um asilo).

Porém, o serviço voluntário não pode ficar adstrito à saúde. Ele deve, também, ser prestado junto à administração pública. Ainda mais em época como a presente, onde parte dos estados encontra-se em regime de insolvência, e a lei de responsabilidade fiscal limita a nomeação de servidores na esfera federal. Poucos sabem que os TRFs, quando um servidor se aposenta, não pode nomear alguém aprovado em concurso público.

O serviço público abrange uma enorme e diversa quantidade de funções, e a prestação de serviço varia conforme o setor. Por exemplo, nas universidades públicas, sempre carentes de pessoal, estudantes poderiam auxiliar nas tarefas administrativas, dois ou três dias por semana, devolvendo, em parte, a oportunidade que a sociedade lhes oferece de ter curso de qualidade a custo zero.

Se assim é, o que dificulta o poder público a adotar tal prática? Podemos dizer que são dois os fatores: a) o primeiro é o comodismo, já que qualquer iniciativa nesse sentido dá trabalho, exige liderança disposta a enfrentar entraves e resistências internas e externas; b) a legislação que rege a matéria é pouco clara, a ponto de gerar dúvidas em sua aplicação.

No Poder Judiciário, já há uma tradição de tal tipo de serviço. Quando na Presidência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, implantei (decisão da Corte Especial Administrativa em 27/11/2003) o serviço judicial voluntário. A medida originou representação do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Rio Grande do Sul (Sintrajufe-RS), em 3/4/2004, ao Ministério Público Federal, a qual foi arquivada em 16/11/2004.

Atualmente, dezenas de tribunais possuem serviço voluntário. O TRF-1 criou o serviço voluntário há cerca de três anos[10]. O TJ-PR deu legitimidade a essa atividade através do Decreto 900/2017[11]. O TJ-AP regulamentou o serviço voluntário através da Resolução 1.068/2016[12]. Não é diferente o tratamento dado pelo Ministério Público. O procurador-geral do MP Militar editou a Portaria 44/2019, instituindo o serviço voluntário no âmbito daquele órgão[13].

Na área da segurança pública, o serviço voluntário na Polícia Militar é uma realidade em vários estados. Por exemplo, em São Paulo, o programa Vizinhança Solidária incentiva vizinhos a adotar medidas preventivas e colaborar com o policiamento[14]. Em Rondônia, desde 2017 admite-se tal tipo de atividade, sendo que o Edital 2/2019 abriu inscrições para o ingresso no Corpo de Voluntários de Militares do estado aos que se acham na reserva remunerada[15].

Como se vê, são muitas as iniciativas nesse sentido, todas buscando solucionar um problema de carência de recursos humanos com o desejo de pessoas em conhecer a realidade prática da atividade.

Claro que existem vozes contrárias, sustentando que o voluntariado é uma forma de contornar as exigências legais. A estes se recomenda a leitura de artigo de Fábio Zanini, na Folha de S.Paulo deste sábado (13/7). Não se trata de voluntariado, mas, sim, da experiência exitosa de fabriquetas de fundo de quintal em Toritama (PE), onde pessoas trabalham até 15 horas por dia na fabricação de jeans, ganham bem e se sentem muito felizes. Questiona o autor: “que direito temos nós, figuras bem-intencionadas, de interferir no livre arbítrio de quem quer apenas ganhar dinheiro?[16].

Por isto tudo, o Plano Nacional de Voluntariado será um passo a mais nesta atividade de grande interesse social, sendo imprescindível que o poder público não fique, uma vez mais, a reboque das mudanças e avanços da sociedade.


[1] Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/patriavoluntaria. Acesso em 12/7/2019.
[2] O presidente Michel Temer lançou, em 28/8/2018, o programa Viva Voluntário. Contudo, os problemas políticos surgidos esvaziaram completamente a iniciativa. Disponível em: http://www.casacivil.gov.br/central-de-conteudos/noticias/2017/agosto/governo-lanca-programa-nacional-para-incentivar-voluntariado. Acesso em 12/7/2019.
[3] Vide histórico da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, criada em 1562: https://www.santacasasp.org.br/portal/site/quemsomos/historico. Acesso em 12/7/2019.
[4] Disponível em: https://doutoresdaalegria.org.br/conheca/sobre-doutores/. Acesso em 12/7/2019.
[5] Disponível: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=333. Acesso em 13/7/2019.
[6] Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/tristeza-e-indigna%C3%A7%C3%A3o-ap%C3%B3s-inc%C3%AAndio-no-museu-nacional/a-45340605. Acesso em 13/9/2019.
[7] Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/12/05/voluntariado-no-brasil-cresceu-13-em-2017-mostra-pesquisa-do-ibge.ghtml. Acesso em 13/7/2019.
[8] Revista Exame. Os 20 países mais generosos do mundo. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/os-20-paises-mais-generosos-do-mundo. Acesso em 12/9/2019.
[9] Disponível em: http://www.parceirosvoluntarios.org.br/voluntariado-jovem-e-possivel-mudar-o-mundo. Acesso em 12/7/2019.
[10] Disponível em: https://trf-1.jusbrasil.com.br/noticias/381723345/institucional-instituido-o-servico-voluntario-no-ambito-da-justica-federal-da-1a-regiao. Acesso em 12/7/2019.

[11] Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/servico-voluntario. Acesso em 12/9/2019.
[12] Disponível em: http://www.tjap.jus.br/portal/images/stories/documentos/Eventos/Resolucao-1068-2016-TJAP—Regulamenta-servico-voluntario.pdf. Acesso em 12/9/2019.
[13] Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/03-marco/douinforme-22-03.2019. Acesso em 13/7/2019.
[14] Disponível em: https://www.policiamilitar.sp.gov.br/servicos/orientacao-seguranca/6/orientacoes-de-seguranca-vizinhanca-solidaria. Acesso em 12/7/2019.
[15] Disponível em: http://www.pm.ro.gov.br/images/pdf/EDITAL_N__22019PM_CP4.pdf. Acesso em 12/7/2019.
[16] Folha de S.Paulo, O dilema de Toritama. São Paulo: 13/7/2019, p. 2.