Opinião

Decreto centraliza no poder público federal as diretrizes ecológicas do país

Autor

  • Marcos Lovato

    é sócio do Fogliarini Lovato e Kurtz Advogados Associados mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor de Direito Urbanístico Agrário e Ambiental na Faculdade Palotina de Santa Maria (Fapas).

10 de julho de 2019, 14h58

No dia 29 de maio foi publicado o Decreto Federal 9.806, o qual traz uma nova formação para o Plenário do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Na norma está disposto que, agora, o órgão passa de 96 para 23 membros.

Antes de entrarmos nas especificidades das mudanças, é necessário fazer uma breve abordagem sobre a função deste órgão na proteção do meio ambiente nacional. O Conama faz parte do Ministério do Meio Ambiente e tem como principal finalidade propor diretrizes das políticas governamentais ambientais e deliberar sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. Temas como licenciamento ambiental, limites de poluição, procedimentos industriais, bem como critérios para a gestão de resíduos e manejo da fauna e flora são normatizados de forma objetiva pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente.

Essas deliberações são advindas do Plenário do Conama, cujos membros representavam a pluralidade de setores que possui interesse na abordagem ambiental pelo Estado. E é aí que reside grande parte das críticas sobre o novo decreto presidencial.

Na atual estruturação do Conama, o governo federal possui dez cadeiras, os governos estaduais, cinco lugares (um para cada região geográfica do país), dois representantes de governos municipais (escolhidos dentre as capitais dos estados), quatro cadeiras para entidades ambientalistas de âmbito nacional e duas para entidades empresariais (indicadas por cinco confederações nacionais, no caso, da indústria, do comércio, de serviços, da agricultura e do transporte).

Ainda que o governo federal tenha se posicionado no sentido de que a redução foi proporcional entre representantes do poder público, setor privado e sociedade civil[1], é inegável que, no que tange a esta última, sua perda foi muito mais qualitativa do que o quantitativa. Para melhor compreender a questão, é necessário observar quais eram as entidades da sociedade civil que anteriormente ao Decreto 9.806 possuíam poder de voto no Conama:

Art. 5 Integram o Plenário do CONAMA:

VIII – vinte e um representantes de entidades de trabalhadores e da sociedade civil, sendo:

a) dois representantes de entidades ambientalistas de cada uma das Regiões Geográficas do País;

b) um representante de entidade ambientalista de âmbito nacional;

c) três representantes de associações legalmente constituídas para a defesa dos recursos naturais e do combate à poluição, de livre escolha do Presidente da República;

d) um representante de entidades profissionais, de âmbito nacional, com atuação na área ambiental e de saneamento, indicado pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental-ABES;

e) um representante de trabalhadores indicado pelas centrais sindicais e confederações de trabalhadores da área urbana (Central Única dos Trabalhadores-CUT, Força Sindical, Confederação Geral dos Trabalhadores-CGT, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria-CNTI e Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio-CNTC), escolhido em processo coordenado pela CNTI e CNTC;

f) um representante de trabalhadores da área rural, indicado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura-CONTAG;

g) um representante de populações tradicionais, escolhido em processo coordenado pelo Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais-CNPT/IBAMA;

h) um representante da comunidade indígena indicado pelo Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil-CAPOIB;

i) um representante da comunidade científica, indicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC;

j) um representante do Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares-CNCG;

l) um representante da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza-FBCN.

Agora, o texto do decreto reserva apenas quatro vagas para "representantes de entidades ambientalistas de âmbito nacional inscritas, há, no mínimo, um ano, no Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas – Cnea, mediante carta registrada ou protocolizada junto ao Conama" (artigo 5º, VII). E como serão escolhidas essas quatro entidades?

§ 10. Os representantes a que se refere o inciso VII do caput terão mandato de um ano e serão escolhidos por sorteio anual, vedada a participação das entidades ambientalistas detentoras de mandato.

Logo, conclui-se que, dentre a sociedade civil, apenas quatro representantes de entidades (desde que sejam exclusivamente ambientalistas) terão espaço para as discussões no Conama. Já as representantes de trabalhadores e mesmo a comunidade científica, que antes tinha um indicado pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, estão fora do diálogo sobre os direcionamentos ambientais do país. E o mesmo acontece com representantes das comunidades tradicionais e indígena.

