Diário de Classe

Devedor é proibido de sair de casa nos finais de semana; fake news?

Autor

  • Igor Raatz

    é sócio-fundador do Raatz & Anchieta Advocacia professor da Universidade Feevale pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

6 de julho de 2019, 11h59

O título da coluna de hoje é uma espécie de provocação. Trata-se realmente de uma “fake news”? Quem se arriscaria a afirmar, peremptoriamente, que já não existem decisões nas quais juízes vêm proibindo devedores de sair de casa nos finais de semana para que não gastem suas economias e, assim, possam pagar suas dívidas? Realidade, mentira ou apenas premonição? Alguém dúvida que estejamos próximos disso?

Alguns anos atrás, a afirmação de que uma decisão judicial poderia determinar a retenção do passaporte, ou a suspensão da carteira de motorista de um inadimplente, inevitavelmente causaria espanto. Sem dúvida, seria impensável transformar obrigações pecuniárias – consistente no pagamento de quantia – em obrigações de fazer, desconsiderando, o milenar “princípio” da responsabilidade patrimonial, previsto nos artigos 391 do CC e 789 do CPC, que remonta à Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C., e ao conhecido brocardo “pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse”[1].

Desde 2015, com o advento do atual Código de Processo Civil brasileiro, passou-se a defender, mais enfaticamente, a utilização de “meios executivos atípicos”, sendo o mais emblemático exemplo o caso do art. 139, IV, do CPC, segundo o qual incumbe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. Com base nesse dispositivo, foram proferidas inúmeras decisões judiciais determinando a retenção de passaporte, a suspensão da CNH e de cartão de crédito do devedor, e, até mesmo, que este não pudesse participar de concurso público, as quais foram, de imediato, alvo de agudas críticas[2].

Tanto o Código de Processo Civil de 1973, quanto o Código de Defesa do Consumidor já previam o emprego de medidas executivas atípicas e, desse modo, conferiam ao juiz o poder para “determinar medidas necessárias” (v.g., art. 84, §5.º, CDC, art. 461, §5.º, CPC). No entanto, o entendimento majoritário era o de que referidas medidas estivessem restritas às obrigações de fazer, não-fazer e entrega de coisa, sendo certo que, no tocante às obrigações pecuniárias, prevalecia ainda o respeito à garantia da responsabilidade patrimonial. Tudo leva a crer que o elemento central para a virada no entendimento sobre a matéria tenha sido o trecho “para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”, inserido no art. 139, IV, do CPC.

De cara, duas objeções poderiam ser feitas à intepretação conferida por parte da doutrina e por alguns juízes e tribunais ao art. 139, IV, do CPC, no sentido de compreender nele uma autorização para a utilização de “meios de coerção”, também chamados de “meios de execução indireta”[3]. A primeira, refere-se ao termo “assegurar”, o qual poderia ser compreendido para abarcar exclusivamente medidas voltadas ao acautelamento, e não à satisfação do direito material; a segunda, refere-se ao termo “ordem judicial”, que restringiria o emprego de “medidas necessárias” somente para a “efetivação” de provimentos mandamentais (v.g, ordem para informar a localização de um bem determinado), e não para a efetivação dos próprios atos executivos, que, não por acaso, ocorre com o emprego de medidas sub-rogatórias. É claro que essas objeções renderiam reflexões que vão muito além do espaço desta coluna; no entanto, elas já denotam que a interpretação a favor da utilização de meios de coerção para o cumprimento de obrigações pecuniárias enfrenta contra-argumentos restritos às próprias palavras empregadas no art. 139, IV, CPC.

Não fosse isso, também seria possível contestar a tese em favor do emprego de medidas coercitivas no âmbito das obrigações pecuniárias com base na já referida garantia da responsabilidade patrimonial e no entendimento de que tais medidas teriam um caráter punitivo. Por sinal, a superação do vínculo pessoal do devedor, existente no direito romano, pelo vínculo patrimonial, pautou-se por uma mudança de concepção acerca do próprio caráter punitivo presente na execução e que se relacionava com a necessidade de assegurar a palavra dada. Daí o fim do emprego de sanções como a pena de morte, a venda do devedor no estrangeiro e a repartição do seu corpo entre diferentes credores, as quais, por óbvio, eram incapazes de oferecer a satisfação da obrigação[4]. Verifica-se, já aqui, uma possível relação de adequação entre os meios executivos e o cumprimento da obrigação; nem mesmo a efetiva ameaça à vida do devedor era suficiente para a satisfação da obrigação pecuniária, na medida em que suas possibilidades se esgotam na existência ou não de patrimônio.

