Opinião

Improbidade e perda da função pública (a do ato ou a atual?)

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5 de julho de 2019, 11h01

Spacca
O parágrafo 4º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, ao enunciar as sanções passíveis de aplicação em razão de ato de improbidade de administrativa, contempla a perda da função pública como, talvez, uma das punições mais gravosas. A regência atual da ação de improbidade administrativa, em linha com aquele dispositivo constitucional, ecoou a previsão no artigo 12, I a IV, da Lei 8.429/1992, instrumentalizando a alta carga de censura estatal a ilícitos daquela natureza.

Há um duplo viés na sanção de perda de função: o caráter de pena é incontrastável, mas, mais que isso, há o expurgo do faltoso que vilipendiou a probidade, desfazendo-se seu vínculo com a administração por ele vitimada de modo a que se previna novo ilícito imediato. Claro que a pena não poderia ser de natureza perpétua e novo vínculo poderá futuramente vir a ser estabelecido com o indivíduo que esteja no gozo de seus direitos políticos, mas o tempo terá sido, então, um fator regenerador somado ao caráter pedagógico da punição sofrida.

Ao longo dos últimos anos, sem embargo, a pena de perda da função pública tem inspirado alguns debates, merecedores de nossa abordagem. Um deles versou sobre a amplitude da locução “função pública”, isto é, sobre se a perda se limitaria a eventual função de confiança ou a cargo em comissão ou se atingiria o próprio cargo público do servidor efetivo. A despeito da controvérsia ainda comportar algum ruído, o Superior Tribunal de Justiça, por julgado da 1ª Seção, relatado pelo ministro Mauro Campbell, dá sinais de, com fundamento no artigo 2º, caput, da lei, já haver atingido uma definição a respeito:

Para efeitos da Lei de Improbidade Administrativa, o conceito de função pública alcança conteúdo abrangente, compreendendo todas as espécies de vínculos jurídicos entre os agentes públicos, no sentido lato, e a Administração, a incluir o servidor que ostenta vínculo estatutário com a Administração Pública, de modo que a pena de perda de função pública prevista na Lei 8.429/1992 não se limita à exoneração de eventual cargo em comissão ou destituição de eventual função comissionada, alcançando o próprio cargo efetivo[1].

Questão mais complexa, porém — e ainda indefinida, a nosso ver —, diz respeito ao alcance da sanção sob outro prisma.

É que o artigo 20, da já referida Lei 8.429/1992, reza que a “perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”, daí defluindo um aspecto de índole prática, a fazer nascer o dilema: sabido que os processos judiciais naturalmente tomam tempo, não raro o autor de ato de improbidade administrativa não mais ocupará o cargo que preenchia quando da prática do ilícito. Se o agente não mais possuir liame com o poder público, problema não há; por outro lado, e se o indivíduo estiver no exercício de outra função? Se for ocupante de cargo diverso? Se houver sido eleito para mandato distinto? Se houver se aposentado, passando à inatividade? Noutras palavras, a sanção de perda se atrelaria à função-instrumento do ilícito ou ao agente-autor da improbidade?

Parcela da doutrina, calçada numa exasperação da tutela da probidade, sustenta que a prática do ato de improbidade fulmina a confiança e contamina com a pecha da imoralidade a própria pessoa do agente. Uma interpretação literal e restritiva da lei, por conseguinte, abriria campo para manobras e para o cometimento de novos ilícitos. É essa a posição defendida, entre outros[2], por Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:

Em razão da mencionada incompatibilidade entre a personalidade do agente e a gestão da coisa pública, o que se tornou claro com a prática do ato de improbidade, deve a sanção de perda da função, quando aplicada, extinguir todos os vínculos laborais existentes junto ao Poder Público. O art. 12, em seus três incisos, fala genericamente em perda da função, que não pode ser restringida àquela exercida por ocasião da prática do ato de improbidade, isto sob pena de se permitir a prática de tantos ilícitos quantos sejam os vínculos existentes, em flagrante detrimento da coletividade e dos fins da lei. Ainda que o agente exerça duas ou mais atribuições, de origem eletiva ou contratual, ou uma função distinta daquela que exercia por ocasião do ilícito, o provimento jurisdicional haverá de alcançar todas, determinando a completa extinção das relações existentes entre o agente e o Poder Público[3].

