Direito Comparado

TJ da União Europeia discute os limites territoriais do direito de apagar dados

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

30 de janeiro de 2019, 18h44

Spacca
Desde 2013, em sucessivas colunas publicadas neste espaço, ofereceu-se ao leitor ampla visão sobre o direito ao esquecimento e suas figuras parcelares ou autônomas, como o direito a apagar dados pessoais ou restringir seu acesso por terceiros (a última delas foi publicada aqui).

Nas últimas semanas, o tema voltou a ganhar relevância internacional após a divulgação do parecer do advogado-geral do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso que envolve o Google e a extensão do direito ao esquecimento (rectius, o direito de apagar os próprios dados) para além dos limites territoriais da jurisdição política europeia.

Convém apresentar os elementos descritivos do caso e sumariar a controvérsia.

Em 2015, a Comissão Nacional de Informática e de Liberdades francesa (no original, Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés, Cnil) deu início a um processo contra a empresa Google, para que suprimisse de seus resultados de busca links para páginas relativas a determinadas pessoas. A empresa recusou-se a cumprir a determinação da autoridade administrativa francesa em toda sua extensão. O Google suprimiu os links apenas às pesquisas originadas de nomes de domínio relativos a seu motor nos Estados-membros da União. O ato administrativo francês não fixava marcos ou limites de soberania territorial. Por esse fundamento, o Cnil pronunciou-se em ordem a sancionar o Google pelo descumprimento de sua determinação inicial.

A questão foi levada ao Conselho de Estado, o qual concluiu que: a) o motor de busca operado pelo Google divide-se em diferentes nomes de domínio por extensões geográficas; b) a pesquisa feita a partir de “google.com” é redirecionada automaticamente para o nome de domínio vinculado ao território no qual está a pessoa que realiza a pesquisa, conforme o endereço IP do usuário; c) independentemente da “sede da busca”, é possível que o usuário proceda à pesquisa diretamente no motor de busca com diferente terminação geográfica (um usuário em Portugal pode recorrer diretamente ao google.de ou ao google.com.br, respectivamente da Alemanha e do Brasil); d) o tratamento de dados da Google France é efetivado em conformidade à competência territorial francesa, sujeitando-se à legislação desse país.

O próprio Conselho de Estado vislumbrou, ao estilo do relatório do caso elaborado pelo advogado-geral, o risco de questões prejudiciais e resolveu remeter o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia, suspendendo o trâmite em sua instância.

O advogado-geral ingressou, então, no mérito das questões prejudiciais levantadas pelo Conselho de Estado francês.

A primeira delas refere-se à existência ou não de um dever imputável aos operadores de sites de busca de desvincular, em todos os nomes de domínio, para que os enlaces impugnados não mais apareçam, independentemente do local de origem da pesquisa.

A posição do Cnil, e também pelos governos da França, da Itália e da Áustria, consiste na defesa do caráter amplo do dever de desreferenciação, independentemente do local de origem das buscas. A limitação desse dever ao âmbito jurisdicional europeu seria inócua. A desreferenciação haveria de compreender também os domínios “.com”.

Em posição oposta manifestaram-se Google, Wikimedia Foundation (responsável pela Wikipedia), a Fundação para a Liberdade de Imprensa, a organização Artigo 19 e os governos da República de Irlanda, da Grécia e da Polônia, em ordem a que não seria juridicamente admissível a legislação europeia produzir efeitos extraterritoriais. A ratio dessa tese estaria na violação do Direito Internacional Público. Como fundamento metajurídico estaria a questão da censura global: governos autoritários poder-se-iam valer desse princípio extraterritorial para vincular outros países a partir de seus próprios atos administrativos de caráter censório.

Ao se referir à célebre decisão Google Spain, o advogado-geral foi enfático ao dizer que o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia foi silencioso quanto ao tema da territorialidade. Segundo ele, nem a Diretiva 95/46 nem o acórdão Google Spain especificaram haver diferenças de tratamento em relação a um pedido de pesquisa oriundo de Cingapura e outro feito a partir de Paris ou de Katowice.

Quanto a este ponto, que é o centro da prejudicialidade suscitada no caso, para o advogado-geral, os pedidos de pesquisa feitos além-fronteiras da União não devem ser submetidos aos comandos para desreferenciar os resultados da pesquisa com base em decisões da própria União Europeia.

Na sequência, o advogado-geral enfrentou a segunda questão prejudicial, relativamente à aplicação territorial da Diretiva 95/46.

O artigo 52, 1, do Tratado da União Europeia, dispõe que os tratados se aplicam a seus 28 Estados-membros. O n.2 do artigo 52, por sua vez, remete ao artigo 355, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quanto aos limite territoriais da União, que se restringem aos Estados-membros e alguns territórios ultramarinos ou não continentais, ao exemplo de Guadalupe, Guiana Francesa, Martinica, Reunião, Saint-Barthélemy, Saint-Martin, os Açores, Madeira e ilhas Canárias.

