Corte de verbas

"Parece antidemocrático ter um sistema de Justiça sem uma Defensoria estruturada"

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14 de julho de 2019, 7h02

Spacca
Presente em apenas 30% do território brasileiro, a Defensoria Pública da União deve encolher ainda mais. No começo deste mês, o Ministério da Economia mandou a DPU devolver ao Poder Executivo 63% dos servidores que atuam no órgão. Com isso, as 43 unidades do interior serão fechadas. O dia 27 de julho é o prazo final para a devolução dos 828 servidores.  

"A perda de 2/3 de nossa força de trabalho, que com 1,3 mil servidores para todo o Brasil já é mínima, levaria a uma reestruturação profunda da instituição para nos mantermos de portas abertas à população", afirma o defensor público-geral federal, Gabriel Faria Oliveira

Segundo Oliveira, a DPU alcança atualmente 55% dos 75 milhões de brasileiros com renda familiar de até R$ 2 mil. Com o fechamento das 43 unidades do interior, o alcance cairia para 34% desse público.

"O percentual representa quase 50 milhões de pessoas de baixa renda sem possibilidade de acesso integral e gratuito à Justiça Federal. Estou convicto de que nem o Poder Executivo nem o Legislativo e o Judiciário, bem como a sociedade civil, permitiriam tamanho retrocesso." 

O defensor público-geral atribui essa deficiência à Emenda Constitucional 95, que limita por 20 anos os gastos públicos, o que, segundo ele, impossibilita o aumento da estrutura do órgão.

"Por força de alguns contratos que já tinham índices de correção maior do que o IPCA da Emenda 95, a gente teve que fazer uma remodulação interna da Defensoria Pública para enxugar a estrutura para caber dentro do orçamento. Em 2017, estávamos em 6,7% a mais do que poderíamos gastar, e em 2018 chegamos a 1,55%. E agora, em 2019, nós temos que zerar", explica. 

Em entrevista à ConJur, Gabriel Faria Oliveira falou sobre outros temas que preocupam a DPU, a atuação do órgão e sua importância para a sociedade. 

Leia a entrevista:

ConJur — A Defensoria conta com apenas 628 defensores públicos, estando presente em apenas 30% do território nacional. Há alguma perspectiva de melhora?
Gabriel Faria Oliveira —
 A Defensoria Pública da União tem em torno de 150 postulações internas e externas pedindo a instalação de unidades, dentre elas inquéritos civis e ações civis públicas ajuizadas ou em vias de ajuizar. Nós queremos estar onde está o Poder Judiciário e onde está o Ministério Público. A própria Constituição determina a presença de uma Defensoria Pública onde há um poder para julgar e um Ministério Público para acusar. E em 2014 nós tivemos a Emenda 80, que determinava a interiorização da Defensoria no prazo de oito anos. Nós fizemos um plano de interiorização, estávamos iniciando seu cumprimento, mas, por força da Emenda Constitucional 95, que é a do teto de gastos, houve um congelamento de todos os Poderes, digamos assim, e Ministério Público e Defensoria Pública. Então nós tivemos nosso orçamento congelado. A dificuldade é que a Defensoria Pública da União era um órgão ainda em franca ascensão. Excepcional em relação aos Poderes e ao próprio Ministério Público por conta da sua jovialidade. E teve justamente com a Emenda 95 essa jovialidade estancada, digamos. O crescimento, para ser mais exato, estancado.

ConJur — A DPU entrou como amicus curiae em ações no Supremo que questionam a Emenda Constitucional 95. Qual é a alegação que vocês vão utilizar?
Gabriel Faria Oliveira —
É justamente discutir a própria estrutura do Poder Judiciário. Se a Constituição estabelece um Poder Judiciário com três funções essenciais, por que é que em todas as varas federais você tem apenas duas das funções essenciais da Justiça? Aquela que defende os cofres públicos e as políticas de governo e Estado e aquela que acusa o cidadão ou que defende, digamos, a sociedade no aspecto latu sensu, no aspecto macro, os interesses da sociedade que não individuais. Por que que, digamos, apenas a instituição que defende as pessoas hipossuficientes não deve estar. Uma aplicação seletiva da Constituição para a exclusão dos menos empoderados economicamente. É uma clássica violação da cláusula, digamos, do fundamento da nossa República democrática. Se o nosso Estado, ele é da população, do povo, né, se é uma democracia, enfim, por que parte considerável da população, 75 milhões, não tem um órgão para fazer a defesa de seus direitos? Me parece absolutamente antidemocrático você ter um sistema de Justiça aparelhado com polícia, com Ministério Público, com advocacia pública, e não o ter em relação ao aparelhamento da Defensoria Pública. Então, me parece que a Emenda 95, nesse ponto específico, padece de uma inconstitucionalidade. A DPU tem hoje um orçamento de R$ 520 milhões. A advocacia pública tem um orçamento de R$ 3,6 bilhões, o Ministério Público da União tem um orçamento de R$ 6,7 bilhões, e a Justiça Federal, digamos, especificamente onde nós atuamos, R$ 12 bilhões. 