Como se lê no trecho acima, a contaminação indelével do autor de ato de improbidade alcançaria todo e qualquer vínculo atual com a administração, ainda que distinto da função do momento do ato e mesmo que isso representasse a perda de cargo diverso acumulado licitamente. Mais além ainda, com base naquele mesmo racional, os mesmos autores apontam que o servidor que, no curso da ação, passasse à inatividade deveria ter sua aposentadoria cassada como decorrência da sanção de perda da função:

Tratando-se de agente público que, por ocasião da prolação da sentença condenatória, esteja na inatividade, haverá de ser cancelado o vínculo de ordem previdenciária existente com o Poder Público, o qual nada mais é que a continuidade do vínculo existente por ocasião da prática dos atos de improbidade, tendo ocorrido unicamente a modificação da situação jurídica de ativo para inativo[4].

Pensamento diverso é o de Calil Simão, aqui representante da corrente diversa[5], no sentido de que a norma punitiva não há de comportar interpretação extensiva, sendo desproporcional a ampliação desmedida e indefinida da sanção para todo e qualquer vínculo ulterior que o infrator pudesse vir a ter com o poder público:

(…) o vínculo de trabalho a ser rompido é o do momento da prática do ato ímprobo, porque essa sanção pressupõe que o vínculo ainda exista. É desarrazoado o argumento de que qualquer vínculo com o poder público pode ser rompido. Não compartilhamos, consequentemente, da posição de que o agente perde toda e qualquer função pública que estiver exercendo no momento da condenação.

Por mais que o indivíduo tenha errado, seria injusto romper um vínculo que não tenha relação com o ato impugnado como ímprobo. Sem mencionar que a perda de função não se confunde com o cancelamento da aposentadoria, que nem mesmo foi prevista pelo legislador.

A discussão transcendeu a academia e se impôs na realidade, merecendo enfrentamento por parte do Superior Tribunal de Justiça, que, nada obstante, atualmente diverge sobre o tema no âmbito das turmas integrantes de sua Primeira Seção.

A 2ª Turma, é fato, possui jurisprudência firmada já há algum tempo pela perda da função ao tempo da formação da coisa julgada condenatória, seja essa função qual for e ainda quando distinta daquele em razão da qual cometido o ilícito:

(…) a sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível[6].

Ocorre que aquele colegiado foi além, não somente se cingindo a atividade desempenhada, mas também avançando sobre inatividade do agente faltoso, não se sensibilizando com o argumento da ausência de previsão legal da pena de cassação de aposentadoria:

(…) a ausência de previsão expressa da pena de cassação de aposentadoria na Lei de Improbidade Administrativa não constitui óbice à sua aplicação na hipótese de servidor aposentado, condenado judicialmente pela prática de atos de improbidade administrativa. Trata-se de consequência lógica da condenação à perda da função pública, pela conduta ímproba, infligir a cassação da aposentadoria ao servidor aposentado no curso da Ação de Improbidade[7].

O que se percebe, por conseguinte, é que a 2ª Turma, comungando dos principais argumentos da doutrina, fiou-se, à unanimidade e sob o pálio da defesa da moralidade administrativa, numa interpretação teleológico-sistemática para depreender da lei de improbidade uma ampliação que, forçoso reconhecer, nela não se encontra escrita.

Diversamente tem se orientado a 1ª Turma, adotando uma interpretação estrita da lei sob o primado do artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, ou seja, não vislumbrando a possibilidade de pena que não cominada prévia e legalmente, rechaçando, assim, tanto a perda de cargo que não o exercido para cometimento do ilícito quanto a cassação de aposentadoria[8]: “as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva”[9].

Recentemente, a ministra Regina Helena Costa buscou revisitar a questão no seio da 1ª Turma em recurso de sua relatoria, expondo a dissonância de entendimentos entre os colegiados:

No tocante à reprimenda de perda do cargo, em que pese haver percepções contrárias de membros desta Turma sobre a questão, pondero ser necessária uma reflexão em relação à interpretação restritiva que se vem dando ao art. 12 da LIA, no sentido de que essa sanção não está relacionada ao cargo ocupado pelo agente quando do trânsito em julgado da sentença, mas sim àquele que serviu de instrumento para a prática da conduta caracterizada como ímproba. (…)
Penso que entendimento diverso revela desconexão entre os ditames legais apontados e a realidade, especialmente quando a discussão posta diz respeito à perda de cargo público provido mediante mandato eletivo, porquanto as ações que buscam apurar o cometimento de ato ímprobo não costumam ter o seu trâmite concluído em menos de 4 (quatro) anos, período de duração da maioria dos mandatos eletivos no Brasil. Dessarte, creio que a orientação no sentido de a sanção da perda do cargo público recair exclusivamente sobre aquele que serviu de instrumento para a prática da conduta caracterizada como ímproba, não alcançando o ocupado quando do trânsito em julgado da ação, compromete o objetivo maior da Lei n. 8.429/92, que é o de impedir a permanência daquele agente cujo comportamento evidenciou-se incompatível com os ditames da probidade na Administração, qualidade essencial para a garantia de um Estado Democrático de Direito”.

Em que pesassem aqueles argumentos, e a ressalva de entendimento pessoal do ministro Sérgio Kukina, prevaleceu no colegiado posição diversa, capitaneada pelo ministro Gurgel de Faria:

A Primeira Turma do STJ orienta-se no sentido de que as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva, motivo pelo qual a sanção de perda da função pública do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória, não pode atingir cargo público diverso ocupado pelo agente daquele que serviu de instrumento para a prática da conduta ilícita[10].

Atualmente, aguardam julgamento pela 1ª Seção do STJ embargos de divergência opostos nos autos do REsp 1.701.967/RS, do REsp 1.682.961/RN, do REsp 1.423.452/SP, do REsp 1.424.550/SP e do REsp 1.766.149/RJ. Dados os fatos de que a 1ª Turma tem decidido à unanimidade e de que, na 2ª Turma, a ministra Regina Helena possui entendimento alinhado com aquele órgão (valendo ainda lembrar a ressalva de posição pessoal registrada pelo ministro Kukina no REsp 1.766.149/RJ), existe uma perspectiva bastante favorável a que prevaleça, na seção, o entendimento da 1ª Turma.

Na próxima semana, exporemos nossa posição sobre o assunto e analisaremos o tratamento dado à questão pelo Projeto de Lei 10.887/2018, em curso na Câmara dos Deputados.


[1] STJ, MS 21.757/DF, DJe de 17/12/2015. No mesmo sentido: “A sanção relativa à perda de função pública prevista no art. 12 da Lei 8.429/92 tem sentido lato, que abrange também a perda de cargo público, se for o caso, já que é aplicável a 'qualquer agente público, servidor ou não' (art. 1º), reputando-se como tal ‘(…) todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior’ (art. 2º)”. REsp 926.772/MA, DJe 11/05/2009.
[2] MEDEIROS, Sergio Monteiro. Lei de improbidade administrativa: comentários e anotações jurisprudenciais. São Paulo: Juarez Oliveira, 2003, p. 128; OSÓRIO, Fábio Medina. As sanções da Lei 8.429/92 aos atos de improbidade administrativa. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, vol. 766, p. 96; MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 364.
[3] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 447-448.
[4] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 447-448.
[5] É também a posição de FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 304.
[6] STJ, REsp 1.297.021/PR, DJe de 20/11/2013. Nesse sentido: STJ, AgInt no REsp 1.701.967/RS, DJe de 19/02/2019.
[7] STJ, EDcl no REsp 1.682.961/RN, DJe de 26/04/2019. Ainda nesse sentido: STJ, AgInt no REsp 1.781.874/DF, DJe de 14/05/2019; AgRg no AREsp 826.114/RJ, DJe de 25/05/2016; REsp 1.637.949/MS, DJe de 17/06/2019.
[8] “(…) o acórdão embargado, ao agravar a sanção aplicada ao embargante, consubstanciada na perda do cargo público, impôs penalidade não prevista na Lei n. 8.429/1992, (…) não sendo lídimo deduzir que a cassação da aposentadoria constitui mera decorrência da perda da função pública, à míngua de previsão legal expressa.” EDcl no REsp 1556140/SE, DJe 06/11/2018. No mesmo sentido: AgInt no REsp 1643337/MG, DJe 26/04/2018.
[9] AgInt no REsp 1.423.452/SP, DJe 13/03/2018. No mesmo sentido: "O art. 12 da Lei 8.429/92 (…) não contempla a cassação de aposentadoria, mas tão só a perda da função pública. As normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva”. REsp 1.564.682/RO, DJe 14/12/2015.
[10] REsp 1.766.149/RJ, DJe 04/02/2019.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

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    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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