Opinião

Ao criminalizar a homofobia, Supremo faz parecer que tenta jogar para a plateia

Autor

  • Fernando Orotavo Neto

    é advogado professor licenciado da Universidade Candido Mendes (Ucam) e membro da Comissão de Direito Constitucional Processo Civil e Amicus Curiae do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

10 de julho de 2019, 7h07

Inicialmente, passo a fazer três registros sumamente importantes, a fim de evitar linchamentos ou deturpações ideológicas, como sói acontecer, hoje, num país chamado Brasil, em que a intolerância parece ter alcançado níveis inaceitáveis. Ninguém mais raciocina sobre o que é certo ou errado, pois a nação parece ter se dividido num fla-flu político que gira em torno de Lula e Bolsonaro.

1. Tenho amigos homossexuais (homens e mulheres) que admiro e respeito, na mesma proporção que respeito e admiro os meus amigos heterossexuais. O homossexualismo e o transexualismo são opções inerentes à sexualidade do indivíduo, cujo exercício é garantido pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III); daí sobrevindo o motivo pelo qual eles não constituem, per se, a questão central posta em debate neste texto. Sou, portanto, a favor da criminalização, e não contrário a ela. Critico a forma, e não o conteúdo. Fique isto bem claro!

2. O direito de criticar decisões de cortes constitucionais é uma faculdade legítima, que vem sendo exercida por intérpretes, juristas, filósofos e operadores do Direito há séculos. Não se trata de mera exteriorização da liberdade de manifestação do pensamento (CF, artigo 5º, IV e artigo 220, caput), embora também o seja, mas, principalmente, de contribuição intelectual e ideativa que os acadêmicos e estudiosos das ciências humanas, em geral, prestam à interpretação evolutiva do Direito. Karl Larenz, Konrad Hesse, Ronald Dworkin, Bernard Schwartz, Luís Roberto Barroso e Daniel Sarmento, só para citar alguns que admiro e com quem muito aprendi (lendo-os), o fizeram, em seus artigos, pareceres e livros, por mais de uma vez.

3. Não é vergonha nenhuma o STF errar, uma vez que detém o privilégio de errar pela última vez. Inúmeras decisões “erradas” da Suprema Corte dos Estados Unidos serviram ao aprimoramento da democracia construída, ao longo dos séculos, pelos nossos vizinhos. E eles erraram bastante (por exemplo: Dred Scott v. Sandford, ocasião em que a Suprema Corte decidiu que as pessoas de descendência africana que chegavam ao país, e eram mantidas como escravas, não se encontravam protegidas pela Constituição americana; ou Bowers v. Hardwick, quando aquele mesmo tribunal constitucional declarou que uma lei de sodomia promulgada pelo estado da Geórgia, que criminalizava o sexo oral e anal, consensualmente realizado entre adultos e homossexuais, em ambientes privados, era constitucional e válida).

O problema maior, então, não é errar, pois, como dizia Brandeis, ex-juiz daquela corte (1916-1939), “o processo de tentativa e erro, tão proveitoso nas ciências físicas, também é apropriado à atividade judicial”. O problema é como superar o erro, e logo superar o erro, para que ele não se transforme numa “epidemia de erros”; de sorte que se possa evoluir nas conquistas democráticas e no processo de garantização dos direitos fundamentais, em vez de neles se retroceder.

Partindo dessas premissas, que desafiam contradita séria, penso que o STF criou um monstro jurídico, ao criminalizar a homofobia por meio de decisão judicial. Não é que a homofobia não mereça ser criminalizada, mas, a toda evidência, não se poder criminalizá-la através de decisão judicial e, ainda ao mais, por meio de interpretação analógica.

O princípio da separação dos Poderes (CF, artigo 2º) deixa muito claro, como a luz solar, que cabe ao Executivo governar, ao Legislativo legislar e ao Judiciário julgar. Não cabe ao STF, nem é função dele, criar leis ou, com muito menos propriedade, condutas criminalizantes (tipos penais) mediante decisão judicial. Essa função encontra sua gênese na competência privativa do Congresso Nacional (CF, artigo 22, I), e não na do Poder Judiciário.

Mas não é só. No momento em que o STF cria um tipo penal por decisão judicial, ele está, o próprio gatekeeper constitucional, pasme-se, violando os princípios constitucionais da cidadania e do pluralismo político (CF, artigo 1º, I e V), alicerces fundamentais do pacto federativo (CF, artigo 1º, caput), e usurpando a representatividade democrática dos cidadãos (rectius, do povo), pois os congressistas (deputados federais e senadores) nada mais são do que delegatários do povo, seus representantes eleitos, consoante se infere da atenta leitura do parágrafo único do artigo 1º da Carta Fundamental da República (“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), na sua letra e na sua única exegese possível.

Se nem mesmo o presidente da República pode criar um tipo penal ou criminalizar uma conduta por decreto (CF, artigo 85, V, letras “a” e “b”), que dirá possam fazê-lo os ministros do Supremo, autoridades judiciárias que não foram eleitas pelo povo mediante escrutínio democrático (CF, artigo 84, XIV).

Aos ministros do STF cabe interpretar a Constituição e atuar como legislador negativo, vale dizer, declarar inconstitucionais as leis incompatíveis ou promulgadas em desconformidade com a Constituição, formal ou materialmente, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade. Nunca, jamais, em hipótese alguma, legislar por meio de decisão judicial.

