Opinião

A razão jurídica e a paixão política — e o caso a ser julgado pela 2ª Turma do STF

Autor

  • Ruy Samuel Espíndola

    é advogado publicista professor de Direito Eleitoral e de Direito Constitucional e membro da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej).

5 de julho de 2019, 6h58

Precisamos retomar a racionalidade do Direito e a sobriedade que nos deve fazer considerar, em debate público, todos os lados de uma controvérsia.

Discordância jurídica não precisa ser repugnância política; objeção legal não precisa ser retaliação ideológica; contrariedade de julgamento não precisa ser subjugação do ponto de visto diverso. Um ponto de vista jurídico, sobre processos judiciais que envolvam pessoas de evidente importância na cena política nacional, não pode estar contaminado sobre as eventuais consequências que venha a ter sobre elas ou seus adversários no campo ideológico ou político-institucional.

A razão, preponderantemente, deve presidir nossos julgamentos.

E, no Direito, o critério da razão é a Constituição e as leis. E o Direito posto não deve ser aplicado de acordo com a voz das ruas, das redes sociais, da opinião pública, da paixão política. Juiz não é mandatário do povo, e sim da lei.

A regra de Direito não deve atender aos ventos da direita, do centro ou da esquerda. É supra ideológica em relação aos interesses envolvidos em cada uma dessas correntes de pensamento. Pode ter sido inspirada, quando de sua positivação pelas assembleias legislativas, mais à direita, mais à esquerda ou ao centro. Mas depois de promulgada dever ser cumprida pelo aplicador da lei sem quaisquer considerações de índole política, que possam favorecer ou desfavorecer instituições, pessoas, partidos ou programas ideológicos.

Temas jurídicos, ainda que envolvidos com pessoas da mais alta densidade política, do mais alto aplauso ou repúdio da opinião pública, como são Moro e Lula, devem continuar sendo temas jurídicos, resolvíveis por critérios jurídicos, com a racionalidade do Direito que inadmite juízo de conveniência e oportunidade, e sim exige juízo de legalidade. Em processos judiciais, absolver ou anular não é postura da esquerda e nem condenar é postura da direita. A regra, a prova, o juiz, o processo servem a todos os cidadãos e cidadãs, independentemente de suas colorações partidárias ou preferências políticas.

Regras penais se aplicam à generalidade das pessoas imputáveis. Regras de suspeição e impedimento na atividade judicial ou ministerial aplicam-se a todos os juízes e membros do Ministério Público, sem qualquer exceção, ainda que diante dos mais fervorosos interesses em debate público.

Processo justo, em uma democracia constitucional, é processo segundo as regras do jogo processual pré-estabelecido pela ordem jurídica. Se regras que estabelecem hipóteses de suspensão judicial forem transgredidas, cabe às autoridades judiciais avaliarem, com independência, sobriedade e justiça, se será o caso de se reconhecer ou não a suspeição de um juiz, diante do Direito vigente e das provas apresentadas.

Tema de suspeição de juiz não é tema de culpa ou inocência do acusado. A suspeição do juiz não leva necessariamente à absolvição do acusado. O acusado pode ser culpado, mas precisa ter um processo justo, diante de um juiz imparcial. E a imparcialidade do juiz é equidistância das partes, sem assumir o lado de quaisquer delas como sendo o seu próprio.

Diálogo entre juízes, promotores e advogados é direito/dever de cada um desses atores, que se realiza na mutualidade de funções desempenhadas no processo judicial. E tudo isso é feito se não publicamente, nos autos de processo, mas republicanamente, sem qualquer tema que deva ou possa ficar segregado a apenas uma das partes e o juiz.

No tema que seria solvido em 25 de junho, mas que foi adiado para agosto, pela 2ª Turma do STF, em Habeas Corpus interposto pela defesa de Lula, no qual se busca o reconhecimento da suspeição do juiz Moro e a consequente anulação de suas decisões tomadas em desfavor do ex-presidente, que prevaleça o Direito e a análise isenta da prova e de sua valia para os fins próprios ao devido processo penal em uma democracia amalgamada com o Estado de Direito.

Se houver suspeição, e esta for reconhecida no processo, haverá nulidade e a consequente liberdade do condenado. Se não for reconhecida a parcialidade judicial, tudo ficará como está.

A impetração do Habeas Corpus foi muito antes de o Intercept Brasil ter levado ao conhecimento da opinião pública pretensos diálogos entre os membros da força-tarefa da "lava jato" e o juiz processante.

Muitos outros argumentos[1] e respectivas comprovações e refutações estão deduzidas desde há muito, pela acusação e defesa. Os pretensos diálogos podem fortalecer argumentos da defesa do ex-presidente ou serem anódinos na opinião dos juízes do Supremo, pelo argumento da desvalia da fonte, não conhecimento do tema por supressão de instância etc.

Mas o que diz o Direito Processual Penal sobre tudo isso? A doutrina dos juristas? A jurisprudência dos nossos tribunais? E a experiência daqueles que militam na advocacia criminal, na magistratura penal, na acusação pública? Isso deve ser respondido com sobriedade e sem os impulsos passionais de torcidas de times de futebol.