A despeito dessas questões, que parecem cruciais no debate acerca do tema, é necessário esclarecer alguns equívocos a respeito da crítica que realizamos, em outras oportunidades, (aqui) e em outros espaços[5] (aqui), a respeito tanto do emprego de “meios coercitivos”, quanto do afrouxamento da legalidade no âmbito das obrigações pecuniárias, sendo um desses casos o da relativização das regras de impenhorabilidade (aqui). Em alguns comentários realizados à margem do texto, fomos acusados de estar defendendo o “direito ao calote”; em outros, como é o caso da crítica de Marcelo Picchioli publicada no site academia.edu, de defender uma espécie de “direito processual pró-devedor”, preocupado com a legalidade somente quando convém, reprovando “a conduta do exequente que deixa de receber seu crédito por um ilícito da parte contrária”.

Sem prejuízo das objeções já realizadas e de outras que possam ser feitas ao emprego dos mecanismos apontados (retenção de passaporte, suspensão de CNH, etc.) minha crítica tem sido endereçada, principalmente, à utilização das chamadas medidas executivas atípicas e aos seus limites (ou falta destes).

Há alguns dias, em sala de aula, comentei, numa espécie de exercício de futurologia, que, em breve, juízes determinariam que o devedor não saísse de casa nos finais de semana, evitando, assim, que gastasse todo o seu dinheiro e não pagasse suas dívidas; que em alguns casos, seria ordenado ao executado que realizasse, sob pena de multa, um curso de economia doméstica, para aprender a administrar melhor o seu dinheiro e, com isso, quitar seus débitos; que, em alguns casos de devedores recalcitrantes, chegaríamos ao extremo de determinar a utilização de tornozeleira eletrônica, para que o executado não saísse gastando por aí; algo bem próximo do Estado absolutista prussiano, no qual a lei estabelecida o quanto de cerveja poderia ser consumido em determinado período de tempo[6], porém, aqui, tudo por determinação judicial. Realidade ou premonição? Sinceramente, depois da notícia (ver aqui) de que, por não pagar uma dívida, o cantor Frank Aguiar foi, com base no art. 139, IV, do CPC, proibido de fazer shows sem prévia autorização judicial, é de se acreditar que os “casos mencionados” estejam próximos de se transformar (se já não se transformaram) em realidade. Conforme referido no início, tempos atrás seria um absurdo imaginar decisões como as que, atualmente, vem sendo proferidas no sentido de reter o passaporte do devedor ou suspender a sua CNH; então, dá para duvidar que logo estejamos proibindo o devedor de sair de casa nos finais de semana?

A crítica ao art. 139, IV, do CPC, está muito longe de ser uma ode contra a legalidade. O problema do referido dispositivo está no seu elevado grau de indeterminação, seja na utilização da expressão “medidas necessárias”, seja na falta de clareza acerca das situações em que elas poderão ser empregadas. Por sinal, conforme já foi mencionado em outros textos sobre o assunto, a crítica às cláusulas gerais está longe de ser uma exclusividade dos processualistas (por sinal, elas são muito pouco criticadas em tal setor da dogmática jurídica). Um dos melhores exemplos de leitura crítica acerca do tema pode ser encontrado na tese de livre docência de Otavio Luiz Rodrigues Jr., na qual, em algumas passagens, faz-se menção ao chamado “mal de Hedemann”, em alusão ao clássico “A fuga para as cláusulas gerais: um perigo para o Direito e Estado” de Justus Wilhelm Hedemann[7]. Por óbvio, não se trata de negar o caráter indeterminado do direito e o que, em outro ensaio, foi denominado de “contingência ontológica do direito”[8]. O que se está questionando – na linha de autores de escol, como é o caso de Araken de Assis, uma das maiores autoridades em matéria de execução – é a utilização de medidas executivas atípicas, seus riscos e possível inconstitucionalidade[9].

Nessa linha, a crítica à utilização do art. 139, IV, do CPC, para determinar, por exemplo, as já mencionadas medidas coercitivas, está muito longe de ser uma crítica à legalidade, mas (a) à técnica legislativa adotada (medida executiva atípica) – destacando-se sua possível inconstitucionalidade – e (b) à fundamentação habitualmente utilizada quando da aplicação do referido dispositivo, alicerçada em argumentos metajurídicos, como se o juiz estivesse em posição de reprovar moralmente a conduta do devedor e, a partir daí, adotar meios coercitivos para forçá-lo a cumprir uma obrigação pecuniária. Esse tipo de fundamentação descrita na letra “b” é um reflexo da técnica legislativa referida na letra “a”.

