Direto do Carf

Carf analisa tributação de prestação de serviços intelectuais por pessoa jurídica

Autor

  • Alexandre Evaristo Pinto

    é conselheiro do Carf doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP mestre em Direito Comercial pela USP professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Financeiras e Atuariais (Fipecafi).

3 de julho de 2019, 13h56

Spacca
O tema da pejotização já tinha sido objeto da coluna, mas sob a perspectiva da tributação pela contribuição previdenciária sobre os pagamentos a pessoas jurídicas prestadoras de serviço[1]. Nesta semana, trataremos da tributação pelo imposto de renda da pessoa física (IRPF) de serviços intelectuais prestados por meio de pessoas jurídicas.

A constituição de pessoas jurídicas para a prestação de serviços intelectuais por pessoas físicas tem sido prática mais frequente nos casos de serviços científicos, artísticos e culturais, o que acaba abrangendo atores, apresentadores de televisão, atletas e treinadores.

A possibilidade expressa de prestação de serviços intelectuais por pessoa jurídica, em caráter personalíssimo, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, surge com a edição do artigo 129 da Lei 11.196/05[2], sendo que, para os períodos anteriores a tal dispositivo, surge a questão se o referido dispositivo possui caráter interpretativo ou não[3].

Outro importante marco legal no que tange à constituição de pessoas jurídicas para a prestação de serviços intelectuais se deu com o surgimento da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), instituída pela Lei 12.441/11, que acrescentou o artigo 980-A ao Código Civil[4].

O artigo 980-A, parágrafo 5º, do Código Civil estabelece ainda que poderá ser atribuída à Eireli, constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza, a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.

No que tange aos atletas, é importante destacar que o artigo 87-A da Lei 9.615/98 (Lei Pelé)[5] já previa a cessão do direito ao uso de imagem de atleta, antes mesmo da instituição da Eireli, sendo que a Lei 13.155/15 incluiu um parágrafo único ao artigo 87-A da Lei Pelé[6], limitando o valor do direito de imagem a 40% da remuneração total paga ao atleta.

A partir de tais alterações legais, verifica-se novo entendimento jurisprudencial na Justiça do Trabalho. No Processo E-RR-406-17.2012.5.09.0651 julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, se entendeu que o direito de exploração da imagem de atleta profissional tem natureza civil e, portanto, não se confunde com o contrato especial de trabalho.

No Processo RR-11105-22.2015.5.03.0104[7], julgado no TST, foi declarada a validade do contrato de cessão de uso da imagem assinado entre o Praia Clube e a atleta de voleibol Tandara Alves Caixeta, sendo que foi afastada a natureza salarial do valor pago a esse título, com o fundamento de que o contrato foi livremente pactuado nos termos do artigo 87-A da Lei Pelé, ainda que o montante pago a título de salário fosse muito inferior ao montante pago como direito de imagem, o que se justificaria pelo fato de se tratar de atleta olímpica que acarretaria uma maior exposição de mídia ao clube.

No âmbito dos precedentes do Conselho de Contribuintes, cumpre mencionar o caso paradigmático que envolveu o apresentador de televisão Carlos Massa (Ratinho), cuja situação foi analisada nos acórdãos 104-18.641, 104-19.111, 104-20.574 e 104-21.583, nos quais entendeu-se, por maioria de votos, que a atuação da pessoa física do sócio como apresentador representaria uma obrigação personalíssima, (com previsão de exclusividade do apresentador para com as redes de televisão que contratavam os serviços de sua pessoa jurídica), implicando a tributação na pessoa física; no entanto, foi entendido que haveria direito à compensação dos tributos recolhidos na pessoa jurídica.

Igualmente paradigmáticos foram os processos envolvendo o treinador Luiz Felipe Scolari (Felipão), que geraram os acórdãos 106-14.244 e 104-20.915, nos quais entendeu-se, por voto de qualidade, no sentido de que: (i) a tributação deveria ser feita no âmbito da pessoa física em função da pessoalidade obrigatória da prestação e da quase exclusividade do tomador de serviço; (ii) a multa de ofício deveria ser reduzida para 75%; e (iii) haveria direito ao aproveitamento dos tributos pagos na pessoa jurídica.

O entendimento pela reclassificação para tributação na pessoa física dos rendimentos recebidos pela pessoa jurídica ocorreu nos Acórdãos 104-21.954 (Donizete Oliveira), 106-17.147 (Gustavo Kuerten), 2202-00.252 (Marcelo Dijan), 2101-00.980 (Beatriz Thielmann), 2101-00.979 (Angélica), 2801-01.870 (Cristiana Oliveira), 2201-001.496 (Domingos Meirelles), 2102-002.441 (Alexandre Garcia), e 2102-002.623 (Renato Machado).