Para o advogado-geral, as diretivas não podem ter eficácia extraterritorial, embora reconheça que, em certos casos, tal situação seja excepcionalmente admitida, ao estilo do Direito da Concorrência ou do Direito Marcário. Para ele, contudo, tais hipóteses são extremas e não admitem analogias nem comparações com a situação ora sob exame do Tribunal de Justiça da União.

Outro aspecto interessante abordado no parecer do advogado-geral diz respeito à eficácia extraterritorial dos direitos fundamentais. Para ele, o caso dos autos não se enquadra na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a eficácia extraterritorial da Convenção Europeia de Direitos Humanos (Tratado de Roma, de 1950), cujos precedentes são invocados nos conflitos de extradição de uma pessoa para um terceiro país.

O direito ao esquecimento não é um direito absoluto e seu exame há de ser balanceado em face de outros direitos fundamentais. Exemplo disso, segundo o advogado-geral oficiante junto ao Tribunal de Justiça da União Europeia, está no precedente Google Spain, no qual se valorizou a privacidade como um direito a ser protegido com igual intensidade que o direito ao esquecimento.

Para além dessas questões, o advogado-geral valorizou parcialmente os argumentos da empresa Google e de alguns Estados-membros que se pronunciaram nos autos sobre os riscos de se impedir o acesso a dados por nacionais de países não-europeus. Se uma autoridade europeia pudesse emitir uma ordem de eficácia global para impedir o referenciamento de dados em outros países, haveria igualmente a competência das autoridades nacionais para igual comando, considerando suas próprias normas.

A despeito de seu entendimento contra uma ordem de eficácia global para desreferenciar dados, o advogado-geral reconhece a existência de situações excepcionais. Tais hipóteses, contudo, não chegam a ser detalhadas em seu parecer.

Em suas conclusões, o advogado-geral reitera a impossibilidade, em tese, de uma ordem europeia afetar as hiperligações de motores de busca ultraeuropeus.

Este processo deverá ser julgado ainda em 2019. Qualquer que seja a decisão do Tribunal de Justiça europeu, haverá enorme impacto para o futuro da internet e para o exercício dos direitos a ela associados.

O grande problema do parecer está na maneira superficial com que ele tratou de dois problemas (se é que efetivamente os tratou): a natureza jurídica da internet e os limites técnicos de uma decisão extraterritorial.

Quanto ao primeiro problema, que é central para o caso, ele reflete uma questão ainda mal resolvida em todo o mundo: a internet é um espaço livre ou é apropriável pelo Direito estatal? Até o presente momento (e talvez desde suas origens), a internet surgiu como um espaço de liberdade, aqui entendido como um exemplo por excelência do pluralismo jurídico (em contraponto ao monismo jurídico, a ser entendido como o reconhecimento de uma nomogênese essencialmente estatal). A internet e suas regras não seriam estatais nem derivariam de normas produzidas pelo Estado.

Esse debate não transparece na opinião do advogado-geral. E é sobre isso que se está efetivamente a discutir como subtexto do conflito. Situações como o conflito envolvendo os países da bacia amazônica (dentre eles o Brasil) e o uso do “.amazon” pela companhia norte-americana Amazon é um exemplo dessa indefinição. Elementos como soberania nacional e exploração econômica de marcas debatem-se nesse conflito, até agora pendente de uma solução definitiva pela Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (em inglês, ICCANInternet Corporation for Assigned Names and Numbers), uma organização privada, com sede nos Estados Unidos da América, regida por um modelo multisetorial de governança.

A colocação do problema, como se observa no parecer do advogado-geral, ao estilo de uma colisão de direitos fundamentais é insuficiente e pouco eficaz. No exemplo do “.amazon”, qual a colisão entre direitos fundamentais? Como se resolver o caso com apelos genéricos ao ponderacionismo?

Quanto ao segundo problema, dos limites técnicos, esse é outro aspecto marginal (ou ausente) do parecer. Discussões sobre censura na internet esbarram nas potencialidades técnicas e nos limites de exigibilidade de decisões jurídicas. Exemplo disso está no fundamento técnico para a jurisprudência (pré-Marco Civil da Internet) que eximiu de responsabilidade as redes sociais por danos morais decorrentes de publicações. Um dos argumentos estava na impossibilidade de um controle ex ante, o que é discutível.

No caso sob jurisdição europeia, o apagamento de dados com limites territoriais é inócuo em se considerando a possiblidade de encontrar os mesmos dados pessoais nos motores (da mesma empresa) com terminações não europeias. Por outro lado, a eficácia extraterritorial implicará um problema de Direito Internacional, que a União Europeia talvez não esteja em condições de enfrentar, especialmente se comparada a eficácia de decisões de tribunais europeus em âmbitos jurídicos muito mais sensíveis como no Direito Penal.

Neste julgado, a melhor resposta a ser dada seria a de se tomar uma posição sobre o que realmente interessa e não mascarar o problema com argumentações ponderacionistas. Talvez seja isso que se pretende, até porque o abismo que se contempla ao se colocar tais questões à frente dos olhos é imenso.

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    é coordenador da área de Direito da CAPES, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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