Opinião

Imparcialidade e "troca de ideias" entre juízes e procuradores das partes

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5 de julho de 2019, 11h42

Advertência inicial para o gentil potencial leitor: se não estiver disposto a refletir sobre ideias das quais eventualmente discorde; e se não estiver disposto a debate conceitual inspirado — não mais do que isso — no momento pelo qual tem passado o país nos últimos anos, por favor, com os mais sinceros e antecipados agradecimentos e cumprimentos do subscritor, sugere-se que não vá adiante. É que, à míngua de tal disposição, a leitura poderá despertar indesejáveis efeitos colaterais, como sensação de perda de tempo ou, pior, sentimentos negativos. Embora se diga que professores têm “corpo fechado”, não convém arriscar… Portanto, para o bem geral, convém evitar tudo isso; e deixar claro, desde logo, que as considerações que seguem não são juízos feitos em relação a pessoas nem a situações concretas.

Feita a advertência, vamos lá.

Conta-se, em tom de anedota, passagem — que consta ser verdadeira — na qual um advogado, ao despachar com um dos mais preparados e notáveis desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, teria dito que gostaria de “trocar ideias” sobre o tema de certo processo; ao que teria ouvido a seguinte resposta: “doutor, vamos fazer assim: o senhor fica com suas ideias e eu fico com a minhas”…

Certamente, cada um pode interpretar o ocorrido como quiser. Uma leitura é a seguinte: descontado eventual mau humor do magistrado, ele não se recusou a ouvir as ponderações do advogado e, a seu tempo, dar-lhes o crédito e a resposta adequados, mediante decisão proferida nos autos. O que fez sua excelência foi estabelecer um saudável limite. Buscou-se, quiçá talvez sem maior sutileza, deixar claro que o diálogo entre juízes e procuradores das partes — algo ordinariamente salutar e rigorosamente lícito — deve, contudo, pautar-se por certa liturgia. Juízes e procuradores das partes não dialogam como compadres ou mesmo como integrantes de um mesmo time. Daí se dizer que eles não trocam ideias: cada um tem as suas, na medida em que desempenham funções diversas e inconciliáveis — quem acusa (ou pede) não julga; e vice-versa. As ideias de cada um são postas nos autos ou, quando menos, de alguma maneira oficializadas. Mas, de todo modo, não se aglutinam.

O formalismo, empregado em doses adequadas, preserva as relações e, por isso, é correta a mensagem transmitida de que, entre juízes e procuradores das partes, não deve haver — sequer parecer haver — algum grau de intimidade que possa sugerir suposta comunhão de ideias estabelecida no decorrer do processo, isto é, durante a gestação da decisão da controvérsia. Procuradores das partes não pedem opinião de juízes sobre temas das causas em que atuam. Procuradores das partes não se orientam por comentários ou conselhos de juízes relacionados ao objeto do processo em que oficiam. Pelo menos, não deveriam.

Não se trata de formalismo vazio, mas de preservar algo que é sagrado no exercício da jurisdição: não basta que o magistrado seja imparcial. Como na sempre lembrada referência à mulher de César, é preciso que ele assim também se apresente publicamente no exercício da função. Assim se passa na arbitragem e assim, como maior razão, deve funcionar no Judiciário.

Contudo, como apontado inicialmente, acontecimentos relevantes do país, já não tão recentes (o que se diz para reiterar a desvinculação com um fato concreto e específico), parecem sugerir que, cada vez mais, ganha corpo convicção substancialmente diversa da acima exposta.

Porque o país foi assaltado pela criminalidade organizada; porque a corrupção ganhou proporções endêmicas; porque era preciso desalojar do poder quem dele se apropriara para lesar a coisa pública, então, por tudo isso e mais alguma coisa, importantes e valorosas cabeças pensantes — pelas quais se nutre sincero respeito e, em relação a algumas, profunda admiração — passaram a aceitar como normal e corriqueira a ideia de que procuradores das partes (ou, mais precisamente, de uma delas) e julgadores podem, sim, trocar ideias a respeito da plausibilidade de teses acusatórias, sobre quem, quando e como se investiga e se processa. Repita-se a cada passo: não se está a dizer que isso ocorreu; o que se está a indagar é, diante da possibilidade de isso ter ocorrido, qual deveria ser a consequência e a reação da sociedade.

