Embargos Culturais

Antonio Hespanha e a História do Direito como um ornamento erudito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de julho de 2019, 8h00

Spacca
Morreu neste início de julho, em Portugal, o historiador do Direito Antonio Manuel Hespanha. Espírito refinado, investigador inteligente e obstinado com os problemas conceituais da história, hostil à dulcificação do passado, Hespanha foi um tipo ideal do intelectual em extinção. Metaforicamente, pertence a uma espécie cujo antepassado mais remoto andava pelas ruas de Atenas, provocando os transeuntes, com perguntas inusitadas.

A obra de Hespanha pode ser estudada à luz de uma questão singular, que foi seu mote, ao longo de extensa atuação como historiador das instituições sociais: para que serve, afinal, a História do Direito? Hespanha evidenciou-nos que Direito e história se relacionam de modo equivocado. A História do Direito, do modo como tradicionalmente escrita, serve mais para confirmar conclusões e justificativas do que há do que para problematizar situações concretas, que contam com registros no passado. A usarmos uma translação de Hespanha, a história é um guarda-roupa no qual cabem todas as fantasias.

A obra de Hespanha permite-nos enfrentar as relações entre relato e verdade. Esta última, como sabemos, e o tema é inclusive clichê na literatura bíblica (João, 18:38), é relativa e transcendente, idiossincrática e solipsista. A verdade pode ser mera impressão da existência própria. Pode ser reação pessoal à influência de agentes externos. Para Hespanha, e aqui o seu legado, a História do Direito instrumentalizaria um adereço retórico. Serviria como um ornamento erudito[1]. Descreveria muito, pode ser uma página de literatura de ficção. Não passaria de discurso de legitimação, apologia acalorada do presente, que se justificativa com um passado que se imagina[2].

O legado grego pode exemplificar essa premissa. É o tema da construção romântica de uma Grécia antiga democrática e altiva, o que pode se contrastar com uma pólis real na qual havia também escravos e intrigas. Alemães, ingleses e franceses adornaram seus museus com peças da antiguidade helênica, excitando uma fantasia de um mundo de heróis. É a barbárie civilizada dos mármores de Elgin. Alguns europeus arriscaram e foram contemplar esse idílio, pagando com a própria vida. A biografia do Lorde Byron, poeta que morreu em virtude de uma febre reumática, em plena guerra de independência grega, em 1824, ilustra essa mania.

Hespanha denunciou o uso da História do Direito no contexto de um “sistema dogmático altamente hermético e formalizado, engenheiro de um sistema de relações sociais de que dependo o modo como os homens entre si vivem”. Sua obra é extensa. A História do Direito como História Social é um de seus livros mais emblemáticos. Nesse texto Hespanha discorre, entre outros, sobre a reforma dos estudos pombalinos, e seu reflexo no Direito. Enfatizou a remodelação que se pretendia, no sentido de que “ensinar o direito não é informar os estudantes acerca de todas as normas jurídicas, mas formá-los na utilização das principais regras da metodologia da ciência jurídica e dos princípios básicos do direito positivo”[3].

Do ponto de vista metodológico, seu trabalho mais significativo é Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, uma coletânea de textos que consubstancia um guia de estudos. Ressente-se no Brasil de uma publicação parecida. Hespanha destrinçou e expôs detalhadamente a cultura constitucional portuguesa, com referências a uma tensão do Direito, entre lei e razão; Guiando a mão invisível – direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português é obra singular que revela um pesquisador meticuloso.

Hespanha também era tradutor. Passou para o português o livro clássico de Franz Wieacker, História do Direito Privado Moderno. Com Macaísta Malherios, Hespanha traduziu a monumental Introdução Histórica ao Direito, de John Gilissen.

Admirado e estudado no Brasil, Hespanha recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Paraná. Seu legado é permanente nas obras de historiadores do Direito aqui no Brasil, com forte influência na Universidade de Brasília (Cristiano Paixão e Airton Seelaender), na federal do Paraná (Ricardo Marcelo Fonseca e Luis Fernando Lopes Pereira), na Universidade de São Paulo (Samuel Barbosa e José Reinaldo de Lima Lopes), na federal de Santa Catarina (Antonio Carlos Wolkmer), na Uerj (Gustavo Siqueira e Christian Lynch), entre tantos outros centros de referência.

O legado de Hespanha nos faz desconfiar da ordinária ideia de que a História do Direito seria termômetro da cultura geral do advogado, que alargaria horizontes e que revelaria mistérios, permitindo a previsão dos tempos vindouros. A história não é a mestra da vida. A história confunde-se com a vida.


[1] António M. Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, p.18.
[2] Nesse tema, também conferir, Ricardo Marcelo Fonseca, Walter Benjamin, a Temporalidade e o Direito, in A Escola de Frankfurt e o Direito, págs. 75-86. Trata-se de texto seminal para reflexões a propósito da historiografia jurídica, com importantíssimas incursões em Walter Benjamin e em António M. Hespanha.
[3] Antonio M. Hespanha, A História do Direito na História Social, p. 111.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor em Direito Comparado pela Universidade de Boston (EUA), em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB) e em Direito Constitucional pela PUCRS, além de doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (EUA) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Alemanha).

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