Inflexão administrativa

Responsabilização intensa tem limitado criatividade do gestor público

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10 de julho de 2019, 9h00

Spacca
Se há cerca de 20 anos não era tão comum a responsabilização de governantes por seus atos na administração pública, hoje o fenômeno está disseminado. Inclusive, na opinião do advogado e professor de Direito Administrativo na Faap, Marcio Pestana, isso está limitando a criatividade de alguns gestores públicos. 

As razões para o aumento da responsabilização são várias. Dentre elas, destacam-se a falta de conhecimento dos administradores sobre quais condutas são autorizadas e a adoção de medidas que são julgadas necessárias pelos políticos. "O gestor público não tem conhecimento [sobre determinados procedimentos]. Por mais que conte com assessores, com um corpo técnico apropriado, ele transita em ambientes de dificuldade de compreensão", afirma, em entrevista à ConJur, ressaltando que há municípios que sequer contam com técnicos para assistir ao prefeito local.

De acordo com Pestana, o receito de ser responsabilizado tem deixado gestores públicos inertes, sem conseguir cuidar da coisa pública e, consequentemente, "não proporcionando satisfação ao interesse público".  

O advogado defende, portanto, a integração de institutos e normas que foram produzidos em tempos distintos e que acabam por cumular sanções. Como exemplo, ele cita a lei de improbidade administrativa (Lei 8429/1992) e lei anticorrupção (Lei 12.846/2013); nesse caso, há chance de uma conduta incidir nas duas leis.

Aos 64 anos, Pestana concilia as aulas com a atuação no escritório Pestana e Villasbôas Arruda Advogados. É membro dos conselhos do governo de São Paulo sobre o Programa de Parcerias Público-Privadas e Desestatização. Além disso, é árbitro na Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP. 

Leia a entrevista:

ConJur — Quais foram as principais transformações sentidas no Direito Administrativo nos últimos anos? 
Marcio Pestana — 
Antes havia um predomínio da autoridade do Estado como um ente que preconizava certos comandos obedecidos pelos cidadãos ou pelas empresas que interagissem com ele. Com o passar do tempo e, mais recentemente, há um maior consensualismo. Ou seja, o Estado se mostra sensível em acatar o pensamento da própria sociedade e, isso acontece, por exemplo, através de audiências públicas em que a população apresenta suas críticas, aplausos ou sugestões para iniciativas que estejam prestes a serem empreendidas pelo poder público. 

ConJur — O que precisa ser aprimorado?
Marcio Pestana —
 Percebo um movimento atual de intensificação da responsabilização do gestor público. Isso já foi sublinhado por um ministro do Tribunal de Contas da União no sentido de que há um medo do administrador público em gerir a coisa pública. Ele teme ser responsabilizado, com todo o comprometimento de seu próprio patrimônio pessoal, por conta de iniciativas que entendeu que deveriam ser feitas. Esse é um ponto de inflexão que temos que buscar uma solução. 

Não existe ainda uma solução ótima, mas hoje há uma preocupação muito intensa nos planos municipal, estadual e federal, do gestor público se resguardar. O que prevalece é que o gestor, com receito de ser responsabilizado, fica inerte, não cuidando da coisa pública e, consequentemente, não proporcionando satisfação ao interesse público. Essa é uma merece um cuidado redobrado por parte dos congressistas. 

ConJur — Quais são os fatores que fazem com que os governadores se sintam acuados desta forma?
Marcio Pestana —
São vários fatores. Vejo que está prevalecendo a insegurança jurídica. É evidente que o próprio gestor tem que se balizar dentro de um perímetro juridicamente autorizado e, por vezes, ele não tem muito claramente que perímetro é esse. Vemos, por exemplo, o Tribunal de Contas da União estabelecendo determinados procedimentos que, por vezes, não são tão claros. O gestor público não tem conhecimento. Por mais que conte com assessores, com um corpo técnico apropriado, ele transita em ambientes de dificuldade de compreensão. Levado às últimas, isso traz dificuldades especialmente se pensarmos numa administração pública municipal, em que há diversos municípios que não contam, inclusive, nem com pessoal técnico para assistir ao prefeito local. São várias causas que hoje estão retirando a criatividade de um gestor.

