Opinião

Nos casos de pejotização, empregado é um dos atores da fraude trabalhista

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9 de julho de 2019, 6h43

Um dos temas de maior relevância no âmbito do Direito do Trabalho brasileiro na atualidade é o fenômeno da pejotização, tido, resumidamente, como modalidade de fraude trabalhista na qual o empregador contrata pessoa física revestida de pessoa jurídica, com o objetivo de esquivar-se de encargos decorrentes da relação empregatícia e, por conseguinte, potencializar os lucros e resultados financeiros de sua empresa.

Noutras palavras: na alcunhada “fraude da pejotização”, o trabalhador constitui uma pessoa jurídica e celebra com o seu empregador um contrato simulado de prestação de serviços, recebendo o seu salário mediante a emissão de notas fiscais, tudo isso com o intuito de fazer crer que se trata de uma relação comercial e, desse modo, mascarar a verdadeira relação existente entre as partes, que seria uma relação tipicamente de emprego.

O termo, portanto, se originaria da sigla de “pessoa jurídica” (PJ = pejotização), e significaria a “transformação” de uma pessoa física (empregado) em PJ (pessoa jurídica).

O aludido fenômeno vem desencadeando considerável número de ações perante a Justiça do Trabalho, provocadas por empregados que prestaram serviços nas condições acima expostas e que, por se sentirem lesados, pretendem o reconhecimento judicial da existência de vínculo empregatício, sob o argumento de estarem presentes todos os requisitos extraídos dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (serviço prestado por pessoa física, com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação), com a consequente condenação do empregador a proceder à anotação da CTPS e efetuar o pagamento das verbas contratuais e rescisórias a que faria jus como efetivo empregado.

Em tais ações, de modo geral, o autor alega que, como condição essencial da prestação de serviços, foi compelido pelo empregador a constituir uma pessoa jurídica e a celebrar com ela um contrato simulado de prestação de serviços, recebendo o suposto “salário” mediante a emissão de notas fiscais, tudo isso como forma de mascarar a real relação existente entre as partes, que seria, em sua argumentação, uma típica relação empregatícia.

Dessa forma, alega que foi vítima de fraude trabalhista e requer, como consequência, (i) a declaração judicial de nulidade do contrato de prestação de serviços havido entre o empregador e a pessoa jurídica da qual o suposto empregado é sócio, com fundamento no artigo 9º, da CLT, (ii) a declaração de vínculo empregatício pelo período de vigência desse contrato de prestação de serviços, e (iii) a condenação do autor aos consectários legais.

Essa, pois, a síntese do pedido e da causa de pedir que, em geral, se verifica nas ações que versam sobre o fenômeno da pejotização.

O fundamento jurídico do pedido, como se pode verificar, é o artigo 9º do estatuto consolidado, que dispõe: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.

Assim, o suposto empregado, autor da ação, pretende que o juízo declare nulo o contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes (em que figura o autor como PJ), por, em tese, tratar-se de instrumento destinado a fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT no que se refere à relação empregatícia.

Entretanto, e aqui repousa o ponto crucial do presente artigo, parece-nos um tanto quanto leviano concluir, simploriamente, que em todos os casos o autor é mera “vítima” de fraude em todo o processo acima relatado, à medida que essa relação jamais teria se desenvolvido sem o consentimento do próprio autor da ação, além do que, a prestação de serviços por intermédio de pessoa jurídica constituída para tal é capaz de proporcionar benefícios não somente ao empregador (entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência trabalhista), mas também ao próprio empregado, fatores estes que, em nossa ótica, afastariam a conclusão de que o empregado figura como o único lesado em decorrência dessa fraude.

Para melhor compreensão do que se expõe, necessário adentrar ao próprio conceito de fraude.

