Direito Civil Atual

Para que serve o contrato de seguro D&O para administradores? — parte II

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

1 de julho de 2019, 9h16

Na coluna anterior, explicamos que o contrato de seguro D&O está voltado à cobertura dos riscos financeiros que emanam do chamado ato regular de gestão. Para defini-lo, recorremos à ‘ferramenta’ habitualmente empregada pela doutrina que, inversamente, conceitua o ato irregular de gestão, a partir do disposto no artigo 158 da Lei 6.404, de 15.12.1976.

Demonstramos a clara convergência existente entre as violações ao dever de diligência por parte dos administradores e a cobertura oferecida pelo seguro D&O e, por outro lado, também sinalizamos quanto à inexistência de interseção entre as violações ao dever de lealdade e a cobertura disponibilizada.

Compreendidos estes pontos fulcrais, é preciso ir além e trazer a esta arena o instituto da business judgment rule. A finalidade de incluir este novo personagem ao objeto do exame é de fácil compreensão. A business judgment rule, em uma linha, tem por finalidade proteger o ato de gestão proveniente de decisão informada, refletida e desinteressada, tal e qual o contrato de seguro D&O. O objetivo aqui é ir além e explicitar as semelhanças e as diferenças.

A business judgment rule é um instituto de origem norte-americana, cujo exame, por primeiro, já data de mais de 200 anos.[1] A sua utilização em ordenamentos jurídicos anglo-saxões é muito comum e decorre, entre outras razões, da percepção de que a revisão do mérito de uma decisão negocial por um juiz de direito, ou um árbitro, traria efeitos deletérios à administração das sociedades.

Se os administradores precisam ser argutos e dinâmicos, a imposição de revisões ex post facto os colocaria permanentemente em situação de ameaça de responsabilização pessoal, prejudicando-os, em primeiro lugar, e, como consequência, tornando a administração das sociedades cada vez mais ineficiente. [2]

É preciso entender, com efeito, que a business judgment rule não produz efeitos próprios de um ‘escudo impenetrável’, capaz de gerar imunidade aos administradores em quaisquer circunstâncias. Se este fosse o caso, a administração gravemente negligente estaria protegida, com sérios prejuízos à sociedade.

Assim é que o acionamento do instituto requer, em primeiro lugar, que a decisão do administrador seja informada. Ao decidir pela realização de um investimento, pela abertura de uma subsidiária, pela oferta com vistas à aquisição de um concorrente, uma condição primordial deve ser preenchida, qual seja, o dever de se informar. A contrario sensu, a decisão emanada da não obtenção de informações não deve ser protegida pelo instituto.[3]

O segundo pressuposto vem à continuação do primeiro: após obter informação, o administrador dever refletir a respeito da decisão em questão. Independentemente do tempo escasso, das pressões de acionistas, concorrentes e órgãos reguladores, o administrador deverá refletir a respeito da decisão a ser ou não tomada.

O terceiro e último pressuposto está relacionado ao desinteresse pessoal do administrador na questão de fundo, é dizer, a decisão deverá ser tomada no interesse da sociedade, jamais no interesse pessoal do administrador, questões que se encontram intrinsicamente relacionadas ao dever de lealdade.[4]

Portanto, se a decisão for informada, refletida e desinteressada, a business judgment rule deverá produzir os seus efeitos de maneira plena, evitando a responsabilização dos administradores pela decisão tomada, devendo prevalecer o reverso se os pressupostos não restarem preenchidos.

Em síntese, a business judgment rule encontra-se alinhada com o preenchimento do dever de diligência, que se desdobra nos deveres de (i) qualificar-se para o exercício da função, (ii) informa-se, (iii) vigiar e, atento à hipótese, investigar e (iv) informar ao mercado a respeito de fatos considerados relevantes. A falta grave para com o dever de diligência (que corresponde à negligência), não será protegida pelo instituto.

Imaginando-se hipótese na qual a decisão tenha sido informada, refletida e desinteressada, o racional exposto acima estaria a revelar a desnecessidade de contratação do seguro D&O, posto que não haveria risco. O problema, neste particular, decorre de uma constatação muito antiga e que é proveniente de estudos clássicos quanto ao contrato de seguro de responsabilidade civil: no direito francês, Jacques Hémard, em 1912, afirmou que a grande vantagem dos seguros de responsabilidade civil seria o oferecimento de cobertura para culpa sem sinistro, e para sinistro sem culpa.[5]

A primeira assertiva, a esta altura, revela-se desinfluente: o segurado atropela um transeunte na rua que, por questões as mais variadas, não resolve processá-lo. Há culpa do segurado, mas não há sinistro. A segunda assertiva é que vai ao encontro da deficiência apresentada pela business judgment rule: o administrador não age com culpa, mas, um acionista minoritário resolve processá-lo. Haverá sinistro, mesmo que sem culpa.

A business judgment rule seria perfeita numa sociedade utópica igualmente perfeita, na qual não existiriam demandas descabidas, as chamadas aventuras jurídicas que, é como é sabido, avolumam-se nos tribunais. No mundo real e, como afirmado na primeira coluna, ser administrador é o quanto basta para passar a responder por demandas de responsabilidade as mais diversas. O furor em torno da objetivação da responsabilidade, da responsabilidade preventiva e da responsabilidade com presunção do nexo de causalidade revelam o quão importante é o contrato de seguro D&O, para além da business judgment rule.