Por sua vez, o entendimento pela manutenção da tributação dos rendimentos na pessoa jurídica prevaleceu nos acórdãos 2102-01.847 (Nathalia Timberg), e 2102-002.051 (Leilane Neubarth).

Feitas as considerações sobre os precedentes mais antigos do CARF, eis que passamos aos julgamentos posteriores a dezembro de 2015.

No acórdão 2202-003.682[8], relativo ao atleta Alexandre Pato, entendeu-se, por maioria de votos, que: (i) os rendimentos decorrentes dos contratos de patrocínio poderiam ser tributados na pessoa jurídica, uma vez que o direito de imagem possui natureza civil; (ii) os rendimentos de direito de imagem recebidos do clube estariam vinculados ao contrato de trabalho, possuindo natureza de complementação da remuneração trabalhista, devendo ser reclassificados para tributação na pessoa física; (iii) deveriam ser tributados como rendimentos da pessoa física os montantes relativos aos direitos econômicos decorrentes da transferência do atleta para outro clube no exterior; e (iv) deveriam ser aproveitados os tributos pagos na pessoa jurídica.

No acórdão 2402-005.703[9], referente ao atleta Neymar (não era sócio de nenhuma das pessoas jurídicas cujas receitas foram reclassificadas na autuação fiscal), entendeu-se, por maioria de votos, que (i) poderiam ser tributados na pessoa jurídica os valores decorrentes de contratos de publicidade celebrados entre esta e terceiros; (ii) a eventual desproporcionalidade entre o valor ajustado e o salário do atleta, sem a devida exploração da imagem contratada, poderia configurar fraude; (iii) a inclusão de obrigações personalíssimas e de cláusulas de garantia pessoal de cumprimento não descaracterizam o contrato de exploração de direito de uso de imagem; (iv) os valores recebidos como retribuição por cessão de direito de imagem a clube estrangeiro, ainda que por intermédio de sucessivas interpostas pessoas, se revestem de caráter salarial, quando correspondem a percentuais pré-estabelecidos incidentes sobre verbas remuneratórias, e não restar comprovado estarem associados à efetiva exploração daquele direito; e (v) os tributos recolhidos na pessoa jurídica poderiam ser aproveitados pela pessoa física (nesse caso, por unanimidade).

No acórdão 2202-004.008[10], referente ao atleta Edinho, entendeu-se, por voto de qualidade, que (i) valor fixo e mensal pago por meio de empresa constituída para esse fim, não pode ser considerado como retribuição pelo direito de uso de imagem; (ii) a multa não deve ser qualificada nos casos em que o sujeito passivo age de acordo com as suas convicções, deixando às claras o seu procedimento, visto que resta evidente a falta de intenção de iludir; e (iii) deverão ser aproveitados os tributos pagos na pessoa jurídica.

No Acórdão 2201-003.748[11], envolvendo o atleta Dario Conca, entendeu-se, por maioria de votos, que há possibilidade de cessão de direito de imagem por atleta para pessoa jurídica, ainda que constituída sob a forma de sociedade limitada. Todavia, o julgamento do referido caso foi diferente no âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), por meio do Acórdão 9202-007.322[12], no qual entendeu-se, por voto de qualidade, que a prestação de serviços intelectuais não abrange a cessão do uso de direito de imagem, bem como que a cessão do direito de uso pelo atleta prevista na Lei Pelé implicaria a cessão mediante remuneração pela pessoa jurídica a pessoa física, de forma que somente a partir da edição do artigo 980-A, parágrafo 5º, do Código Civil houve autorização para cessão do direito de exploração econômica do direito de imagem por pessoa jurídica, mas com a condição de que esta fosse uma Eireli.

Como decorrência de tal decisão, foi determinado que os autos retornassem ao colegiado de origem, para apreciação das demais questões do recurso voluntário, que incluíam o aproveitamento dos tributos pagos na pessoa jurídica e a multa isolada.

No acórdão 2202-004.087[13], referente ao treinador Cuca, entendeu-se, por voto de qualidade, que: (i) valores fixos e mensais pagos a treinador não se configuram como direito de imagem, diante da vinculação entre os contratos de trabalho e a remuneração recebida na pessoa jurídica a título de direito de imagem do treinador; e (ii) a multa foi reduzida para 75%, uma vez que a sua qualificação não pode atingir aqueles casos em que o sujeito passivo age de acordo com as suas convicções, demonstrando o seu procedimento, visto que resta evidente a falta de intenção de iludir.