Nos vícios de consentimento em geral, o ato é defeituoso porque a vontade do agente não se forma corretamente, já que, não fora o defeito de que se ressentiu no processo de formação, manifestar-se-ia, certamente, de maneira diversa. Ou seja, sob influências que atuam anormalmente sobre o seu psiquismo, o comportamento do agente "difere daquele a que sua vontade livre e consciente o conduziria"[1].

Já na fraude, assim como na simulação, a declaração de vontade não se afasta do propósito que efetivamente o agente teve ao praticá-la. O negócio jurídico porventura configurado resulta do livre e consciente desejo dos contratantes, de sorte que inexiste disparidade entre o querido e o declarado[2].

Nessa esteira, para o professor Silvio de Salvo Venosa, a fraude nada mais seria do que o uso de meio enganoso ou ardiloso com o intuito de contornar a lei ou um contrato, seja ele preexistente ou futuro[3].

Podemos citar, ainda, definição do dicionário Michaelis (genérica, de fato, mas elucidativa ao que ora se expõe), segundo o qual uma fraude consistiria no “ato de má-fé que tem por objetivo fraudar ou ludibriar alguém; cantiga, engano, sofisticação”.

Dos conceitos acima analisados, é possível concluir que uma fraude pressupõe, essencialmente, (i) a figura do fraudador, isto é, do sujeito ativo, aquele que pratica o ato ilícito, que emprega o ardil no intuito deliberado obter vantagem em prejuízo de outrem, e, de outro lado, (ii) a figura daquele que teria sido enganado, o sujeito passivo, aquele que teria ludibriado e lesado pelo ato ilícito praticado pelo primeiro.

Partindo-se dessa premissa, ou seja, levando-se em conta que a fraude pressupõe a figura de alguém que tenha sido ludibriado e lesado, entendemos que não se mostra razoável concluir de forma tão simplória que o empregado que consente com a sua contratação mediante a constituição de pessoa jurídica e participa ativamente desse negócio jurídico simulado foi mera vítima de uma fraude perpetrada pelo empregador, à medida que que, em todos os casos, o próprio autor acaba por reconhecer, ainda que tacitamente, que consentiu expressamente com a condição de constituir pessoa jurídica para supostamente mascarar a relação de emprego.

Nessa esteira, o fato é que, no fenômeno da pejotização, não se verifica no cerne dessa relação “empregado x empregador” a figura do sujeito passivo da fraude, ou seja, daquele que foi lesado em razão do ardil praticado por outrem; há, na verdade, uma atuação conjunta de ambos os lados da relação, pois a consumação dessa suposta fraude, diante do cenário exposto, somente se mostraria possível mediante o mútuo acordo entre empregado e empregador.

Assim, em última análise, havendo o reconhecimento de que há fraude na prática de pejotização, forçoso é concluir que o empregado, nesses casos, nada mais foi do que um dos sujeitos ativos dessa fraude e,  assim sendo, que concorreu culposamente para o hipotético evento danoso, seja qual foi o dano verificado no caso em concreto.

Ter-se-ia, pois, uma fraude praticada pelo empregado e pelo empregador conjuntamente (sujeitos ativos), com o intuito de obterem vantagens diversas para ambas as partes e possíveis terceiros lesados (sujeitos passivos).

Conforme já dito em linhas pretéritas, inobstante exista uma tendência comum de se concluir que apenas o empregador beneficia-se com a chamada fraude da pejotização tendo em vista que por meio desse artifício esquiva-se de encargos tributários, previdenciários e trabalhistas, na realidade, o empregado aceita se submeter a essa modalidade de prestação de serviços porque também se beneficia dessa condição.

Como exemplo de benefícios possivelmente alcançados pelo empregado com a prestação de serviços por intermédio de pessoa jurídica, podemos citar a percepção de remuneração superior à do empregado “comum”, a ausência de retenção de Imposto de Renda na fonte (pois a remuneração é percebida na modalidade de distribuição de lucros), bem como a ausência de descontos previdenciários.

