Opinião

Inconstitucionalidades da MP que facilita a venda de bens de traficantes

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9 de julho de 2019, 11h57

No dia 17 de junho foi editada, pelo presidente da República, a Medida Provisória 885, que traz, além de outras diretrizes, a possibilidade de “antecipar a venda de bens apreendidos de traficantes”, contida em seu artigo 2º, e a alteração de disposições da Lei 11.343/2006, especificamente no artigo 63-C, passando a admitir que bens apreendidos e não leiloados (obtidos através da constrição patrimonial cautelar — durante o inquérito policial e não apenas após a sentença penal condenatória) possam ser convertidos, antecipadamente à sentença, em favor da União.

Dessa forma, busca tornar mais célere o procedimento de perdimento e utilização dos bens constritos que sejam decorrentes de procedimentos administrativos (inquéritos policiais) ou judiciais (ações penais) que versem sobre a investigação por tráfico de drogas.

Verifica-se, com alguma facilidade, que se trata de medida semelhante à existente no "projeto anticrime" do Ministério da Justiça, a qual guarda relação com a possibilidade de antecipação de medidas de constrição patrimonial — confisco — em relação aos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com seu rendimento lícito, quando forem decorrentes de delitos punidos com pena superior a 6 anos, sendo que este ainda está em fase de aprovação ordinária na Câmara e no Senado.

É possível perceber a tentativa de utilizar essa MP para “antecipar” alguns efeitos do "projeto anticrime" já submetido às Casas Legislativas, em lamentável tentativa política de “burlar” o sistema legislativo e editar texto de lei sem a existência dos trâmites ordinários e previstos na Constituição Federal (Criação de Lei Ordinária, artigo 47), bem como sem o preenchimento dos requisitos relativos à edição de medida provisória.

Os instrumentos constitucionais para contenção das referidas burlas atingem a medida com clara inconstitucionalidade formal. Para evitar os abusos governamentais na edição de medidas provisórias (que só em 2019 são mais de 14), em 2001 foi editada a Emenda Constitucional 32, a qual alterou o artigo 62 da Constituição Federal, elencando, em seu parágrafo 1º, inciso 1º, alínea “b”, a vedação expressa quanto à possibilidade de versar as medidas provisórias sobre matéria penal, processual penal e processual civil, conforme se pode verificar no texto existente na Constituição:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
[…]
b) direito penal, processual penal e processual civil.

Ao verificar o conteúdo e até mesmo as justificativas da medida provisória em comento, percebe-se tratar de matéria processual penal com efeitos também de natureza penal e arrecadatória. Trata de aplicar medidas processuais antecipando situações decorrentes da aplicação de uma penalidade com a intenção de converter valores de bens apreendidos administrativa ou judicialmente à União. Estabelece, assim, a viabilidade de uma relação jurídico-processual nova e interfere no procedimento, sendo inequivocamente classificada como matéria de Direito Processual, além de tangenciar temática penal, o que já seria suficiente para inviabilizar a edição de medida provisória, dadas as transcritas restrições constitucionais.

Além da inconstitucionalidade formal, é facilmente reconhecida a inconstitucionalidade material: efeitos da condenação são antecipados contra aquele que é investigado no procedimento relativo ao tráfico de drogas ou condutas afins, ferindo o princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, o qual garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Em outras palavras, se não há certeza da culpa do réu, seus bens não podem ser confiscados.

Há ainda inconstitucionalidade material na clara violação ao princípio da reserva legal (artigos 5º, II da Constituição Federal), que garante segurança jurídica ao passo que dispõe que somente em virtude de lei haverá obrigações e deveres por parte dos cidadãos e também por parte do Estado, frisando que deve ser entendido o termo “lei” como norma legal que esteja formal e materialmente de acordo com a Constituição Federal, para que possa produzir efeitos jurídicos.

Desnecessário lembrar que todas as medidas provisórias devem passar pela análise criteriosa quanto à sua constitucionalidade material (se a intenção da lei ou o texto da lei está de acordo com a Constituição) e formal (se o processo legislativo de criação da lei foi devidamente obedecido). No caso, nenhum dos filtros foi satisfeito.

