Opinião

Garantias contratadas precisam entregar aos credores a segurança esperada

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3 de julho de 2019, 6h30

É inegável que a dívida é um dos maiores problemas sociais de toda a história da humanidade. Essa problemática é observada e tratada por todas as civilizações que já ocuparam e ocupam o planeta, até mesmo os livros considerados sagrados por muitos dão tratamento ao assunto, o que demonstra que estamos diante de um problema que existe desde que o mundo é mundo.

Na Roma antiga era comum que devedores e seus familiares se tornassem escravos de seus credores até que a dívida fosse liquidada, sendo que em alguns casos o credor poderia chegar ao ponto extremo de tirar a vida do devedor[1]. E assim foi por muitos anos até o advento da Lex Poetelia Papiria em 326 a.C., onde foi revogada a possibilidade de execução do devedor[2] em Roma, todavia, seu patrimônio passaria a responder pelo débito existente.

A toda evidência, o processo civilizatório da humanidade não poderia jamais conviver com tamanha barbárie. Essa evolução histórica e cultural da sociedade entendeu que o bem maior do ser humano é a sua vida e liberdade. Todavia, o problema das dívidas ainda prevalecia, o que levou as civilizações antigas ao próximo passo em busca de uma solução para o tema.

Era necessário que o credor tivesse uma garantia que, efetivamente, lhe assegurasse o recebimento de seu crédito. Era necessária uma garantia real (literalmente). A garantia de caráter pessoal (fiança) já não mais era suficiente para trazer esse conforto ao credor, era necessário algo a mais e, nesse contexto, surgiram as primeiras garantias reais na Roma antiga, onde o patrimônio do devedor responderia integralmente até a satisfação do débito.

No Brasil, vigoram os conceitos romanos das garantias pessoais e reais, sendo que a última teria o objetivo de conferir ao credor privilégio (totalmente lícito, diga-se) no recebimento do seu crédito. E aqui é importante esclarecer que ambas modalidades de garantia nascem de convenção das partes interessadas (credor e devedor), resultando em ato jurídico perfeito que goza, inclusive, de proteção constitucional[3].

Isso importa dizer que, uma vez estabelecida a garantia em contrato formal celebrado entre as partes interessadas e, desde que, revestidas de todas as formalidades legais, tal contrato não poderá jamais ser revogado antes de verificada sua finalidade, a saber, o cumprimento da obrigação garantida.

O Código de Processo Civil brasileiro fixou como regra geral que o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei[4]. Isso implica dizer que a inobservância das obrigações assumidas contratualmente pode resultar na responsabilização patrimonial do devedor para que a dívida seja satisfeita. Portanto, uma vez celebrado contrato com cláusula de garantia, seja pessoal ou real, fica o devedor obrigado a saldar a dívida perante o credor, sob pena de responder com o seu patrimônio, especialmente aquele entregue em garantia real.

Em se tratando de garantia real, o bem dado em hipoteca ou penhor está vinculado especificamente ao cumprimento da obrigação, assegurando ao credor a preferência sobre o preço apurado por ocasião da sua alienação, ainda que em execução judicial promovida por terceiro. Assim, é certo afirmar que todo instituto da garantia real foi concebido e desenvolvido para constituir garantia de fato, assegurando ao credor a prioridade no recebimento do crédito.

Além das garantias acima mencionadas, temos ainda o instituto da alienação fiduciária em garantia. Modalidade de direito real que transfere ao credor o domínio ou posse indireta do bem até cumprimento integral da obrigação. A diferença entre a hipoteca, penhor e alienação fiduciária reside exatamente na transferência da propriedade do bem alienado fiduciariamente ao credor pelo devedor, ao passo que a hipoteca e o penhor estabelecem apenas a preferência no recebimento dos valores obtidos pela venda do bem, não havendo transferência de propriedade.

O incomparável Pontos de Miranda ensinava há muito que “o direito real persiste enquanto persiste a dívida e depois, enquanto não se cancela o registro, se o há”[5]. Mas, aparentemente, a assertiva do mestre alagoano parece estar com os dias contados.

Importante que se diga que a Lei 11.101/05, que estabeleceu os ditames legais para os processos de recuperação judicial, extrajudicial e falência, foi extremamente precisa em observar a existência de créditos dotados de garantias reais e/ou pessoais, fazendo valer os conceitos legais e evolução histórica do instituto da garantia, sendo que o legislador se preocupou com o equilíbrio entre o direito do credor em receber seu crédito e o princípio da preservação da empresa.