Ninguém põe em dúvida a gravidade da situação e a dificuldade de combate eficiente à criminalidade. Contudo, por mais pusilânime que seja a ilicitude, ela não pode ser combatida na mesma moeda. No ambiente civilizado de um Estado Democrático de Direito, a atividade sancionadora exige esforço, ponderação, competência e destreza de cada um dos agentes envolvidos na persecução. Sobretudo, a repressão ao ilícito exige apuro técnico em matéria processual. Não se julga com base no clamor popular. Crises de representatividade popular não se resolvem por meio de decisões judiciais, que não devem ser canal de interpretação da vontade do povo — para o que há mecanismos mais adequados, ainda que imperfeitos. O apoio à repressão a ilícitos deve vir da lei e dos órgãos constituídos sob a égide de postulados democráticos; nunca de suposto apoio das massas (vide advertência inicial, por favor).

Talvez, uma parte do problema esteja em divisar no Ministério Público uma imparcialidade que a instituição, sem desdouro algum, não tem quando atua como parte. Quando ela atua na posição de autor (não apenas de fiscal do ordenamento), não é possível tratá-la como parte imparcial — conceito que genial construção doutrinária equiparou à tentativa de reduzir um círculo a um quadrado: a oposição das partes é inerente ao debate judicial. Se o Ministério Público agisse rigorosamente de forma imparcial, não haveria necessidade de um juiz para decidir sobre o objeto do processo, sob pena de verdadeira redundância. Quando referida instituição (pelos agentes públicos que a integram) decide ir a juízo, há aí uma tomada de posição acerca do que se reputa ser uma crise e sobre o que deve ser a respectiva solução. Daí porque é compreensível que o Ministério Público — como qualquer outro autor de uma demanda — acaba empenhado em demonstrar o acerto da tese exposta na inicial. Aliás, justamente porque tal atuação, conquanto marcada por impessoalidade, não é imparcial, o Ministério Público se submete ao regime de distribuição do ônus da prova, encargo do qual não se desincumbe simplesmente por essa condição.

A perspectiva inversa é correta e induvidosa: assim como não se pode ter por imparcial a atuação do Ministério Público (quando autor de demanda), não se pode conceber que o julgador possa de alguma se consorciar a — ou interferir em — atividade que é tipicamente parcial.

Então, admitir que essa conjugação pudesse ocorrer seria incidir, sem que se percebesse, nas mesmas críticas feitas ao estado de coisas que tão (justa e) ardorosamente se deseja superar: tão grave quanto burlar a lei para lesar o próximo ou o patrimônio público é burlar a lei para justificar uma mais eficiente repressão à ilegalidade. Quem, no plano das ideias, justifica a conjugação de esforços entre juízes e procuradores das partes em nome do combate ao patriarcalismo e ao patrimonialismo talvez não perceba que a “troca de ideias” entre juiz e procurador da parte, em última análise, acabaria por ser uma triste manifestação de nossas raízes, do homem cordial que nos habita, acostumado ao ambiente íntimo, que transforma ambientes públicos em privados — ainda que com a melhor das intenções. Uma coisa seria tão pouco republicana quanto a outra…

Novamente: estas considerações não são nem poderiam ser exame desta ou daquela situação concreta nem da conduta de fulano ou de beltrano, ainda que, como dito, inspirem-se na realidade brasileira, não exatamente recente. Seria leviano fazer juízos sobre fatos não conhecidos de forma completa, de fonte direta e confiável. Nem por isso, o ambiente criado em torno da realidade nacional pode ser ignorado, nem por isso se pode aceitar, sem respeitosa e humilde resistência, que, conceitualmente falando, “troca de ideias” entre juízes e acusadores seja algo normal.

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