ConJur — Já há algum tempo no sistema da Justiça, a DPU segue atuando no esquecimento e na falta de prestígio. Como que o senhor avalia isso?
Gabriel Faria Oliveira —
Eu acho que respeito não se impõe, se conquista. Então, compete à Defensoria Pública se portar e se colocar diante da sociedade como uma instituição imprescindível. Isso me parece que é, para além de positivado, ela já tem tido esse reconhecimento tanto social quanto no mundo jurídico. Veja que o Conselho Nacional do Ministério Público, em 2017, fez uma pesquisa em relação à opinião da população sobre as instituições públicas. E a Defensoria Pública conquistou como a primeira mais valorizada. A Defensoria faz anualmente em torno de 1,8 milhão de atendimentos, cuja a grande maioria, a infinidade, quase absoluta totalidade desses números é de pessoas que reconhecem nosso trabalho.

ConJur — Dentro na missão institucional e da promoção dos direitos humanos, a DPU tem atuado extrajudicial e judicialmente a favor dos imigrantes da Venezuela desde a intensificação do fluxo em 2016. Como é que está essa situação, como o senhor avalia?
Gabriel Faria Oliveira —
O Brasil tem sido uma nação-irmã de todos os países da América Latina e da América, enfim, do Sul, e do mundo todo em relação à questão migratória. Nós tivemos recentemente uma mudança no marco regulatório, e a Defensoria Pública da União passou a ter um papel, digamos, de defesa e de apoio, de um certo modo, às pessoas migrantes e que precisam fazer pedido de refúgio, de autorização de residência, enfim, as medidas que permitam a eles adentrar no país. O governo federal, no ano passado, ainda no governo do presidente Temer, instituiu uma operação em Pacaraima, para receber esses migrantes e dar um tratamento de recepção para além de digna, mas que permitisse que essas pessoas tivessem no Brasil um fluxo de absorção, digamos, melhorado, interiorizado, enfim. E a Defensoria Pública da União, justamente para auxiliar essa operação, passou a designar periodicamente dois defensores públicos para ajudar na orientação jurídica desses migrantes, em especial no tocante às crianças, pois é muito comum crianças virem para o país desassistidas de seus pais, sozinhas. Então a Defensoria Pública postula, em nome dessas crianças que vêm acompanhadas de avós, de tios, enfim, pra que elas possam adentrar no país com seus parentes. 

ConJur — A PGR acusa a DPU de gastar dinheiro para mandar defensores para teletrabalho no exterior, e não na própria estrutura. O ministro Gilmar Mendes, em um julgamento, disse que a demanda da DPU era corporativista. Como a DPU se defende?
Gabriel Faria Oliveira —
Há uma mescla de informações aí. O Ministério Público está acusando a DPU, na realidade, investigando a Defensoria Pública da União em relação a designações extraordinárias, que foram feitas, segundo o Ministério Público, cruzadas e segundo uma auditoria interna da Defensoria Pública da União. Então, o que que foi feito? Em 2016 foi feita uma regulamentação de designações para que houvesse um critério objetivo de como que vão ser designados os defensores para atuar em furos, onde outros defensores não estão, aonde, digamos, três defensores tiraram férias, ou dois defensores tiraram férias, um saiu de licença-maternidade, e o outro, de licença-saúde, como é que vai ficar? Fica sem defensor lá? Não tem como, tem que ir alguém. Então foi feita uma regulamentação objetiva disso e a partir dessa regulamentação, diante de alguns casos individuais, a nossa auditoria interna, três meses depois, fez uma auditagem e identificou, olha, tem uma falha aqui, precisa corrigir. E nós fizemos em seguida a correção por meio de uma resolução. Então, a própria DPU, de boa-fé, faz uma regulamentação para ter um critério objetivo em relação a algumas designações, identifica uma falha e corrige. Então isso é uma questão que está sendo objeto de investigação do Ministério Público por conta de um relatório da auditoria interna que saiu daqui e foi para o Ministério Público, algo absolutamente legítimo.