Não há, pois, na crítica realizada ao art. 139, IV, do CPC, uma “defesa do direito ao calote”. Também não se pode dizer que é isso que defendi quando, partindo da perspectiva do garantismo processual, sustentei o respeito às regras de impenhorabilidade do salário (aqui). Particularmente, considero bastante complacente com o devedor o limite de 50 salários mínimos estabelecido no art. 833, §2.º, CPC. No entanto, trata-se de um limite político, cabendo, pois, ao legislador reduzir ou ampliar essa limitação, gostemos ou não. Juízes e legisladores são seres humanos como quaisquer outros, porém, para exercer suas funções e decidir, na arena política, os legisladores estão constantemente pressionados pela vontade dos seus eleitores, o que não acontece com os juízes, que, para não decidirem livremente – já que não sofrem o mesmo tipo de pressão que o legislador – devem estar limitados pelo direito positivo. Relativizar as regras de impenhorabilidade claramente estabelecidas em lei (senão por meio de controle de constitucionalidade) é admitir que cada juiz decida conforme seu sentimento de justiça, seu gosto pessoal, sua inclinação política, etc.

Também duvido que algum adepto do “garantismo processual” considere que a tutela jurisdicional prestada pelo Estado-juiz ao credor tenha que ser inefetiva ou inadequada ao direito material posto em causa. Apenas para ficarmos com alguns exemplos de manifestações nitidamente garantistas, na “Declaración de Azul” (2008), o processo é visualizado como um garantidor da vigência efetiva dos direitos subjetivos privados das pessoas frente aos tribunais, ao passo que, na moção de Valência (2006), ele é tratado como uma garantia do modo como devem de ser tutelados os direitos dos indivíduos. É verdade que o garantismo processual construído pela doutrina brasileira tem dado ênfase para uma elementar noção de processo como garantia contrajurisdicional. Porém, essa doutrina também tem enfatizado que o processo é garantia da liberdade (que se desdobra em freedom e liberty[10], ou liberdade positiva e negativa[11]), conferindo, pois, às partes (ao autor e ao réu) as possibilidades de agir no exercício dos seus poderes, faculdades, ônus, direitos e deveres processuais, e de não sofrer ingerências indevidas por parte do detentor do poder jurisdicional.

O problema dos “limites políticos da execução” é, como o próprio nome diz, um problema de política legislativa. Ao invés de oferecer subterfúgios para que o juiz possa driblar a legalidade, o papel da doutrina, no ponto, é oferecer subsídios para que, no processo legislativo, sejam realizadas reformas capazes de tornar a tutela jurisdicional mais efetiva, sem, com isso, solapar garantias fundamentais.

Por outro lado, quanto aos “limites práticos da execução”, que muitas vezes são aparentes, pois obnubilados por ardis e manobras fraudulentas utilizadas pelo exequente, cabe a doutrina construir uma dogmática efetivamente capaz de ter eco na prática judiciária brasileira para, com base nos mecanismos previstos em lei, desfazer tais atos e aplicar as sanções devidas. Caso, por essa via, não seja possível tonar efetiva a tutela jurisdicional executiva, não há outro caminho senão trabalhar em prol de reformas legislativas desenvolvidas a fim de garantir, no âmbito do procedimento civil, que a tutela jurisdicional constitua um serviço prestado, de modo efetivo, ao cidadão, independentemente da posição processual por ele ocupada.


[1] RESTAINO, Nicola. L'esecuzione coattiva in forma specifica. Roma: Il nuovo diritto, 1948, p. 2.

[2] Nesse sentido, logo nos primeiros meses de vigência do atual CPC, STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#author. Acesso em 02/07/2019.

[3] Não é nosso objetivo, aqui, polemizar acerca da nomenclatura utilização pelo Código e muito menos sobre o seu acerto ou desacerto. Nesse sentido, ver ASSIS, Araken de. Manual da execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 185.

[4] RESTAINO, Nicola, Op. Cit.

[5] Também em RAATZ, Igor. ANCHIETA, Natascha. Da capacidade de invenção dos juristas brasileiros e o fenômeno da transformação das ações condenatórias em mandamentais: ou o que Pontes de Miranda e Ovídio Baptista da Silva diriam a respeito das leituras (equivocadas) do art. 139, IV, do Código de Processo Civil brasileiro. Revista de processo. Ano 43. Vol. 276, fevereiro de 2018. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 153-181.

[6] Sobre essa característica do Estado absolutista e sua relação com os recursos, ver aqui.

[7] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019, p. 18.

[8] RAATZ, Igor. PINTO, Gerson Neves. DIETRICH, William Galle. Os precedentes vinculantes e o problema da contingência ontológica do Direito. Novos estudos jurídicos. v. 24, n. 1. Vale do Itajaí: UNIVALI, 2019, p. 2-21.

[9] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro, volume II: parte geral: institutos fundamentais. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 936-937.

[10] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de “liberdade” [liberty]. Empório do direito. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty. Acesso em 02/07/2019.

[11] RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 92-97.

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    é pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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