O Decreto 9.806/19 acaba por diminuir não apenas o número de participantes no Plenário do Conama, mas traz, também, um perigoso reducionismo ao tema da preservação ambiental. A complexidade dos elementos que formam o bem jurídico meio ambiente é massivamente reconhecida, no sentido que este deva abranger aspectos técnicos, científicos, biológicos, sociais e culturais.

Como tirar da decisão sobre os direcionamentos ambientais do país as comunidades indígenas, em épocas que estas têm sua existência ameaçada por desastres ecológicos de grande magnitude, como no caso da tragédia de Brumadinho[2]?

É preocupante, também, a perda da cadeira da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, organização com mais de 70 anos de história e de vital importância no desenvolvimento da ciência no país. Dentro do Direito Ambiental brasileiro, especificamente, a SBPC contribuiu muito para as discussões sobre o atual Código Florestal[3] e, claro, para a elaboração de diversas resoluções do Conama.

O novo formato do Conama traz um déficit representativo também para os governos municipais, agora reduzidos a dois representantes (e não mais oito, como anteriormente). E a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (Anama) não tem mais lugar garantido e terá de participar do sorteio entre os atores da sociedade civil ambientalista. A Anama participou, por exemplo, da aprovação da Resolução 237 do Conama, principal norma do licenciamento ambiental no âmbito infralegislativo. De mesma forma, atuou para a criação e regulamentação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e pela aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos[4].

Ocorre que os municípios são, atualmente, os entes federativos com o maior espectro de atuação na elaboração dos licenciamentos ambientais de atividades potencialmente poluidoras, sendo o crescimento da municipalização dos licenciamentos tendência natural nas administrações públicas[5]. As resoluções do Conama sempre dependeram da contribuição dos governos locais sobre a realidade enfrentada pelas administrações municipais e, ao que parece, temos também esta voz enfraquecida no Conselho Nacional de Meio Ambiente.

Por sua vez, a administração federal, ainda que tenha perdido lugares no Plenário do órgão, continua forte. São, no total, 10 representantes do governo federal, estando lá o ministro do Meio Ambiente (que preside o Plenário), o secretário-executivo do mesmo ministério e o presidente do Ibama, além de representantes de outros sete ministérios.

O que chama a atenção é que os membros da sociedade civil, dos estados, dos municípios e das entidades empresariais têm mandato de um ano apenas, prazo este não existente para os membros da administração federal. É uma troca de peças muito rápida frente a um governo federal que se fará presente sem um "prazo de validade" e com membros detentores de grande poder político.

A pluralidade é essencial para o funcionamento de um órgão que regulamenta questões ambientais. E o Decreto 9.806/19, por um lado, limita a participação da coletividade nas discussões do Conama e, por outro, centraliza no poder público federal as diretrizes ecológicas do país. Eis dois termos — reducionismo e centralização — que não deveriam mais se fazer presentes na política ambiental de qualquer país do mundo, mas que, infelizmente, ganharam força no Brasil.


[1] http://mma.gov.br/informma/item/15500-decreto-d%C3%A1-mais-agilidade-ao-conama.html
[2] https://www.metrojornal.com.br/foco/2019/01/30/tribo-indigena-brumadinho.html
[3] http://www.sbpcnet.org.br/site/publicacoes/outras-publicacoes/CodigoFlorestal__2aed.pdf
[4] https://www.anamma.org.br/quem-somos
[5] "A segunda tendência do licenciamento ambiental é a municipalização. Embora inicialmente apenas os Municípios de maior porte tenham abraçado o instrumento, agora os de médio porte passaram a fazê-lo, e em alguns casos os de menor porte também. Esse processo tende a se aprofundar em razão do entendimento de que o licenciamento descentralizado é estratégico, mormente nos lugares mais distantes dos grandes centros, para o estímulo das atividades econômicas e o desenvolvimento local" (https://www.conjur.com.br/2017-set-02/ambiente-juridico-informatizacao-outras-tendencias-licenciamento-ambiental).

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    é sócio do Fogliarini, Lovato e Kurtz Advogados Associados, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor de Direito Urbanístico, Agrário e Ambiental na Faculdade Palotina de Santa Maria (Fapas).

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