Opinião

Prisão temporária é uma exageração inconstitucional

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11 de julho de 2019, 6h21

Prender para averiguar. Uma anomalia jurídica[1] no sistema moderno de processo penal. Uma estupidez[2], um flagrante arbítrio, uma discrepância na ordem democrática. Nem mesmo os regimes de exceção a admitiriam — como não admitiram no passado recente da história brasileira.

A prisão temporária, ou “prisão para averiguação”, rejeitada no governo dos militares, que a considerou flagrantemente antidemocrática, ironicamente foi assimilada pelo novo governo civil após a promulgação da Constituição de 1988.

Com efeito, a Medida Provisória 111, de 24 de novembro de 1989, convertida na Lei 7.960, de 21 de dezembro do mesmo ano, pariu uma modalidade de prisão piorada mesmo em comparação ao embrião idealizado no período do regime militar. Certo é que, desde a concepção, a norma comporta críticas veementes acerca da sua constitucionalidade em sentido formal e material.

Na acepção formal, embora não houvesse vedação antes do advento da Emenda Constitucional 33/2001, está-se diante de uma norma processual penal oriunda de ato governamental exclusivo do chefe do Poder Executivo, o que hoje não se admite em especial por força das cláusulas constitucionais da separação de Poderes e da reserva legal (CF, artigos 2º e 22, inciso I).

Já em uma análise acerca da constitucionalidade material, mais evidente se mostra a incompatibilidade entre a Lei Maior e a Lei 7.960/89. A título de exemplificação:

(i) a prisão temporária se proclama aplicável sempre “quando imprescindível para as investigações do inquérito policial” (artigo 1º, inciso I). Lacunosa, genérica e indeterminada, a redação confere à persecução penal demasiado poder discricionário em dissonância com as aspirações cultivadas pela civilização ocidental desde o iluminismo;

(ii) o suspeito com identidade não esclarecida deve permanecer preso e à disposição das autoridades por cinco a dez dias (artigo 1º, inciso II c/c artigo 2º, caput), ou 30 a 60 dias em caso de crime hediondo (Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 4º), enquanto na prisão preventiva, independentemente da natureza e gravidade do delito, a medida extrema e excepcional deve perdurar somente até a correta identificação do encarcerado (CPP, artigo 313, parágrafo único);

(iii) a incidência do permissivo legal se ancora na gravidade abstrata dos tipos penais enumerados como crimes mais graves, como homicídio doloso, roubo e estupro (artigo 1º, inciso III). É dizer, a norma denota um fim preponderante de satisfação do clamor social, sem a exigência da concretude do periculum libertatis e da excepcionalidade como ultima ratio, requisitos previstos para qualquer prisão provisória, como ocorre na prisão preventiva por expressa disposição veiculada pela reforma processual penal de 2011 (CPP, artigos 312 c/c 282, parágrafo 4º).

Aliás, a seletividade da prisão temporária segundo a gravidade abstrata do tipo penal já reflete, per si, não uma técnica científica e processual, mas o anseio de um sistema repressivo ainda imoderado e suscetível ao clamor público ávido por justiçamento instantâneo — paixão típica de povos obcecados por experiências e distrações sanguinárias.

Ou seja, o instituto viola flagrantemente o princípio da presunção de inocência, dada a sua finalidade desprovida de efetiva cautelaridade, por não se destinar a assegurar, no processo penal, o procedimento do devido processo legal[3].

Valiosa se faz uma consulta aos cadernos do tempo. Enquanto na Antiguidade se prendia para assegurar a execução penal, o pagamento de dívida, ou para garantir a incolumidade física do acusado[4], na Idade Média, marcada pelo terrível sistema inquisitorial, a prisão perdeu o caráter de cautelaridade e o seu fim passou a ser a dis­po­ni­bi­li­da­de, com aflição e penitência, do corpo do acu­sa­do ao inquisidor, como meio de obtenção da con­fis­são per tor­men­ta[5].

Se a prisão temporária pode, com amparo infraconstitucional, dar-se na ausência de flagrante delito e antes mesmo da existência de elementos autorizadores da prisão preventiva[6], apenas respaldada em um juízo discricionário e excessivamente subjetivo de uma intitulada “necessidade da investigação”, então o processo penal brasileiro regrediu exatamente sob a égide da Constituição Cidadã.

Com efeito, prender para apurar destoa do justo processo legal e da sua ínsita garantia de que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (CF, artigo 5º, inciso LXI).

No desempenho da elevada missão de proteger os direitos fundamentais e de garantir a ordem constitucional, o Supremo Tribunal Federal dirá sobre a (in)constitucionalidade da Lei 7.960/89 no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 4.109 e 3.360, no próximo 15 de agosto.

O que está em debate, vale destacar, não é apenas um conjunto de regras formais, mas “a definição sobre a extensão dos poderes do Estado em face dos direitos e garantias que a Constituição da República outorgou às pessoas sujeitas, por suposta prática delituosa, a atos de investigação criminal ou de persecução penal em juízo”[7].

Não se deve hesitar. Eis o momento histórico para a corte máxima do país reconhecer, na prisão temporária instituída pela Lei 7.960/89, que “a exageração sempre é inconveniente e má, ainda mesmo quando se emprega para um fim bom e moral” (Joaquim Manuel de Macedo).


[1] Para Paulo Rangel, “em um Estado de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente, é o autor do delito” (Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 643).
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. III. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 535.
[3] KATO, Maria Ignez Baldez Lanzellotti. A (des)razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 126.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 28.
[5] CRUZ, Rogerio Schietti Machado. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. São Paulo: Lumen Juris, 2011. p. 8.
[6] Para Rogério Leão Zagallo, “esse tipo de prisão visa permitir que a autoridade policial, diante da prática de um crime que esteja disposto na Lei n. 7.960/1989, não possuindo ainda elementos de prova que permitiram a prisão preventiva e na ausência de flagrante permaneça com o investigado sob sua proteção e disposição, com o fim de proceder à coleta de demonstrativos de autoria e materialidade” (Prisão Provisória: Razoabilidade e Prazo de Duração. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 83).
[7] Voto proferido pelo ministro Celso de Mello no recente julgamento, em 14 de março, do AgReg no Inq 4.435/DF, em que o Plenário da suprema corte firmou a competência penal da Justiça Eleitoral nos delitos comuns conexos com crimes eleitorais.

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