No acórdão 9202-004.548[14], envolvendo o tenista Gustavo Kuerten, entendeu-se, por maioria de votos, que os rendimentos recebidos na pessoa jurídica deveriam ser reclassificados para tributação na pessoa física, uma vez que: (i) as obrigações contratuais eram personalíssimas, abrangendo realização de entrevistas, uso de determinadas peças de vestuário e presença em eventos específicos; (ii) os períodos de apuração eram anteriores à edição do artigo 129 da Lei 11.196/05, que não deve ser aplicado de forma retroativa; e (iii) devem ser aproveitados os tributos pagos na pessoa jurídica. A referida decisão confirmou, portanto, o entendimento que já havia sido manifestado no Acórdão recorrido (106-17.147).

No acórdão 2401-005.938[15], que envolveu o atleta Deco, entendeu-se, por voto de qualidade, que a cessão do uso de direito de imagem não se configura como prestação de serviço intelectual, sendo que tal cessão somente seria permitida se fosse direcionada a uma Eireli, o que resultou na reclassificação dos rendimentos para a pessoa física, sendo que foi permitido o aproveitamento dos tributos pagos na pessoa jurídica.

No acórdão 2301-005.812[16], referente ao atleta Fred, entendeu-se, por maioria de votos, pelo acolhimento de preliminar de nulidade para anulação do acórdão recorrido, diante de alteração do critério jurídico no âmbito da DRJ frente aos critérios que foram utilizados na autuação fiscal. O fundamento para a lavratura do auto de infração foi a impossibilidade de um direito personalíssimo, tal qual o direito de imagem, ser exercido por uma pessoa jurídica, no entanto, no Acórdão da DRJ, entendeu-se que a pessoa jurídica seria simulada, uma vez que somente um dos sócios era atleta e havia cedido o seu direito de imagem, de modo que aventou-se que seria possível aplicar o artigo 129 da Lei 11.196/05 se todos os sócios fossem atletas.

Verifica-se, dos acórdãos analisados, que a maior parte dos precedentes do Carf, incluindo os precedentes da CSRF, tem sido no sentido de reclassificação dos rendimentos recebidos na pessoa jurídica para a pessoa física, sendo que tem preponderado o entendimento de que a cessão de direito de imagem por desportista não se configura serviço intelectual, bem como tem sido afastada a qualificação da multa de ofício e permitida a compensação dos tributos pagos na pessoa jurídica.


[1] https://www.conjur.com.br/2019-abr-03/direto-carf-carf-analisa-fenomeno-pejotizacao-tributacao

[2] Lei nº 11.196/05: “Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 do Código Civil”.

[3] Vide: ÁVILA, Humberto. A Prestação de Serviços Personalíssimos por Pessoas Jurídicas e sua Tributação: o Uso e o Abuso do Direito de Criar Pessoas Jurídicas e o Poder de Desconsiderá‐las”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (org.). Grandes Questões Atuais de Direito Tributário, v. 17. São Paulo: Dialética, 2013; e CARRAZZA, Roque Antônio. O Caráter Interpretativo do Art. 129 da Lei 11.196/05. In: ANAN JR., Pedro, PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Prestação de Serviços Intelectuais por Pessoas Jurídicas – Aspectos Legais, Econômicos e Tributários. São Paulo: MP Editora, 2008. p.256.

[4] Código Civil: “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. (…)

parágrafo 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.”.

[5] Lei 9.615/98 “Art. 87-A. O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo”. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).

[6] Lei 9.615/98 “Art. 87-A. (..) Parágrafo único. Quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem”.

[7] Trecho do voto do Ministro Caputo Bastos: “Todavia, o caso envolve uma atleta de renome do voleibol brasileiro, detentora de inúmeros títulos, inclusive mundiais e olímpicos, integrante da elite de atletas dessa modalidade esportiva”. (…) No intuito de ver sua imagem associada à de um atleta campeão, o clube se submete às condições e contratos impostos pela atleta através de seus empresários/empresas, e não o contrário”.

[8] Julgado em 08/02/17.

[9] Julgado em 15/03/17.

[10] Julgado em 04/07/17.

[11] Julgado em 05/07/17.

[12] Julgado em 25/10/18.

[13] Julgado em 09/08/17.

[14] Julgado em 23/11/18.

[15] Julgado em 16/01/19.

[16] Julgado em 18/01/19.

Autores

  • é conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comercial pela USP e bacharel em Direito pelo Mackenzie e em Contabilidade pela USP. Professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e coordenador do MBA IFRS da Fipecafi.

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