Para tanto, restou estabelecido nos parágrafos 2º e 3º do artigo 49 da Lei de Regência a manutenção das garantias pessoais prestadas por fiadores e coobrigados, assim como a não sujeição de determinados créditos em razão da natureza de suas garantias[6].

Em relação ao credor detentor de garantia real, o legislador igualmente manteve sua preocupação em preservar a garantia prestada. É o que se verifica no parágrafo 2º do artigo 50 da Lei de Recuperação de Empresas: § 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.

A clareza do texto legal é manifesta: indispensável e necessária a anuência do credor titular da respectiva garantia real para que ocorra a sua supressão. Portanto, temos que, no que diz respeito às garantias, a Lei de Regência cuidou de forma específica de cada uma delas, sempre zelando pela sua manutenção e razão de existir.

Ocorre que a recuperação judicial no Brasil tomou rumos preocupantes e equivocados. Os planos de recuperação apresentados, por muitas vezes, trazem condições de pagamento que equivalem à remissão. Quem milita nessa área certamente já se deparou com planos que apresentam deságios elevadíssimos, prazos de carência/pagamento exagerados e taxas de correção que remuneram abaixo da inflação.

Apenas a título exemplificativo, recentemente, foi homologado plano de recuperação em uma grande cidade nordestina, cuja empresa devedora tem um endividamento que gira em torno de R$ 1,8 bilhão, todavia, em um “passe de mágica”, teve suas dívidas reduzidas para um patamar de 10%, para pagamento em 17 anos, corrigidos pela TR, mais juros de 0,5% a.a.

Não bastasse, foi aprovada a supressão de todas as garantias reais e fidejussórias, ainda que os credores titulares das garantias tenham apresentado oposição na respectiva assembleia. Como vimos, a legislação assegura a preservação das garantias, todavia, apoiado em decisão recente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, tornou-se possível aniquilar as garantias, queiram ou não seus titulares.

Segundo o voto vencedor exarado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze no Recurso Especial 1.700.487-MT, seria plenamente possível “a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral, como parte integrante das tratativas negociais, vincula todos os credores titulares de tais garantias”[7].

Na medida em que o próprio STJ aceita flagrante e expressa violação à legislação federal, o país caminha a passos largos em direção ao abismo da insegurança jurídica, onde se tem por legítima a desconstituição de um contrato perfeito e acabado em decorrência única e exclusiva da vontade da assembleia de credores, ainda que a lei assegure ao titular da garantia sua oposição à supressão.

A referida decisão faz letra morta de dezenas de dispositivos legais que regulam as garantias reais e fidejussórias, bem como contraria entendimento já sumulado pela própria corte. A Súmula 581 preconiza que “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”.

Lamentavelmente, mesmo com condições tão agressivas, o número de empresas que conseguem se recuperar é extremamente baixo[8], o que demonstra que o sacrifício imposto aos credores não está surtindo o efeito almejado. Ao contrário, no lugar de recuperar a empresa, com a manutenção de postos de trabalho, pagamento de impostos e geração de riquezas, a verdade é que a recuperação judicial se transformou em instrumento para perpetuação do inadimplemento e supressão de garantias, o que prejudica em muito o já complicado mercado de crédito no Brasil.

Importante que o Poder Judiciário assegure aos titulares de garantias a contraprestação que se espera desse importante instituto de direito, fazendo com que as garantias contratadas entreguem aos credores a segurança que delas se espera, cuja história foi construída ao longo de séculos em busca da indispensável segurança jurídica.


[1] Monteiro, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol: 3. 43ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 459.
[
2] Pereira, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Vol. IV, 22ª ed. Rio de Janeiro, 2014. p. 273.
[
3] Constituição Federal, art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
[4] Código de Processo Civil, art. 789.
[
5] Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo XX. Direito das coisas: direitos reais de garantia. Hipoteca, penhor e anticrese. Editor Borsoi: Rio de Janeiro, 1958. p. 19.
[6] Lei 11.101/05. Art. 49 (…) § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

(…)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
[7] STJ, REsp 1.700.487-MT, Min. Marco Aurelio Bellizze.
[
8] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/10/1820669-so-uma-em-cada-quatro-empresas-sobrevive-apos-recuperacao-judicial.shtml

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