ConJur — Como aprimorar a definição de improbidade administrativa?
Marcio Pestana —
A lei de improbidade administrativa foi extremamente exitosa e tem cumprido seu papel de, justamente, exigir que o administrador seja probo. Percebo, porém, a necessidade de integrar alguns “micro sistemas repressores” de condutas que envolvem a coisa pública. Exemplificando: desde 2013, temos a Lei Anticorrupção, que prevê várias hipóteses em que é possível responsabilizar a pessoa jurídica pela prática de ilícitos. É preciso, assim, harmonizar as normas existentes porque elas foram criadas em tempos distintos e agora estão cumulando. Ou seja, há situações em que tem a possibilidade de uma conduta acarretar na incidência da Lei Anticorrupção e da lei de improbidade administrativa. 

ConJur — É preciso de uma movimentação no legislativo sobre os temas?
Marcio Pestana —
É um momento extremamente rico e importante para que essa harmonização se dê no plano legislativo. Há ainda a lei de crimes de ordem econômica, que é um micro sistema repressor de certas condutas e que, por vezes, cumula sanções. Isso deveria ser evitado exatamente em um momento como este, em que se procura um novo Brasil, criando um novo conjunto de normas, inclusive contra a corrupção. 

ConJur — As empresas estão preparadas para aplicar a Lei Anticorrupção? Quais são os pontos frágeis?
Marcio Pestana —
As estatísticas não estão muito claras no tocante à lei porque ela é bem recente, de 2013. A Lei teve a virtude de introduzir no país um sistema estruturado que pudesse surpreender situações lesivas aos valores defendidos, sancionando e apenando as empresas, pessoas jurídicas ou grupamentos que atuassem nesse segmento. Por exemplo, um passo muito importante foi decreto 8420/2015, que trouxe a dosimetria da sanção. Vejo como um passo de evolução sim, mas necessita de aprimoramento. 

ConJur — A lei de licitações é de 1993. Acredita que ela precisa ser revista?
Marcio Pestana — A lei merece alguns reparos, já que ela é de uma época em que o Brasil estava mais voltado para construções. É necessário aprimorar para dar mais lisura a todas as contratações, ampliar a participação e a relevância do seguro. Com isso, auxiliaria e diminuiria a corrupção nas empresas e a ineficácia, desídia na construção.

A história do Brasil é plena de situações em que os projetos se revelaram incorretos, imprecisos, deficientes, acarretando em maior onerosidade, com obras paradas. Acontece que os projetos são deficientes. Ao longo da contratação, eles sofrem críticas até mesmo sobre a própria concepção. Defendo com bastante rigor que toda licitação só poderia começar se fosse apresentado um projeto básico muito claro, um projeto executivo rigorosamente detalhado e que fosse absolutamente condizente com a contratação correspondente. É uma das leis que necessariamente devem ser revisitadas pelo Congresso Nacional. 

ConJur — Como o senhor analisa a forma como tem sido usado o instituto do acordo de leniência?
Marcio Pestana —
 Uma das considerações que faço é de que é preciso ter muita clareza sobre quem pode celebrar o acordo. O acordo também deve ser formalizado cobrindo todas as possibilidades de responsabilização. A lei de improbidade administrativa, por exemplo, diz que é vedado transação. Então se eu celebro um acordo de leniência sobre a Lei Anticorrupção, não cubro com a lei de improbidade administrativa. Assim, há sempre um ponto de incômodo.

Tanto que existe até um pacote que está em discussão no Congresso nacional de fazer uma inserção nessa lei 8.429 permitindo a transação. Quer dizer, isso está em curso dentro do pacote que foi remetido ao Congresso e eu defendo exatamente essa medida para que exatamente haja aquilo que eu falei desde o início: a harmonização das normas que se entretocam e que, por vezes, incidem sobre o mesmo ponto e a mesma conduta.

ConJur — Em sua opinião, as agências reguladoras têm atuação excessiva?
Marcio Pestana —
Eu defendo agências reguladoras porque elas trazem tecnicidade a determinados segmentos, como por exemplo em serviços aeronáuticos, área de saúde pública, dentre outras. A crítica que faço apenas é sobre um pouco de lentidão em algumas agências. Prefiro que o Estado tenha as atividades voltadas ao serviços essenciais: segurança, saúde, educação, relações exteriores e Fazenda. No mais, todo o resto que for possível seja transferido para a iniciativa privada, fortalecendo sempre o agente regulador e fiscalizador para que a atividade seja observada e controlada.

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