Diário de Classe

A subjetividade de quem governa não faz mais as coisas serem o que são

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13 de julho de 2019, 8h00

Não faz muito tempo, almoçávamos no campus da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) já esvaziada pelas férias de inverno. À mesa, com outros membros do Dasein[1], o professor Lenio Streck falava de literatura russa. O bate-papo, sofisticado, trazia elementos que apenas excelentes leitores poderiam conhecer. Eu fui apenas um bom espectador. Por algum motivo, tornei-me um bom leitor de Eça de Queiroz, interessando-me pelo realismo português, mas passei distante de Fiódor Dostoiévski, mesmo tendo um exemplar de Os Irmãos Karamázovi[2] na estante. A conversa aguçou o interesse pela obra que, dizem, Freud considerava “a maior da história”, mas não apenas. Fez também lembrar da Tragédia de Khodynka, em maio 1896, durante os festejos em honra ao coroamento do último czar russo, Nicolau II. E é daqui que sigo.

Na passagem do século XIX ao XX, ainda quando reis e imperadores, apoiados num direito divino ao trono que, muito antes, Locke já contestava nos seus Tratados sobre o Governo[3], afirmavam-se como senhores absolutos de tudo aquilo que a vista poderia alcançar, nada que se relacionasse a toda sorte de autocratas poderia ser “discreto”. E eis que, em um país que se confundia com um continente, e que, literalmente, ocupava o espaço de dois deles, separados pelos Montes Urais, a coroação do último czar não poderia ser “simples”. Não por intuírem ser, de fato, a coroação do último monarca, mas, longe disso e ao contrário, para reafirmarem o poder dos Romanov, que, por séculos, governavam absolutos a Rússia, estendendo-o infinitamente.

Assim, muitos foram os eventos relacionados à coroação de Nicolau II, projetando a grandeza da Família Real. E, em 18 de maio de 1896, aproximadamente meio milhão de pessoas foram aos campos de Khodynka em honra ao novo “Senhor de Todas as Rússias”. Mas, diante da oferta de “presentes” do imperador a seu povo — ou, ao menos, o rumor da oferta —, cerca de 1,3 pessoas morreram pisoteadas, diante de uma multidão, histérica. A tragédia, que também ficou conhecida como “Domingo Sangrento”, ainda rendeu ao monarca a alcunha de “O Sanguinário”. Afinal, a notícia do trágico acontecimento chegou aos palácios, mas — eis o motivo do “novo título” — os bailes não cessaram. Reza a lenda que a nova czarina ficou desconfortável com a valsa embalada pela morte de tanta gente. Mas, aconselhado por um membro da Família Real, Nicolau II fez seguir as comemorações. Teria escutado ao pé do ouvido: “Isso será uma tragédia apenas se você quiser”.

O conselho, que fazia também colar à figura do monarca um absoluto controle da realidade — como, de fato, seria o poder de um representante de Deus na Terra —, não era desarrazoado ao contexto. Diante da crença de um pretenso direito divino, reis poderiam fazer “aquilo que é”, afinal, “deixar de ser”, e vice-versa. A alucinada legitimação de formas de desigualdade política não se resumia ao governo. Ia além. Alcançava a realidade. Era, contudo, fruto de um tempo — tempo, aliás, que não nos faz sentido. Claro. Desde as revoluções liberais, sobretudo, esse imaginário foi dando lugar a um ideário que, diferentemente, projetava o poder horizontalmente. Já não era mais possível dizer que “uma tragédia seria uma tragédia apenas se o czar quisesse”, porque, nessa horizontalidade, o sentido das coisas estava intersubjetivamente disposto.

A Rússia absolutista deixou esse status, em algum sentido, tardiamente, eis que os grandes marcos liberais (Revolução Americana e Revolução Francesa) remontam a 1776 e 1789, respectivamente. O tempo dos czares cai somente em 1917, frente a outro sanguinário evento, a Revolução Russa, que, francamente, em muitos aspectos assemelhou-se ao antigo regime — e cujas lamentáveis — e violentas — sucessões de acontecimentos inspiraram Orwell a escrever a sua Revolução dos Bichos[4], uma sátira do governo totalitário de Stálin.

De todo modo, já vai distante o tempo em que era possível dizer que “algo será algo se o governante quiser”. Seja Nicolau II ou Stálin. Chefes políticos não são o fundamento do conhecimento ou a medida de todas as coisas. A subjetividade de quem governa não faz mais as coisas serem o que são. E é por esse motivo que a democracia não admite subjetivismos e discricionariedades quando em jogo está o respeito a procedimentos instituídos e antecipados por uma comunidade política. Quero dizer: “se uma tragédia não deixará de ser uma tragédia se o autocrata russo quiser”, também um “procedimento não poderá ser modificado se o procurador e o juiz quiserem”. Eis o ponto. Não é apenas um regime que de fato horizontaliza o poder, em que cada cabeça é um voto, mas, sobretudo, é o regime que, ao se colocar ao lado do Direito, projeta-se, antes, como uma defesa das regras do jogo. Democracia é isso. Um caminho difícil, mas civilizatório. O resto é barbárie.


[1] Núcleo de Estudos Hermenêuticos, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), liderado pelo professor doutor Lenio Luiz Streck.
[2] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázovi. Licença de tradução concedida por Enrico Corvisieri. Editora Nova Cultural, 1995.
[3] LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. 2.ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005.
[4] ORWELL, George. A revolução dos bichos. Um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

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