Aliás, falando em controle concentrado de constitucionalidade, a ADO (ação direta de inconstitucionalidade por omissão) é prova viva dessa realidade inelutável, pois o parágrafo 2º do artigo 103 da Magna Carta dispõe expressamente que, “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.

O texto constitucional é autoexplicativo, e não é preciso ser formado em Harvard para interpretá-lo corretamente: fosse o STF o Poder competente para criar leis, desnecessária e inútil seria a determinação constitucional de ser dada “ciência ao Poder competente para a adoção das providências”. Bastaria decidir… et tollitur quaestio (questão encerrada)!

Destarte, ao instituir crime por decisão judicial, a suprema corte, desenganadamente, atuou como legisladora positiva, usurpando a função do Congresso Nacional e, modus et rebus, a representatividade democrática do povo brasileiro, uma vez que os congressistas são delegatários dos cidadãos que os elegeram, exatamente para dar cumprimento à função de legislar. O juiz, qualquer que seja — e os ministros do STF sabem disso! —, é apenas “la bouche qui prononce les paroles de loi” (“a boca que pronuncia as palavras da lei”), como já dizia Montesquieu, há mais de 250 anos (De l'ésprit des lois, livre XI, chap. 6, page 1.748). E não os criadores dela! — agora, digo eu, séculos depois do filósofo iluminista, embora nunca imaginasse, antes, que seria preciso dizê-lo. Les juges ne créent pas de lois! — afirmo eu, na língua de Montesquieu, que deve estar tremulando no túmulo!

Diante do texto inserto no artigo 5º, inciso XXXIV (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”), pelo legislador constituinte, que consagra o princípio da reserva legal, não vou falar aqui das normas infraconstitucionais, penais e processuais penais vilipendiadas pelo STF, cuja violação reputo serem apenas reflexas.

No entanto, cabe desmistificar, ainda, o motivo determinante da decisão e classificá-lo (qualificá-lo) por sofismático. Isto porque a interpretação analógica, seja por meio de analogia legis, seja através de analogia juris, não autoriza o STF, neste caso, a instituir crime por decisão judicial. Convém ouvir Carlos Maxmiliano, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (de 1936 a 1941), quando leciona que “o recurso à analogia tem cabimento quanto a prescrições de direito comum; não do excepcional, NEM DO PENAL. No campo destes dois a lei só se aplica aos casos que especifica” (in “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Freitas bastos, 1951, item 245-III, pág. 260/261). Trata-se do óbvio ululante, pois, segundo a Constituição, “não há crime sem lei que o defina”. Lei, e não decisão judicial!

Como se vê e lê, quando a utilização equivocada da interpretação analógica é usada com o pretexto de coonestar a criação de um tipo penal novo, não previsto em lei, por decisão judicial, o juiz deixa de ser juiz e descamba para a patologia, fazendo exsurgir o temido ativismo judicial, vício de natureza constitucional que só se presta a fazer soçobrar a confiança nas instituições e a segurança jurídica, como mais de uma vez advertiu Vicente Ráo, ao declarar que “adotar semelhante doutrina diz muito bem Enneccerus, equivale a entronizar a vontade do juiz, sobrepondo à vontade coletiva; importa menoscabar em extremo a consideração devida à lei e, o que é mais grave, à segurança do direito e à avaliação prévia, ao que todos temos direito, das consequências de nossos atos”, o que, segundo, ainda, o renomado jurista, suprimiria “a segurança das relações jurídicas, criando a incerteza das consequências futuras dos atos e fatos incidentes na esfera do direito” (in “O Direito e a Vida dos Direitos”, Ed, RT, São Paulo, 2012, 7ª. Ed, pág. 549).

Concluindo este texto, que se tornou grandessíssimo pela seriedade e gravidade da decisão tomada pelo STF, a verdade, nua e crua, é que a Constituição não deveria ser substancialmente remodelada ao sabor da vontade dos ministros da suprema corte — de qualquer suprema corte. As eventuais deficiências ou omissões, a meu ver e sentir, devem ser corrigidas pelo povo, através do processo legislativo próprio (emenda ou reforma), e não através das cortes de Justiça, as quais não detêm, em virtude do princípio da tripartição dos Poderes (checks and balances), legitimidade democrática para buscar ou promover a consecução de tal objetivo ou resultado.

Criminalizar a homofobia seria bom, mormente nesta conjuntura de ostensiva intolerância que o nosso país atravessa — isto, não discuto! —, mas, ao fazê-lo por decisão judicial, o STF se politizou (fazendo as vezes dos representantes políticos do povo) e se deslegitimou (pois não é essa a sua função), fazendo parecer aos não leigos que tenta jogar para a plateia, numa ávida disparada à procura do reconhecimento público que parece ter perdido no tempo (D'aprés Marcel Proust — “à la recherche du temps perdu”).

Interessante que todas as questões aqui levantadas tenham conseguido passar pelo crivo de 16 olhos atentos e preparados, fazendo lembrar, por inevitável associação (monstro jurídico x monstro mitológico), a experiência do gigante Argos, fiel servo de Hera, que, embora contasse com cem olhos para tudo ver, acabou sendo assassinado por Hermes, a mando de Zeus, e transformado em pavão.

Que se freie o ativismo judicial e a ele se imponham limites, pela crítica construtiva dos operadores do Direito, sob pena de assumirmos o risco, todos nós, com a nossa omissão, de transformarmos a nossa Constituição numa verdadeira quimera, e não simplesmente em pavão!

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