Uma palavra final quanto à culpa grave, a business judgment rule e o seguro D&O. Consoante observado, o instituto não se presta para oferecer proteção à administração gravemente negligente, o que faz todo sentido considerando os prejuízos respectivos.

Com relação ao seguro D&O, é muito conhecida a equiparação comumente formulada entre as condutas gravemente culposa e dolosa, o que é bastante antigo em nosso País, com origens que remontam ao Direito Romano e ao velho brocardo culpa lata dolo aequiparatur — a culpa grave é equiparável ao dolo.

Explicamos na coluna anterior que, ontologicamente, a culpa grave e dolo nascem de violações a deveres distintos — diligência e lealdade — o que gera alguma dificuldade para fazer a equiparação referida de maneira açodada.

Seja como for, entendemos que a exclusão de cobertura baseada em culpa grave do administrador não poderá ser arguida antes de que sejam apresentadas as evidências respectivas. Não há como, prima facie, sem que se concluam as investigações respectivas, afirmar que há culpa grave e que, por esta razão, não serão devidos os custos de defesa. Entendemos pela antecipação dos custos de defesa e, posteriormente, uma vez demonstrada a culpa grave, haverá direito à repetição pela seguradora, seja com base no enriquecimento sem causa (CC, artigos 884 e 885), seja com base no pagamento indevido (CC, artigo 876).

Concluindo, enquanto que a business judgment rule não oferecerá proteção à conduta gravemente culposa, o contrato de seguro D&O, ao menos no tocante ao adiantamento dos custos de defesa, oferecerá, subordinando-se a cobertura à repetição em favor da seguradora uma vez comprovando-se a culpa grave.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 “A primeira decisão a respeito da business judgment rule data de 1829 e se refere ao caso Percy v. Millaudon, de Louisiana. Na ocasião, a Corte estadual decidiu que o simples prejuízo não faz o administrador responsável; para a responsabilização seria necessária a comprovação de ter o administrador praticado ato inadmissível ao padrão do homem comum em semelhantes condições. O precedente integrou seguidas decisões jurisprudenciais antes de qualquer menção em standards. Por influência da jurisprudência norte-americana, veio a constar do art. 72º, n. 2 do Código das Sociedades de Portugal, de forma a determinar a exclusão da responsabilidade do administrador se provado que este atuou ‘em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial’”. (HENTZ, Luiz Antônio Soares. Ação social de responsabilidade e business judgment rule. In Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. v. 68/2015. p. 99-112. Abr/Jun 2015).

2 É paradigmático, no Brasil, o acórdão proferido pela Comissão de Valores Mobiliários no processo administrativo sancionador nº. RJ 2005/1.443 no qual, de forma explícita, o órgão aderiu à aplicação da business judgment rule em suas decisões. O relator foi o diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa.

3 A negligência grave é considerara o oposto da diligência regular (informar-se e refletir antes da tomada da decisão) e, quando verificada, importa na não aplicação do instituto. “Em casos que envolvem decisões

negociais, a diligência exigida de conselheiros e diretores vem sendo pautada pelas cortes com base no conceito da negligência grave (ou gross negligence). Isto é, será considerado devidamente diligente aquele que não for gravemente negligente.” (BRIGAGÃO, Pedro Henrique Castello. A administração de companhias e a business judgment rule. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 137).

4 “The business judgment rule does not protect decisions by directors that constitute fraud, illegality or ultra vires conduct”. (BLOCK, Dennis J.; BARTON, Nancy E; RADIN, Stephen A. The business judgment rule: fiduciary duties of corporate directors. 5 ed. New York: Aspen Law and Business, 1998. p. 90). Especificamente quanto à inaplicabilidade do instituto às decisões que impliquem em violação ao dever de lealdade, refere-se a PARGENDLER, Mariana. Responsabilidade civil dos administradores e business judgment rule no direito brasileiro. In Revista dos Tribunais v. 953/2015, p. 51-74, mar. 2015.

5 « « La garantie des dépenses joue que l’assuré soit ou non reconnu responsable, dès lors qu’il a dû résister à une action en justice. Hémard soulignait en ces termes le rôle de la réclamation de la victime : « Ainsi

peut-il y avoir tant sinistre sans responsabilité, qu’inversement responsabilité sans sinistre. Le sinistre est réalisé sans qu’il y ait responsabilité, quand la demande du tiers a été jugée mal fondée ; alors l’indemnité d’assurance ne comprend que les frais judiciaires exposés. La responsabilité existe sans sinistre, quand l’assuré responsable n’est l’objet d’aucune poursuite en raison de la négligence ou de l’ignorance

de la victime ». » » (LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. Droit des assurances. 11 ed. Paris : Dalloz, 2001. p. 485). No mesmo sentido Picard et Besson. Assurance terrestres. v 1, nº. 350, 1971. E Luc Mayaux em Responsabilité civile et assurance. In Les grandes questions du droit des assurances. Paris : L.G.D.J, 2011. p. 257-275.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes, professor visitante da FGV Direito Rio, EMERJ e Escola Nacional de Seguros, além de advogado, sócio de Chalfin, Goldberg, Vainboim & Fichtner.

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