Por essa razão é que, em nossa ótica, soa minimamente estranho que, mesmo tendo sido parte ativa daquilo que intitula “fraude” e tenha se beneficiado dessa condição, pretenda o prestador de serviços, em ação trabalhista, colocar-se no papel de trabalhador hipossuficiente que fora inconscientemente enganado e lesado pelo empregador.

Neste ponto, poderíamos até mesmo erigir uma possível tentativa de se alcançar um benefício pela própria torpeza, o que é vedado no ordenamento jurídico pátrio, segundo o princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans, do que decorre, inevitavelmente, não se afigurar razoável que, mesmo tendo o pretenso empregado sido um dos agentes principais da alegada fraude, beneficie-se com o reconhecimento de vínculo empregatício e o recebimento de todas as verbas que decorrem dessa situação fático-jurídica.

Entendemos, desse modo, ser aplicável aos casos que versam sobre o fenômeno da pejotização o instituto da culpa concorrente, para que seja o empregado-autor da ação compelido a dividir a responsabilidade juntamente com o empregador-réu, por força do que dispõe o artigo 945, do Código Civil, que prevê essa hipótese.

Referido dispositivo, que encontra-se inserido no Capítulo II (Da Indenização), do título II (Da Responsabilidade Civil), do Código Civil, estabelece, ipsis literis, que, “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”.

E é justamente o que, em nossa ótica, ocorre nos casos envolvendo o fenômeno da pejotização.

Isso porque se mostra inegável que eventual “fraude” jamais teria ocorrido se o empregado não tivesse consentido com a condição sugerida e se proposto constituir uma pessoa jurídica para a finalidade de prestar-lhe os serviços objeto do contrato. Isto é, o autor, em último caso, age em conluio com a empresa.

Pelos argumentos expostos, ou seja, considerando-se que o empregado concorre culposamente para o evento danoso — no caso, para a alegada fraude da pejotização —, é que entendemos ser plenamente possível a incidência do instituto da culpa concorrente nas ações que versam sobre o fenômeno da pejotização, com fundamento no artigo 945, do Código Civil, para que seja dividida a responsabilidade entre o empregado e o empregador, tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a da autora do suposto dano.

Assim, como consequência prática do reconhecimento da culpa concorrente nesses casos, poderia o juízo, por exemplo, e diante do caso concreto, julgar parcialmente procedente o pedido principal da ação e determinar que o obreiro receba as verbas contratuais e rescisórias no percentual de 50% do que faria jus caso a responsabilidade recaísse de forma integral sobre a ré.

No que importa às consequências jurídicas perante o INSS, o mesmo raciocínio exposto acima poderia ser aplicado, determinando-se que os recolhimentos previdenciários devidos por força do reconhecimento de vínculo empregatício fossem realizados por ambas as partes, em igualdade.

Não se pode olvidar, ainda, as consequências na seara penal em virtude da fraude perpetrada por empregado e empregador, à medida que referida conduta pode ser enquadrada como crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, conforme disposto no artigo 203, do Código Penal, o que sujeitaria ambas as partes a responderem perante a Justiça competente, para que se analise a responsabilidade de cada autor do delito.

Em resumo, trata-se de esforço reflexivo por meio do qual se pretende analisar o fenômeno da pejotização como um evento cuja ocorrência está essencialmente condicionada a uma ação bilateral de empregado e empregador.

Nessa senda, conclui-se que, nos casos de pejotização, o empregado é, de fato, um dos atores da fraude trabalhista e, em assim sendo, concorre culposamente para o hipotético evento danoso, seja qual foi o dano verificado no caso em concreto, motivo pelo qual entendemos que o instituto da culpa concorrente seria aplicável à hipótese como forma de estabelecer a divisão proporcional da responsabilidade de cada uma das partes envolvidas.


[1] RODRIGUES, Silvio. Dos Vícios de Consentimento. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1982, nº 2, p. 5.
[2] RODRIGUES, Silvio. ob. cit., nº 2, p. 6.
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral, 11. ed., página 213. São Paulo: Atlas, 2011.

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