Eu apresentarei as minhas respostas, segundo os critérios do Direito. Conheço amiúde apenas os pretensos diálogos e superficialmente os demais argumentos dos autos. Assim ela será incompleta, precária e sem concretude no estudo integral da causa. É resposta de republico preocupado com o futuro da racionalidade do Direito em solo pátrio:

  • é corrente na doutrina e na jurisprudência brasileira que mesmo provas ilícitas, obtidas de maneira ilegal ou imoral, caso beneficiem a posição jurídica de liberdade do réu (favor rei, favor libertatis), podem e devem ser reconhecidas válidas para efeito de produzir a nulidade do processo condenatório ou a inocência do acusado, condenado ou não;
  • independentemente da legalidade da forma em que foram obtidos os pretensos diálogos, se eles forem reconhecidos verdadeiros pelos juízes, eles não revelam “conversas normais” entre juiz e acusação. Segundo o meu olhar e análise sobre tudo o que li, nos diálogos apresentados ao público, há orientação judicial à acusação, aconselhamento com vista a determinado resultado que em nada seria benéfico à defesa e somente privilegiaria a acusação. Se verdadeiros os seus teores, enfatizo, revelam caso patente de parcialidade judicial e suspeição ministerial;
  • a impugnação de parcialidade e suspeição no caso é antiga. As pretensas revelações são posteriores. São fatos velhos, mas “provas novas”, que a parte a quem poderia beneficiar tomou conhecimento somente agora. Esses fatos velhos, como provas novas, são “fatos supervenientes” e podem e devem ser conhecidos e julgados pelo juízo de impetração do Habeas Corpus;
  • caso haja reconhecimento da parcialidade do juiz, poderá ser reconhecido também a parcialidade do acusador, o que poderá levar à anulação completa do processo do triplex; até a propositura da denúncia seria afetada, atingindo, reflexa e logicamente, todas as decisões do processo, tanto a que condenou em primeiro grau como as que a confirmaram no TRF-4 e no STJ;
  • caso se vá tão fundo no reconhecimento da invalidade do processo, desde sua origem, isso não significa imunidade para o acusado, pois poderá voltar a responder ao processo por novo impulso do Ministério Público, que suscitará novo julgamento do Judiciário;
  • enfim, reconhecida a parcialidade, haverá nulificação do processo e libertação do condenado, mas não sua imunidade ou impunidade.

Vale lembrarmos pensamento célebre do justice William O. Douglass, quando do julgamento, pela Suprema Corte americana, do caso Brady v. Maryland: “A sociedade ganha não apenas quando os culpados são condenados, mas também quando os julgamentos criminais são justos. Nosso sistema de administração da Justiça sofre quando um acusado é tratado com injustiça”.

Sei que meu ponto de vista jurídico não é isolado nem majoritário. Ouçamos então a resposta do STF, e que seus juízes tenham a independência moral e intelectual, a equidistância das partes e da política, para decidirem segundo o Direito e as provas constantes dos autos, sem receio do resultado de suas decisões perante a opinião pública insuflada pela paixão política.


[1] O Informativo 944 do STF, de 4/7/2019, explicita os fundamentos do Habeas Corpus:
“DIREITO PROCESSUAL PENAL – NULIDADES
Habeas corpus e alegação de suspeição de magistrado
A Segunda Turma, por maioria, deliberou adiar o julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ e em favor de ex-presidente da República, no qual se pleiteia a decretação de nulidade da ação penal que culminou na sua condenação, sob o fundamento de suspeição do juiz federal de primeira instância prolator da sentença. (…).
Os impetrantes alegam que a parcialidade judicial consistiria:
(i) no deferimento da condução coercitiva do paciente e de seus familiares, sem prévia intimação para oitiva pela autoridade policial;
(ii) na autorização para a interceptação de ramais telefônicos pertencentes ao paciente, a familiares e advogados, antes de adotadas outras medidas investigativas;
(iii) na divulgação do conteúdo de áudios captados em interceptações telefônicas autorizadas;
(iv) no momento histórico em que tais provimentos jurisdicionais foram exarados, quando as principais figuras públicas hostilizadas pelos apoiadores do impedimento eram a ex-presidente e o paciente;
(v) na condenação do paciente, reputada injusta pela defesa técnica; (vi) na atuação impeditiva ao cumprimento da ordem de soltura do paciente exarada por desembargador, em decisão liminar proferida nos autos de outro writ; e
(vii) na aceitação do magistrado prolator da sentença condenatória ao convite feito pelo presidente da República eleito em 2018 para ocupar o cargo de ministro da Justiça, a indicar que toda a sua atuação pretérita estaria voltada a tal desiderato.
O ministro Gilmar Mendes (…) referiu-se a [viii] novas circunstâncias (…). Enfatizou recente divulgação, por sítio eletrônico, de diálogos entre o magistrado de primeira instância e membro do Ministério Público que revelariam as minúcias das circunstâncias históricas em que ocorreram os fatos discutidos no writ. (…).
(…). Considerou a plausibilidade jurídica do pedido a partir dos citados fatos novos apontados pela defesa, mas, essencialmente, dos elementos já constantes da impetração desde a sua apresentação original. Destacou, entre os fatos que a defesa elenca como determinantes da parcialidade do magistrado de primeiro grau, a interceptação telefônica de diversas pessoas relacionadas ao paciente, inclusive de conversas entre o paciente e seus advogados.
(…).

HC 164493/PR, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 25.6.2019. (HC-164493)”
Assim, se verifica que são oito os fundamentos.
E o material divulgado pelo The Intercept Brasil constitui o último deles. O deduzido após a impetração.

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