Mas o que eu queria deixar registrado é que a própria DPU teve o compromisso de, por meio da sua auditoria interna, identificar a falha da política pública pensada de imediato e corrigi-la. Inclusive, o Tribunal de Contas da União determinou há três semanas, sob o melhor juízo, uma auditoria específica no sistema de teletrabalho. E é muito bom que o faça pra gente demonstrar, digamos, e acabar com essa discussão, porque, veja, é uma discussão que nos parece a todo momento sendo trazida à tona com uma deturpação, sabe, com uma deturpação do sentido que ela efetivamente tem.

ConJur — Como senhor avalia o "projeto anticrime" do ministro Sergio Moro?
Gabriel Faria Oliveira — A preocupação maior que nós temos é justamente a deficiência ainda do acesso à Justiça no país. A Defensoria Pública da União, que trabalha na parte criminal de toda a Justiça Federal, está presente em apenas 30% de todas as subseções judiciárias federais. Como é que um cidadão que precisa de uma assistência jurídica onde não há Defensoria Pública vai se submeter a um processo de negociação, de barganha com o Ministério Público, que é um órgão orgânico, estruturado e se colocar numa posição de igualdade e condições para fazer a defesa e para fazer a negociação?

ConJur — A DPU considera a possibilidade de levar a organizações internacionais casos em que a polícia atua com violência. Como está o andamento?
Gabriel Faria Oliveira — 
Nós temos que ter uma responsabilidade em relação às representações do Estado brasileiro em relação a organismos internacionais. O que eu vejo, entendo que as ações policiais têm que existir de fato para coibição de crimes, de violência, em relação à sociedade, pessoas que não cometem crime, para preservar uma sociedade sadia. Mas, por outro lado, há sempre, e é indispensável que haja, a preocupação em relação a excesso policial. A preservação do Estado de Direito e de uma conduta policial proba é uma preocupação da Defensoria Pública. E acho que há uma certa convergência tanto em relação à política militar e criminal, de percepção criminal em relação a isso, como da Defensoria Pública. A questão são os termos. Então, você encontra, salvo melhor juízo, uma situação de 12 pessoas que foram alvo de uma operação policial, que foram mortas… Acho que o que está se identificando é se houve o excesso policial ou não. Eu acho que esse é o ponto. Agora, a representação internacional do Estado brasileiro tem que ter uma análise seletiva. 

ConJur — Em outubro do ano passado, o STF e a DPU firmaram acordo para dar vazão às cartas dos presos que chegam ao Supremo — cerca de 3.150 cartas, sendo que umas 250 são pedidos de Habeas Corpus. Como é que está essa atuação da DPU, esse acordo com o Supremo?
Gabriel Faria Oliveira —
A ideia do acordo foi receber essas postulações na Defensoria Pública, que eram postulações que chegavam ao Supremo, que tinham uma distribuição interna, uma análise jurídica por parte do Supremo, e trazer para o órgão de postulação. Então a Defensoria Pública passará, e passou a partir de então, a receber essas postulações ao Supremo e fazer uma qualificação jurídica dessas cartinhas. Por vezes, elas dizem respeito a questões de competência estadual, de Defensoria estadual, que nós encaminhamos; por vezes, dizem respeito a pedidos para o próprio Supremo ou para outras instâncias federais, de órgão superior, que a Defensoria Pública da União pode postular e está postulando quando é o caso também. Nós firmamos um convênio com o Supremo, passamos a receber essas cartinhas, passamos a distribuí-las internamente na Defensoria Pública e fazer os devidos encaminhamentos a partir daqui. Então você tira de um órgão judicial, que recebia uma postulação direto da população, e passa para um órgão de postulação, ou seja, para um órgão que me parece ter a competência mais apropriada para fazer essa qualificação jurídica de postulação.

ConJur — O que mais ocupa a DPU hoje?
Gabriel Faria Oliveira —
O que mais ocupa a DPU em termos de
demandas judiciais quantitativas são as previdenciárias e de saúde. Em termos administrativos, a deficiência administrativa institucional e a necessidade de a todo momento estar tapando furos dessa estrutura administrativa deficitária.

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