Neste ponto devemos consignar que, a par da impossibilidade de edição dessas matérias por medida provisória, ainda que reste aprovada pelo Congresso Nacional, deverá o Supremo Tribunal Federal, se provocado, se manifestar pela inconstitucionalidade da medida provisória, por violar claramente o processo legislativo adequado (processo legislativo de criação de lei ordinária) e por ter o Poder Executivo exercido (extrapolado) sua função atípica — a de legislar — sem qualquer existência dos critérios de relevância e urgência.

Importante esclarecer que o móvel da medida provisória em comento é relacionado à arrecadação antecipada por parte do Estado, decorrente da apreensão de bens provenientes de crimes, situação que se distancia das demais normativas existentes, que, por seu turno, embora realizem constrição antecipada de patrimônio, mantêm os valores obtidos com as vendas antecipadas em contas judiciais até o final do processo (trânsito em julgado), para somente após a condenação converter em favor da União, estados ou municípios, situação diversa à medida provisória editada, que autoriza a transferência imediata dos valores arrecadados para consta ou fundos relacionados à prevenção e ao combate ao tráfico de drogas, bem como às campanhas contra as drogas e no tratamento de dependentes químicos custodiados pelo Estado.

Falsa inovação e percepção quanto à necessidade e eficácia
A MP 885 não traz qualquer inovação, no sentido de necessidade e eficácia sistêmica, pois já contamos com a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98, com as alterações trazidas pela Lei 12.683/12), que dispõe de mecanismos semelhante, senão idêntico, conforme norma contida no artigo 4º:

Art. 4º A. A alienação antecipada para preservação de valor de bens sob constrição será decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou por solicitação da parte interessada, mediante petição autônoma, que será autuada em apartado e cujos autos terão tramitação em separado em relação ao processo principal.

Observa-se que a lei que combate a lavagem de dinheiro já há alguns anos cumpre a mesma função — enfraquece o crime organizado e retira proveitos financeiros —, contudo, de forma mais acertada, pois somente após o trânsito em julgado da decisão que condenar o agente que cometeu ato ilícito é que será o valor dos bens direcionado à União, e, em caso de absolvição, devolvido ao réu, conforme se verifica no texto do parágrafo 5º do mesmo artigo 4º:

§5º Mediante ordem da autoridade judicial, o valor do depósito, após o trânsito em julgado da sentença proferida na ação penal, será:
I – em caso de sentença condenatória, nos processos de competência da Justiça Federal e da Justiça do Distrito Federal, incorporado definitivamente ao patrimônio da União, e, nos processos de competência da Justiça Estadual, incorporado ao patrimônio do Estado respectivo;
II – em caso de sentença absolutória extintiva de punibilidade, colocado à disposição do réu pela instituição financeira, acrescido da remuneração da conta judicial.

Vale lembrar que o Código de Processo Penal também dispõe de medidas assecuratórias em matéria penal que podem ser aplicadas a todos os delitos, chamadas de sequestro, arresto e hipoteca legal.

Em poucas linhas, a hipoteca legal guarda relação com interesses privados, pois deverá ser realizada para garantir o ressarcimento a eventuais vítimas de delitos, sendo o excedente do valor passível de destinação ao poder público.

O arresto, por sua vez, incide sobre a reserva de patrimônio lícito daquele que cometeu algum delito, ou seja, aqueles bens que não são produtos diretos ou indiretos da prática criminosa, limitando-se aos bens móveis suscetíveis de penhora, por sua natureza, ou imóveis, em último caso, se não existirem bens móveis suficientes para garantir o ressarcimento de danos causados, servindo, portanto, para garantir eventuais prejuízos causados pelo ato ilícito praticado.

Por fim e com natureza absolutamente próxima ao editado na medida provisória ora comentada, há a previsão do sequestro de bens que, de conteúdo semelhante ao disposto no texto da MP, possui natureza de interesse público e guarda relação com os bens que foram proveitos da atividade criminosa, podendo ser de bens móveis e imóveis, visando, além do ressarcimento ao Estado pelos danos sofridos pela prática do delito, a redução da vantagem econômica trazida pela atividade criminosa (exatamente como na justificativa apresentada pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro).

Dessa forma, uma vez que já presente no ordenamento jurídico medidas similares e relacionadas, não há como defender o posicionamento de que a MP 885 versa sobre matéria urgente ou de natureza de grande relevância que esteja sendo ignorada pelo Estado, pois existem disposições legais que, na prática, suprem as disposições elencadas na medida provisória.

Percebe-se clara intenção de trazer respostas sociais a todo custo, frisando que a presente análise não se trata de ideologias políticas, mas, sim, de questões jurídicas que guardam relação direta com a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Conclusão
Importante repisar que é vedado pelo artigo 62, inciso I, alínea B, da Constituição Federal a utilização de medida provisória que verse sobre matéria de Direito Penal, processual penal e processual civil. Isso é, há claro e flagrante vício formal de constitucionalidade, situação que vem sendo repetida no atual governo como forma de “deixar de lado” o processo ordinário de criação legislativa, impondo a vontade do Poder Executivo, situação que, por si, viola a Constituição Federal e seus princípios norteadores da legalidade, corolários de um Estado Democrático de Direito.

Na sequência, aponta-se como vício legislativo a formação textual da medida provisória, a qual atribui, em caráter primário, a condição de culpabilidade antecipada da pessoa que, para fins legais e processuais, ainda é considerada inocente à luz da Constituição Federal. Ou seja, aplica-se as consequências de uma sentença penal condenatória àqueles que ainda estão sob investigação, inexistindo qualquer demonstração de certeza, ainda que mínima, sobre a sua culpabilidade, uma vez que esta somente é passível de consideração após a instrução processual, que se encerra com a sentença penal, violando diretamente o princípio da presunção de inocência, mencionado anteriormente.

Isto é, até o presente momento, no que tange ao delito de tráfico de drogas, o perdimento dos bens se dá como consequência da sentença penal condenatória (embora a constrição possa se dar em caráter cautelar — anterior à sentença), mas somente após a sentença é que os valores ou bens são destinados definitivamente à União. Contudo, nos casos onde há sentença penal absolutória, a regra é que não haja perdimento de bens em favor da União, mas, sim, que sejam devolvidos às pessoas absolvidas.

Portanto, o perdimento definitivo se dá somente ao final de um processo judicial onde são colhidas provas, ouvidas testemunhas e os próprios investigados, para, ao final, existir uma certeza provisória de culpabilidade, pois ainda haverá possibilidade de recursos para os tribunais colegiados, mas jamais o perdimento e disponibilização à União de forma antecipada.

Clama atenção o fato de serem os valores obtidos com os leilões antecipados de bens imediatamente convertidos a favor do Estado, o que viola toda e qualquer razoabilidade que deve nortear um procedimento judicial, como uma espécie de revogação tácita do estado de inocência e, de forma objetiva, espécie de revogação do próprio sistema judicial vigente, pois, ao se admitir verdadeira imposição de pena antecipada, admite-se, indiretamente, a desnecessidade de um procedimento apuratório de culpabilidade (processo penal), pois, desde a investigação, já se aplicou o paradigma de culpado a todos aqueles que forem apenas investigados.

Merece ponderação ainda o perigo da irreversibilidade da medida aqui indicada: depois de determinado o confisco de grande montante de bens de um réu, terá o julgador total isenção e imparcialidade para absolvê-lo, assumindo a responsabilidade pelo erro anterior?

Frisa-se que não há discussão aqui quanto à correta constrição dos bens proveitos das atividades criminosas, mas tão e somente em relação à forma antecipada como é tratado o tema, devendo-o ser à luz do ordenamento jurídico vigente no Brasil.

Portanto, se houver a aprovação da MP 885, haverá o reforço da insegurança jurídica que permeia o nosso sistema jurídico, acarretando, seguramente, maiores prejuízos sofridos por pessoas que muitas vezes são apenas investigadas, processadas e, ao final, absolvidas, mas, da forma como posto, ao serem absolvidas já terão sido condenadas com a violação de seus direitos e garantias decorrentes da inconstitucionalidade apresentada, que faz morada no confisco antecipado de seu patrimônio recriado para saciar aos clamores sociais, em detrimento aos direitos e garantias individuais.

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